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A ciência das relações estruturais

A matemática é imprescindível em praticamente todos os domínios da ciência e da vida prática. Ninguém pode funcionar plenamente numa sociedade como a nossa sem algum conhecimento matemático, que somos freqüentemente solicitados a exibir em atividades corriqueiras, como decidir se uma compra a crédito vale […]

Publicado em 10/09/2011

por Jairo José da Silva

A matemática é imprescindível em praticamente todos os domínios da ciência e da vida prática. Ninguém pode funcionar plenamente numa sociedade como a nossa sem algum conhecimento matemático, que somos freqüentemente solicitados a exibir em atividades corriqueiras, como decidir se uma compra a crédito vale a pena, ou para entender a ciência e a tecnologia que nos rodeiam. Sociedades matematicamente analfabetas têm chances reduzidas de desenvolvimento econômico e social, e trabalhadores sem nenhum ou com pouco treino matemático são freqüentemente menos produtivos. A capacidade de entender conceitos tão corriqueiros como o de velocidade, por exemplo, exige a capacidade de lidar com conceitos matemáticos sofisticados como o de taxa de variação instantânea. Para entender a distribuição de certos caracteres genéticos na família, como cor de olho ou estatura, requer-se algum entendimento da teoria matemática das probabilidades, e assim vai. Sem a matemática não se vive plenamente no mundo de hoje.    

Mas por que é assim? Como a matemática foi capaz de penetrar tão profundamente em nossas vidas e na nossa ciência? No seu nascimento, milhares de anos atrás, ela era basicamente uma técnica voltada às necessidades da vida prática. Termos cardinais, por exemplo, foram criados na aurora da civilização para designar quantidades determinadas de coisas, sendo que quantidades idênticas de coisas distintas eram, às vezes, designadas por termos cardinais distintos; só com a evolução da cultura esses termos passaram a denotar números cardinais (um, dois, três etc.), entendidos como objetos abstratos de determinado tipo. As necessidades da agricultura e da vida social fizeram nascer a geo­metria (que significa, literalmente, medida da terra) e a astronomia (já que agricultura e práticas religiosas requerem calendários e outros meios confiáveis de medir o tempo).

Mas a aplicabilidade da matemática a outras ciências, além da astronomia, só se torna evidente no início da Idade Moderna, mais precisamente com Galileu e Newton, no século 17, entre outros. Esses cientistas lograram expressar relações físicas entre grandezas como velocidade, aceleração, força, massa, tempo e distância, por exemplo, em termos de relações matemáticas entre números. Isso só foi possível porque essas grandezas são extensionais, nós podemos medi-las, isto é, expressá-las em termos de uma quantidade de unidades do mesmo tipo. As leis que regem fenômenos físicos podem então ser expressas por fórmulas matemáticas que determinam o valor de uma grandeza em função dos valores das outras grandezas que estão relacionadas a ela. O interessante é que conhecemos esse valor antes de medi-lo, ou seja, as leis da Natureza têm a capacidade de prever. (Mas cabe aqui uma palavra de esclarecimento, esse poder de previsão não vem da matemática, que só o expressa, mas dos princípios físicos – e mesmo, em certa medida, metafísicos – em cuja base as leis são enunciadas.)

Hoje as coisas já não são tão simples. Mesmo relações entre grandezas não mensuráveis admitem expressão matemática, que nem sempre têm a forma simples de uma equação algébrica. O diálogo entre a matemática e as ciências tornou-se mais elaborado, mas por isso mesmo mais íntimo, e continua valendo a máxima de Galileu: o livro da Natureza está escrito em caracteres matemáticos, quem os desconhece é incapaz de lê-lo.

Mas é também fato notório que algumas ciências (por exemplo, a física, a química, certas áreas da biologia) são mais afeitas à matematização que outras (por exemplo, as ciências humanas em geral e algumas áreas das ciências naturais). Por quê? O que faz com que uma ciência seja mais maleável ao tratamento matemático que outras? Só podemos responder essa questão se entendermos qual, em última análise, é a essência da matemática. 

Antes que uma ciência de objetos de determinado tipo, como a zoologia, que é a ciência dos animais, ou a astrofísica, a dos corpos celestes, a matemática é a ciência das relações estruturais quaisquer que se estabelecem entre objetos quaisquer. É possível que essa caracterização levante algumas sobrancelhas, pois, afinal, a aritmética não estuda números e a geometria, o espaço e suas propriedades formais? O fato é que se substituirmos os animais por outros objetos, a zoologia deixa de existir, mas se substituirmos o domínio dos números por qualquer outro domínio de objetos com a mesma estruturação, ainda podemos fazer aritmética. O que mostra que a aritmética não é a ciência dos números estrito senso, mas de quaisquer coisas que se pareçam com números, isto é, que estejam estruturadas como os números. O mesmo se passa com qualquer outra ciência matemática. Por isso dizemos que a matemática, ao contrário da zoologia ou astrofísica, é uma ciência formal, isto é, de formas, não conteúdos.

Isso basta para entendermos como a matemática pode servir às ciências. Em maior ou menor medida as ciências também levantam questões de ordem estrutural nos domínios que estudam. Quando questões dessa natureza são relevantes, a matemática entra em jogo – por si só isso já explica a diferença de matematização das diferentes ciências; questões estruturais podem ser mais importantes em uma do que em outra.

A capacidade de perceber estruturas ou padrões é um dos aspectos mais importantes da nossa inteligência, contribuindo de modo determinante para o nosso conhecimento e nossas ações. A matemática é a ciência dos padrões e das estruturas; por isso ela é essencial para a nossa compreensão do mundo e nossa inserção nele. Por isso também, em um sentido bem preciso, aprender matemática, mesmo aquela que aparentemente não tem serventia imediata, nos torna mais inteligentes. Por ela, e só por ela, nós podemos vislumbrar a máquina do mundo, que move não só o céu e todas as estrelas, mas as nossas vidas também.



Jairo José da Silva é professor titular do Departamento de Matemática da Unesp de Rio Claro

Autor

Jairo José da Silva


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