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Edição 228

Aprender química pra quê?

Quem leciona a disciplina pode se confrontar com essa dúvida dos estudantes. Será que a química é tão imperceptível na vida deles? Ou algo precisa mudar no jeito de ensinar?

Publicado em 04/04/2016

por Marta Avancini

© iStockphoto
Em grupo: o ensino de química deve privilegiar pesquisa, trabalho coletivo e experimentos simples

Nos bancos escolares, é muito comum os alunos questionarem o porquê de estudarem esta ou aquela disciplina. Com a química, isso parece ser ainda mais pontual. Quem leciona a matéria no ensino básico constantemente é confrontado com essa dúvida. Mas será que a importância da disciplina é assim tão imperceptível? Ou a questão é a forma como ela tem sido abordada em sala de aula? A química, tal como a conhecemos hoje, é um corpo de conhecimento construído ao longo do processo civilizatório capaz de nos ajudar a compreender processos que nos afetam diretamente na vida cotidiana. Do ar que respiramos à água que bebemos, passando pelo combustível que usamos nos veículos que nos locomovem e pelo tratamento do lixo que produzimos em nossas casas, tudo envolve a química. “No entanto, nem sempre isso é visível e ela permanece distante das ações cotidianas e das nossas práticas sociais”, afirma Eduardo Mortimer, professor e pesquisador da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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O ensino dessa ciência na Educação Básica tem muito a ver com essa desconexão: metodologias pedagógicas baseadas nos conceitos químicos, na repetição de fórmulas didáticas e uma visão excessivamente formal da disciplina são alguns elementos que colaboram para que os estudantes cresçam acreditando que a disciplina não serve para nada. Como reitera Mortimer, na escola, essa área do conhecimento costuma ser tratada apenas do ponto de vista formal, deixando de lado os fenômenos reais. “Nessa química de quadro-negro tudo é possível, mesmo fenômenos raros, como a reação entre dióxido de carbono e água para formar ácido carbônico, que ocorre apenas em pequenas proporções nas condições atmosféricas”, exemplifica o pesquisador.

Momento de transição

Essa realidade, presente em grande parte das escolas, contraria as novas perspectivas para o ensino da matéria. De acordo com a versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) colocada em consulta pública pelo MEC, a química deve ser trabalhada a partir de problemas e fenômenos do dia a dia. O objetivo é dar condições aos jovens de participar, de forma crítica, dos debates do mundo contemporâneo, como os que envolvem as mudanças climáticas e o uso de agrotóxicos. “O ensino de química está numa fase de transição. Já não são tão usuais as metodologias focadas nas informações e no uso de regras. Atualmente, a ênfase é maior nos conceitos, na compreensão dos fenômenos e nos processos relacionados à aplicação da química”, conta Rodrigo Liegel, doutor em Química pela Universidade de São Paulo (USP) e professor do ensino médio.

Apesar dos avanços das pesquisas, esse modelo ainda não está estabelecido no Brasil, e muitos professores não sabem ao certo como fazer. “A maior dificuldade reside na metodologia peda­gógica. As aulas ainda são muito focadas no conteúdo e, para dar conta da quantidade de conceitos e informações, elas são, principalmente, expositivas”, complementa ele. Essa metodologia, centrada na exposição dos conteúdos, dificulta o envolvimento dos alunos, desestimulando o interesse pela disciplina.

E tem mais: o vestibular tem um peso nessa característica do ensino de química. Apesar da influência positiva do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) no sentido de propor uma abordagem mais vinculada ao cotidiano, predomina um modelo de exame de seleção para o ensino superior que enfatiza mais os conceitos do que a aplicação do conhecimento. “O vestibular acaba sendo um pretexto para não se mudar o ensino”, analisa Liegel.

Participação ativa

A participação ativa dos alunos parece ser, na visão de estudiosos, uma das chaves para tornar o aprendizado da disciplina mais relevante. Mortimer, autor de um livro didático da área, exemplifica de que maneira isso pode ocorrer: uma é envolver os estudantes em atividades experimentais simples, nas quais eles possam expressar suas visões e colocá-las em diálogo com outros pontos de vista e com a visão da ciência.

Outra, relacionada a esta, é estabelecer diálogo com as concepções prévias dos alunos. Já existe, segundo o educador, uma vasta literatura sobre concepções informais ou alternativas de estudantes que, baseadas em estudos sobre ensino de química, “adivinham” as concepções que eles vão apresentar sobre determinado conceito, colocando-as em diálogo com a visão científica.

Uma terceira dimensão é a realização de atividades em grupo. “O estudante fica mais livre para expressar opiniões, o que desenvolve as habilidades de ouvir, negociar consenso, respeitar a opinião alheia, argumentar e procurar justificativas racionais para as opiniões”, analisa Mortimer, enfatizando que esse tipo de prática ainda produz impacto sobre a formação global do adolescente e não apenas na área da química.

Desafios múltiplos

Esse tipo de proposta esbarra em empecilhos de várias naturezas: a concepção que se tem da ciência química, a qual se vincula a uma metodologia pedagógica tradicional, a linguagem adotada pelos professores na sala de aula e pelos livros didáticos, além da formação e das condições de trabalho dos docentes.

