NOTÍCIA

Edição 218

A geração de Alice

Como as crianças que nasceram imersas na tecnologia aprendem com a informação chegando por tantas fontes? Pesquisas recentes mostram que a escola não deveria se deixar levar pelo deslumbramento com a capacidade dos pequenos de "aprenderem sozinhos". Eles ainda precisam de apoio no processo de construção da autonomia

Publicado em 09/06/2015

por Débora Rubin

© Ilustração: Marô Barbosa

O jornalista e escritor Zuenir Ventura, 83 anos, é um fascinado pelas habilidades naturais de sua neta Alice, 5 anos, com as novas tecnologias. Com frequência, o autor de 1968 – O ano que não terminou a cita em suas crônicas no jornal O Globo. Entre o espanto, a admiração e o autodeboche pelo fato de ele ser um “analfabyte”, Zuenir questiona se essa geração será capaz de se aprofundar em algo. “Fico me perguntando se, com todos esses apelos audiovisuais, se com todo esse deslumbramento acrítico pelas novas mídias, com esse fascínio atual de índio por espelho, a geração de Alice ainda vai se interessar por livro e pelo que a leitura de um texto propicia: reflexão, conhecimento e senso crítico”, escreveu na crônica Alice no reino do iPad, de 2011, quando a menina tinha dois anos. Quem, assim como Zuenir, não se pergunta sobre os efeitos da exposição das novas gerações a tanto aparato tecnológico? No ambiente escolar, a questão é ainda mais inquietante. Não se trata apenas de saber se o livro “vai morrer”, mas de entender como essa nova geração irá aprender e reter o conhecimento. Será possível dimensionar a mudança que está em curso?

Plasticidade

Para Zuenir, a leitura efêmera e descartável em busca de informação instantânea vai fazer com que essa geração desenvolva mais o reflexo e menos a reflexão. Do ponto de vista da neurociência – um campo do conhecimento também fruto dos avanços tecnológicos -, o uso intenso de novas tecnologias certamente impacta o funcionamento do cérebro. “Isso tem a ver com a plasticidade natural do cérebro, que muda conforme se vai esculpindo a arquitetura do órgão”, explica o neurocientista Fernando Louzada, do Laboratório de Cronobiologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR). “Logo, toda nova ferramenta incluída na vida de uma pessoa passará a ser representada pelas redes neurais e a fazer parte do corpo. Daí aquela agonia de não poder ligar o celular no voo – parece que falta uma parte do nosso braço”, compara Fernando.

No entanto, ainda é difícil afirmar se o cérebro dos que nasceram com a internet já consolidada, por exemplo, é diferente do de gerações anteriores. “Não há parâmetros para fazermos essa afirmação”, explica Fernando, lembrando que não havia tanto recurso moderno de observação no passado.

Feitos um para o outro

Mas os estudos atuais podem ajudar a entender como funciona a cabeça do jovem de forma geral. Por exemplo: hoje se sabe que o cérebro humano demora muito tempo para se desenvolver em diversos aspectos. Um deles é na habilidade de prospectar o futuro, planejar e manter a concentração. Um estudo conduzido pela psiquiatra Beatriz Luna, da Universidade de Pittsburgh (Estados Unidos), com crianças, adolescentes e jovens na faixa dos 20 anos mostrou que, quanto mais novo, mais difícil é se concentrar no objetivo proposto. O desafio do estudo era desviar o olhar de uma luz forte que surgia de repente de uma tela. As crianças se saíram mal – olhavam para a luz todo o tempo. Os adolescentes a partir de 15 anos foram um pouco melhor e resistiram à tentação até 80% do tempo – resultado similar ao dos adultos. Na análise das imagens, Beatriz percebeu que os jovens faziam menos uso das áreas que monitoram o desempenho, identificam erros, fazem planejamento e mantêm a concentração.

