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Ataque virtual

Na esteira da web 2.0., que dedica espaço crescente às produções do internauta, o ambiente digital é mais um cenário de conflitos entre alunos e educadores

Publicado em 10/09/2011

por Valéria Hartt

A sala de aula está na internet, e com um repertório nada pedagógico. Gravada por câmeras digitais e telefones celulares, vira vídeo nas páginas do portal You Tube, ilustra blogs, fotologs, listas de discussão e comunidades do Orkut. E o que se vê em parte desse conteúdo digital dá nova dimensão ao debate em torno da violência nas escolas e dos conflitos na prática pedagógica. A um clique do mouse, ameaças, cenas de humilhação, ofensas e agressões morais ao professor.
 
Em Americana, interior de São Paulo, uma professora de escola particular foi à Justiça protestar contra uma comunidade do Orkut. O Promotor da Infância e Juventude, Rodrigo Augusto de Oliveira, acolheu a queixa. "Ela se sentiu ofendida e exerceu o seu direito", declarou. Dois alunos foram punidos com medidas socioeducativas.  "Estamos falando de adolescentes que praticaram um ato descrito em lei. A internet é um instrumento do nosso tempo, mas ninguém está livre de responder pelos seus atos só porque está atrás do monitor do computador. Tudo começa como uma grande brincadeira, mas a ofensa é deliberada", diz.

Não é o primeiro caso. Em 2004, processo semelhante chegou à Justiça fluminense, envolvendo uma escola religiosa de Teresópolis e uma página criada no Orkut por um ex-aluno. A sentença do juiz Roque Fabrício de Oliveira Viel também foi favorável à escola. Mas em muitas situações não é o que acontece.

"O professor tem receio de denunciar", diz o delegado Ubiracyr Pires da Silva, titular da delegacia de crimes eletrônicos, a única da capital paulista. "No fim do ano, antes das provas ou quando têm de fechar as médias, as ameaças pela internet aumentam. Eles vêm ao distrito, pedem informações, mas não retornam quando orientados a fazer uma representação ou registrar um boletim de ocorrência", revela.

O Sinpro, sindicato que representa os docentes da rede privada do Estado, confirma a percepção do policial, assim como o promotor Augusto Rossini, do Ministério Público de São Paulo. "O professor se sente à mercê do aluno. É uma conclusão inexorável, porque seu emprego está em risco. Se nada for feito, será como um balão que enche aos poucos e um dia vai estourar", compara Rossini, autor do livro Informática, Telemática e Direito Penal (Memória Jurídica, 2004).


Amplitude

O fenômeno não é local. Em novembro de 2006, a sociedade italiana assistiu pela TV à transmissão de alguns vídeos gravados em escolas e divulgados pela internet. Cenas que levaram o ministro da Justiça italiana a propor medidas de emergência, e o ministro da Educação, Giuseppe Fioroni, a questionar como é possível que uma instituição de ensino "não veja e não ouça". Guardadas as dimensões, uma vez que o problema na Itália envolveu até episódios de violência sexual entre alunos, a questão aqui também parece um tabu a ser quebrado.

Em Belo Horizonte, um colégio renomado, em bairro nobre da cidade, preferiu pôr panos quentes e abafar um episódio recente, que circulou como rastilho de pólvora entre os alunos e suas comunidades digitais. O coordenador pedagógico teve furtada sua agenda pessoal logo após um conselho de classe, com todas as anotações registradas no encontro. Opiniões que os docentes externam apenas aos seus pares, resguardados do olhar dos alunos, chegaram à web, escaneadas a partir da tal agenda. O estrago foi grande, mas a escola preferiu silenciar.


Omissão

Outro episódio demonstra que o problema não está restrito às instituições privadas. Em São Paulo, um grupo de alunos da Escola Estadual Prof. Benedito Tolosa, na zona norte, levou para a internet cenas de insultos e agressões filmados no ambiente escolar. A gravação virou um vídeo com pouco mais de três minutos de duração (Tomando Bronca da Tia e Sendo Expulso), veiculado no portal You Tube (
www.youtube.com

). Convidada pela reportagem a se pronunciar sobre o assunto, a Secretaria de Estado da Educação informou que a escola em questão não contatou a Supervisão da Diretoria de Ensino para formalizar qualquer reclamação ou pedido de apuração dos fatos.