O ensino tradicional pode ser definido como aquele preso unicamente aos conceitos, muitas vezes simplificados, e estaria relacionado a um processo histórico de repetição de uma metodologia didática teoricamente bem-sucedida: fazer com que os alunos aprendam procedimentos. O contraponto desse sucesso, porém, é a transformação da disciplina num manejo de pequenos rituais. Por exemplo: exercícios nos quais os alunos têm de distribuir elétrons por níveis, subníveis e orbitais ou atividades nas quais os estudantes classificam cadeias carbônicas, substâncias simples e compostas. “A repetição acrítica dessas fórmulas didáticas dá resultado, mas acaba por transformar a química escolar em algo cada vez mais distante de suas aplicações na sociedade”, diz Mortimer. Nessa perspectiva, o papel do estudante se resume a tentar achar um fio oculto capaz de desatar esse emaranhado de definições, classificações e fórmulas.

A professora Maria Eunice Marcondes, do Grupo de Pesquisas em Educação (Gepec) da USP, considera que a dificuldade que crianças e jovens enfrentam para compreender o sentido da química se deve à linguagem. “Muitas vezes, a ênfase dada pelos professores, e por muitos materiais didáticos, ao ensino é colocada na linguagem: a nomenclatura e as classificações parecem fazer pouco sentido para o aprendiz, dando a falsa impressão de que a ciência não serve para nada”, analisa. Em sua opinião, a nomenclatura e as classificações podem ser apresentadas, mas em contextos amplos, contribuindo para a compreensão do todo. Outro exemplo: entender a chuva ácida envolve conhecer as substâncias que, ao interagirem com a água, a tornam ácida, as fontes dessas substâncias e o processo. “O processo pode ser representado por meio da linguagem específica, ou seja, as equações químicas que representam as transformações envolvidas. Mas também é preciso conhecer meios para evitar o problema e discutir possíveis soluções”, argumenta.

A formação do professor, somada às condições de trabalho e à infraestrutura das escolas, tornam o cenário mais complexo. A formação, especialmente a inicial, necessita de mais atenção, tanto no que diz respeito aos conteúdos científicos, quanto no campo pedagógico. “Há uma estrita relação entre saber e saber fazer, que não pode ser negligenciada na formação do futuro professor”, analisa Maria Eunice. Afinal, para o professor comandar uma aula de modo que o aluno investigue e participe da construção de sua aprendizagem, o docente precisa ter muita segurança nos conceitos, além de ser capaz de criar situações de aprendizagem a partir da participação e da elaboração do aluno. “Essa aula tem mais chance de sair do controle, ou seja, de aparecerem mais questionamentos, novas ideias”, provoca Rodrigo Liegel.

Processo pedagógico

A ideia, então, é partir do concreto para o abstrato, das observações de fenômenos e leis empíricas para a construção de modelos, motivando o aluno para que ele perceba que aquilo que está aprendendo é útil para resolver algo. Por isso, é importante utilizar o espaço do laboratório de forma adequada (veja box ao lado) e oferecer problemas que sejam relacionados com o cotidiano – não necessariamente do aluno, mas da sociedade, de uma empresa química ou de um laboratório farmacêutico.

Contextualizar, contudo, não significa simplesmente tratar de temas e questões que tenham a ver com o cotidiano. Mortimer defende que mesmo algo distante da vida do aluno ou abstrato pode ser contextualizado, ganhando sentido – desde que seja referenciado. O átomo, por exemplo, que é um conceito fundamental da disciplina, pode ser contextualizado por meio da história das ciências, das idas e vindas dos diversos modelos elaborados para explicá-lo.

Dessa forma, os alunos ganham consciência de que os conhecimentos químicos podem contribuir em posicionamentos pessoais e coletivos relacionados a problemas e questões sociais ligadas à química, defende Maria Eunice. Afinal, toda pessoa tem o direito de saber sobre a qualidade da água que consome ou do ar que respira. E deveria ser capaz de se posicionar frente a questões como o tratamento do lixo urbano e as implicações do uso de combustíveis de fontes renováveis, por exemplo.

 O lugar do laboratório
A apresentação dos conteúdos de maneira contextualizada e a ênfase no ensino partindo do concreto para o abstrato também podem favorecer o interesse e a aprendizagem dos alunos. Nesse cenário, o laboratório se torna um dos pilares do ensino por investigação. Mas não da maneira como ele costuma ser utilizado: quer dizer, o laboratório deve ser usado a partir de situações-problema para motivar o aluno e não como um espaço ao qual o estudante vai apenas para comprovar uma teoria que já conhece.  Ou seja, a aula prática não deve se resumir à demonstração de uma teoria – o que torna a aula maçante -, mas deve funcionar como um espaço de elaboração de hipóteses, que são colocadas em diálogo com os resultados dos experimentos, levando os alunos a conclusões. Dessa forma, a química passa a ser vinculada a fenômenos reais. “Os alunos devem ser convidados a expor suas ideias e a resolver problemas que requeiram conhecimentos que já possuem e que os levem a descobrir coisas novas, além de mobilizar habilidades mais elevadas do que a memorização ou a aplicação de fórmulas”, afirma Maria Eunice, da USP.

 

Autor

Marta Avancini


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