“O cérebro do bebê e o da criança não processam o futuro, só o presente”, explica o neurocientista Fernando Louzada. “Já o dos jovens, por ainda estar com essas áreas em desenvolvimento, se satisfaz mais com os resultados imediatos, conquistas e feedbacks instantâneos”, revela. Uma coisa ele garante: multifocados eles não são. “Só existe um sistema atencional no cérebro e se ele está focado em uma coisa, não fará outras, a não ser que seja no automático, sem prestar atenção.”

Considerando a explicação neurocientífica, o aparato tecnológico atual caiu como uma luva para a faixa etária que vai do zero à adolescência: traz respostas rápidas, prontas e recompensas imediatas (no caso dos games isso fica evidente). Uma combinação perfeita. “Nós adultos ainda estamos perplexos com tantas novidades. Para os pequenos, o mundo digital é natural – eles não imaginam como podíamos viver sem o Google, o YouTube ou o WhatsApp”, diz José Moran, professor aposentado de novas tecnologias da USP.

Para Moran, essa mudança implica diretamente a forma de aprender: enquanto os adultos organizam o mundo em textos, em arquivos, em esquemas, os mais novos estão aprendendo com imagens, histórias, realidade aumentada e 3D. “O texto vem depois, como uma espécie de âncora, de complemento, não de ponto de partida”, define.

O problema, como pontuou o vovô Zuenir Ventura, é se o uso tecnológico como um fim é suficiente. “O que as crianças aprendem rapidamente é a operar os aparelhos, não necessariamente o conteúdo que transmitem”, pontua José Leon Crochík, professor do departamento de Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP. “Aprende-se a obedecer aos comandos da máquina para que esta funcione; assim, não são as crianças que operam a máquina, mas o oposto – o que deveria ser motivo de preocupação, pois, o que há, predominantemente, é adaptação do usuário à máquina e não desta ao usuário”, dispara.

A frase do psicólogo não é um alerta alarmista sobre os males da tecnologia nem propõe ameaças futuristas da robótica. É um alerta para que pais e professores não se deixem levar pelo deslumbramento com a capacidade dos pequenos de “aprenderem sozinhos”. Afinal, a geração smart não é necessariamente inteligente. “A determinação dos pais e de professores sobre a formação dos filhos e alunos diminuiu. Hoje, essa formação ocorre, sobretudo, por meio das diversas informações contidas no mundo virtual, dando a impressão de que as crianças e os jovens são mais autônomos para aprender, mas não o são”, critica Leon. “Pois a autonomia não é prévia ao conhecimento, só se é autônomo quando se conhece bem o domínio no qual se atua.” Daí a necessidade da mediação do adulto na aprendizagem – desde a primeiríssima infância, até os últimos anos do ensino médio.

Uma extensão do espaço social

Lev Vigotski (1896-1934) e seu sociointeracionismo já nos alertavam: o ser humano aprende, amadurece e se desenvolve a partir de relações com outro ser humano. “Por mais fascinante que seja a tecnologia – e ela é -, nosso cérebro não foi construído para evoluir de outra forma que não seja pela interação social”, diz o neurocientista Fernando Louzada, da UFPR. Mas, num contexto em que o uso da tecnologia é um caminho sem volta, vale a máxima: em vez de nos tornarmos escravos da máquina, façamos com que ela nos sirva. Logo, se as redes sociais ajudam a promover interação e proporcionam encontros entre pessoas que vivem distantes umas das outras, por que não explorá-las?

Em uma pesquisa feita sobre os jovens brasileiros, ficou claro que as possibilidades de se comunicar e interagir foram uma das maiores benesses trazidas pelas redes sociais. O estudo Juventude conectada, realizado pela Fundação Telefônica Vivo em parceria com o Ibope e a Escola do Futuro, da USP, foi feito com 1.440 jovens entre 16 e 24 anos de todo o país, contemplando todas as classes sociais. Perguntados sobre o que fazem na internet, a principal atividade citada foi se comunicar – na frente de atividades de lazer e de educação. Nessa mesma pesquisa, os jovens se mostraram muito simpáticos aos professores que postam conteúdo das aulas nas redes sociais e que, principalmente, se colocam à disposição para interagir também no plano virtual. Mais que um instrumento de pesquisa, no qual os estudantes usam os buscadores para solucionar suas questões escolares, a internet é uma extensão do espaço social escolar.