 "Não é um problema pontual. Vem crescendo, mas o professor muitas vezes finge que não liga, porque ali está em jogo sua auto-estima, enquanto  a escola, de certa forma, prefere não se expor", admite Carla Miller, coordenadora pedagógica da área de Ciências Humanas do Colégio Pitágoras Cidade Jardim, na capital mineira. "Não podemos fechar os olhos para o que está acontecendo e nos omitir para evitar um embate com o aluno. É uma nova demanda que chega à escola e ela precisa instrumentalizar-se para lidar com isso", propõe.

O Colégio, também alvo de comunidades virtuais, começa a levantar a questão na própria sala de aula, seguindo o caminho já trilhado por outras instituições de ensino. A proposta é começar a discussão na disciplina de Ética e levá-la a outros conteúdos da grade curricular. "Mas não é um problema só da escola e, menos ainda, isoladamente do professor", ressalva a coordenadora. "É uma discussão muito ampla, que passa por valores fundamentais que estão faltando à própria sociedade, como respeito, ética, sentido das regras e limites. A escola não deve ser a única guardiã desses valores", afirma.


Amparo legal


José Roberto Heloani, da Unicamp e da FGV: é preciso que a direção das escolas atue como mediadora e ajude o professor

O aluno aponta uma arma contra a cabeça da professora. Sentada à mesa, de frente para a classe, ela nem desconfia da ameaça, enquanto o jovem se diverte ao gravar a cena que ilustra um vídeo do You Tube (Gustavo ameaçando professora). Difícil saber quem são os personagens e a escola a que pertencem.  Mas está ali, para quem quiser ver. Ainda que pareça uma brincadeira, a atitude do aluno não é inofensiva.

"É da maior gravidade", qualifica o delegado Ubiracyr Pires, da delegacia de crimes eletrônicos. "O porte de arma é crime inafiançável se cometido por adulto. No caso de menores, a gravidade é a mesma e nada mais justo que esse jovem seja tratado como previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente, que considera inclusive a internação do menor infrator." A atitude do tal Gustavo pode ter implicações legais mesmo que ele tenha usado no vídeo uma arma de brinquedo. "Nesse caso, é apologia ao crime, o que também configura ato infracional por envolver um adolescente", diz.  A professora ainda poderia denunciá-lo por ameaça e registrar um boletim de ocorrência.

"É preciso desmistificar a idéia de que os crimes pela internet ficam impunes. A própria conformação da rede permite o rastreamento e, apesar de alguns vazios legais, 95% dos casos são previstos pela legislação atual", diz  Augusto Rossini. O promotor recorre ao artigo 103 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que prevê o ato infracional, e lembra que o professor ofendido por conteúdos veiculados na internet tem amparo legal em artigos do Código Penal que tratam dos crimes contra a honra (calúnia, injúria e difamação).

"Diante de uma denúncia sobre determinada comunidade do Orkut, por exemplo, é possível  juridicamente exigir da empresa que representa o Google no Brasil que retire a página do ar imediatamente", explica Rossini. "O professor, assim como qualquer cidadão, precisa se apropriar desse direito, levar o problema à direção da escola, às entidades de classe, e formalizar sua denúncia", recomenda.

Com exceção de casos extremos, a conduta da Vara da Infância e Juventude tem privilegiado a aplicação de medidas socioeducativas. "São estudantes em processo de formação e o papel da promotoria também é alertar para o bom uso da internet, conscientizá-los dos perigos do mau uso e aplicar medidas que tragam o senso de cidadania", diz o promotor de Americana, Rodrigo de Oliveira.


Solução pedagógica

"Não acho que seja um problema a ser levado pela escola para a esfera legal, embora, como pessoa física, reconheça que esse é um direito. A escola precisa encontrar uma solução pedagógica e não se fingir de surda ou cega. É preciso esgotar os canais disponíveis e atuar nessas tensões", diz a diretora-geral da Móbile, em São Paulo, que por duas vezes enfrentou problemas relacionados à internet.