Nelson Pretto, professor de educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), já falava sobre a relação entre tecnologia e educação em 1994, quando a internet comercial sequer existia no Brasil. Sua tese de doutorado, que virou o livro Uma escola sem/com futuro: educação e multimídia (disponível para download em academia.edu), já tratava o avanço tecnológico como um fato inexorável. Cabia, ainda nos anos 90, aos sistemas de ensino e aos corpos pedagógicos qual futuro eles sonhavam para si, com ou sem tecnologia. Vinte anos depois, passou da fase de dizer se é bom ou ruim – é fato. “Agora cabe aos pais, professores e educadores em geral puxar para o outro lado e dizer: moçada, vamos ficar um pouco off para refletirmos? Isso é muito importante”, alerta Pretto. Moran, que também trata do tema há décadas, faz coro ao colega. “O uso intensivo dessas tecnologias é contraproducente, como tudo o que é feito em excesso. A criança precisa combinar as tecnologias digitais com as analógicas, os jogos virtuais com os jogos físicos, as telas com o papel, a escrita digital com a manual. Quanto mais variedade de estímulos, caminhos, roteiros, mais riqueza de aprendizagem.”

Por outro lado, proibir o uso de celulares na sala de aula, não permitir o acesso à internet na escola ou demonizar as redes sociais como um campo de alienação e bullying não vão ajudar a melhorar a qualidade da educação, defendem os especialistas. “Sabe o que os meninos começaram a fazer nas escolas da Bahia? Passaram a levar dois celulares. A professora confisca o primeiro e eles sacam o segundo. Não tem jeito, é da juventude criar estratégias de burlar o sistema”, diz Moran, rindo e recordando que sua geração totalmente off também tinha suas maneiras de buscar distrações, como a técnica de levar livro erótico dentro do livro de biologia.

 Dispersos ou multifocados?
A exposição constante a uma variedade simultânea de informação torna as pessoas mais dispersas ou amplia a capacidade de responder muitas tarefas ao mesmo tempo? “Pode-se dizer que hoje há uma ”desatenção atenta” provocada pela união desses meios”, aponta José Leon Crochík, professor do departamento de Psicologia da Aprendizagem e do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da USP. “É uma geração dispersa, mas todos os estímulos dão mensagens similares e, portanto, são fixadas em nossa memória.” De tanto ver uma mesma mensagem, a pessoa acaba assimilando a informação, de forma que a repetição compensa a dispersão. O problema, para o professor, é que ela não permite o aprofundamento necessário para a compreensão dessa informação.

Leon lembra que a preocupação com o excesso de estímulos não é nova – Charles Baudelaire, autor de As flores do mal, já registrava esse fenômeno na Paris do século 19. No entanto, acrescenta o professor, o aumento constante desses estímulos pede por novas formas de recepção que são cada vez mais superficiais e sem relação com a vida e os desejos das pessoas. “O apressamento da vida que solicita tarefas sem fim faz com que não tenhamos tempo para o que nos faz sentido”, diz. A sensação final é a de irritação, de que tudo é feito pela metade, de que não deixa nenhuma marca e que o tempo investido naquela tarefa foi em vão.

Também não é novidade que as tecnologias seduzem gerações e gerações com suas novas narrativas, multilinguagens e multitelas. Foi assim com o cinema, com a TV e agora com a internet. “As tecnologias móveis multiplicam possibilidades e distrações num nível nunca antes experimentado, e não só nas crianças, nos adultos também”, destaca José Moran, professor aposentado da USP. Nesse panorama onde tudo é cada vez mais rápido e fluido, fica difícil fazer com que essa nova geração aprenda como quer a escola tradicional: com um assunto de cada vez, que vai sendo aprofundado por etapas. “É muito difícil concentrar-se em algo mais abstrato, mais distante desse imediatismo e, principalmente, se as crianças e jovens não percebem uma utilidade imediata em suas vidas”, reforça Moran.

 

 Ler no papel ainda é melhor
Ferris Jabr*

Como exatamente a tecnologia que usamos para ler altera a forma de ler? Desde pelo menos a década de 80, pesquisadores das áreas de educação, medicina, psicologia, engenharia da computação, biblioteconomia e ciência da informação já publicaram centenas de estudos explorando as diferenças no modo como as pessoas leem no papel e na tela.

Antes de 1992, a maioria dos experimentos concluía que as pessoas acompanham os textos em telas mais lentamente e memorizam menos conteúdo. Com a melhora na resolução de equipamentos de todos os tipos, porém, apareceram resultados mais variados. Pesquisas recentes sugerem que embora a maioria ainda prefira o papel – especialmente quando precisam se concentrar por muito tempo -, o comportamento está mudando. Atualmente nos Estados Unidos, os e-books representam 20% de todos os livros vendidos para o público em geral. Segundo a 3ª edição da pesquisa Retratos da leitura no Brasil, realizada em 2012 pelo Ibope Inteligência, o país já tem 9,5 milhões de leitores de e-books, aproximadamente 5% da população.

Apesar de a tecnologia estar cada vez mais popular e acessível, a maioria dos estudos publicados desde o início da década de 90 confirma as conclusões anteriores: o papel ainda oferece vantagens sobre a tela como meio de leitura. Reunidos, experimentos em laboratório, pesquisas e relatórios de consumo indicam que equipamentos digitais impedem as pessoas de navegar textos longos de modo efetivo e podem sutilmente inibir a compreensão.

Comparada ao papel, a tela pode exigir mais recursos mentais enquanto lemos e dificultar a fixação de lembranças sobre o que lemos. Conscientemente ou não, as pessoas se aproximam dos computadores e tablets com um estado mental menos aberto ao aprendizado que com o papel. Os e-readers também não conseguem reproduzir a experiência tátil da leitura em papel – e muitos se sentem desconfortáveis com isso.

* Trecho da matéria Por que seu cérebro prefere o papel, publicado pela revista Mente e Cérebro de maio de 2014 (nº 256).

 

 Ler por quê?
“A leitura é uma das atividades que mais envolvem as diferentes partes do cérebro”, explica a neurocientista Carla Tieppo, professora da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo. Logo, se ela não é incentivada, treinada ou estimulada, as áreas terciárias do cérebro, a parte mais sofisticada da nossa arquitetura cerebral – só os seres humanos a possuem – não são desenvolvidas. E quanto mais circuitos neurais se constroem por todo o cérebro, mais elaborada é nossa visão do mundo. Ler significa não só decodificar palavras, mas também imagens, símbolos, falas.

O impacto da linguagem escrita é tão forte em nossa formação que basta lembrar o salto que o cérebro humano deu quando ela foi criada. A maior parte dos animais só têm as áreas primárias, por onde as informações chegam (como o rato). Outros possuem também a secundária, que elabora a informação recebida na primária (como o gato).

No contexto atual, no qual os estímulos chegam das mais variadas fontes, é preciso ter atenção redobrada às atividades que exijam um pouco mais de esforço mental. Especialmente com as crianças, que ainda estão com o cérebro em construção. “O estímulo por si só, se não for organizado, entendido, se não gerar uma experiência, só trará estresse”, explica Carla. Além da leitura, a neurocientista lembra que a música e a matemática são outras atividades que fazem a massa cinzenta trabalhar intensamente.

Autor

Débora Rubin


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