Em 2004, um grupo de alunos criou a página Vamos explodir a Móbile. "Identificamos os alunos e os chamamos para uma conversa. Claro que eles falavam metaforicamente, mas explicamos o sentido daquela ameaça, que também mencionava duas professoras da escola", diz a diretora Maria Helena Bresser. "Apontamos a eles também as implicações jurídicas e mostramos que a palavra machuca e pode causar muito sofrimento." Ninguém foi expulso, ninguém saiu da escola no ano seguinte e os alunos se encarregaram de tirar a  página do ar.

Em 2005, outro problema. Uma aluna do Móbile foi vítima de perseguição e recebeu ameaças, via internet, de outras adolescentes da turma. "Fizemos uma intervenção muito firme e o pai da aluna que se sentiu ameaçada foi ao Conselho Tutelar. As envolvidas na agressão foram chamadas para uma conversa com o  conselheiro tutelar, mas a história parou aí", relembra Maria Helena.


A raiz do problema

Para  o psicólogo José Roberto Heloani, da Faculdade de Educação da Unicamp e professor de psicologia do trabalho da Fundação Getulio Vargas, a violência escolar via internet remete a uma questão antiga: "É preciso chegar à raiz do problema. A identidade do professor tem se deteriorado e a representação que a sociedade faz hoje da categoria deixa muito a desejar. O adolescente sabe interpretar a nossa realidade e vê o professor como um fracassado, alguém que não conseguiu se inserir socialmente de forma lucrativa e honrosa", acredita.


Ubiracyr Pires da Silva, titular da delegacia de crimes eletrônicos: professores vão ao distrito, se informam, mas raramente denunciam os alunos que os ameaçam

Debruçado sobre outro tema que vem ganhando destaque – o assédio moral, que pesquisa desde o ano 2000 ao lado de Margarida Barreto, mestre em Psicologia Social pela PUC-SP e autora do livro Uma Jornada de Humilhações (Educ) – Heloani acompanha de perto a realidade do educador. E garante: nenhuma escola está imune ao problema.

"Pode ter uma freqüência maior ou menor, mas a tensão existe. Há escolas com atos abomináveis de violência, em que o professor é agredido das mais diversas formas, inclusive as camufladas pela internet", sustenta. "A direção da escola precisa assumir seu papel como mediadora, assim como os pais, todos de uma geração para quem a internet é muitas vezes uma incógnita", entende o especialista.  "Reprimir e expulsar não adianta, mas não se pode pretender que o professor resolva tudo sozinho", adverte.


Cultura digital

Regina Célia Prandini, doutora em Psicologia da Educação pela PUC-SP, concorda com a avaliação sobre a desvalorização do professor, mas acrescenta um novo ingrediente à conjuntura. Para ela, os novos padrões da cultura digital permitem entender o cenário a partir de outra vertente, com o esfacelamento de valores até pouco tempo consagrados.

"A internet cria uma nova cultura, que muda os limites entre o público e o privado. Tudo para o universo adolescente vira público e vai para a internet, enquanto o privado praticamente não existe", observa.

Mestres no repertório digital, os alunos dominam a cena e invertem a lógica das salas de aula. No mundo virtual, são eles que estão no controle e detêm o conhecimento, muito à vontade com os novos códigos que tanta estranheza causam a uma geração de pais e professores.

"Em alguns casos, o aluno mascara essa agressividade na escola e libera pela internet, onde, teoricamente, conta com o anonimato e tem a sensação da impunidade", acredita Carla Miller, do Pitágoras Cidade Jardim. Também acontece, mas não se pode perder de vista que o problema da violência tem dimensões bem concretas e visíveis no mundo real.

Diante de tantas tensões, é possível reconciliar educador e aluno e dar fim à progressão de ofensas também via internet?

"É um problema muito complexo e falar de soluções prontas seria como identificar a saída imediata para a violência urbana ou o desemprego", diz Prandini, que em tese de doutorado analisou a atuação docente frente às novas tecnologias. "Estamos sendo atropelados e o professor ainda mais, mas a familiarização desse educador com o ciberespaço pode ajudar", sugere.

Autor

Valéria Hartt


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