NOTÍCIA

Ensino Fundamental

Começo de jogo

A presença ainda tímida dos videogames no ambiente escolar contrasta com o sucesso que eles fazem entre crianças e adolescentes. Para especialistas, professores precisam se abrir para encontrar um aliado nesse fenômeno

Publicado em 13/08/2011

por Gabriel Jareta

Entre os entusiastas dos videogames, é bem conhecida a história de como Shigeru Miyamoto, responsável pela criação dos principais jogos da gigante Nintendo, se inspirou nas suas próprias aventuras de infância num vilarejo rural do Japão – caminhando por florestas de bambu ou explorando cavernas com uma lanterna – para imaginar e desenhar os cenários e desafios de séries como Super Mario Bros e Legend of Zelda, sucessos desde quando foram lançados na década de 1980. Para Miyamoto, os games deveriam tentar reproduzir essas sensações de encantamento e desafio que a brincadeira infantil proporcionava. “Qualquer que seja a interface, um grande game convida e recompensa a obsessão, e os games de Miyamoto são amplamente considerados entre os grandes”, diz o trecho de um perfil da mente criativa da Nintendo publicado na revista The New Yorker no final de 2010.

De fato, pais e professores sabem já há algum tempo o quanto os games podem ser uma obsessão no cotidiano dos filhos e alunos. Não por acaso, o senso comum aponta o videogame como um obstáculo ao estudo – já que exige tempo, dedicação e energia –, e ainda mais: enxerga em alguns jogos um estímulo ao comportamento violento. Como resposta a esse temor e ao próprio desconhecimento dos educadores, aos poucos vai ganhando força entre pesquisadores uma corrente contrária, segundo a qual os jogos eletrônicos podem se transformar em um aliado para o processo de ensino e aprendizagem. Isso porque eles podem estimular o encantamento pela descoberta e a “obsessão” por cumprir os objetivos, questões tão caras aos games como os de Miyamoto.

A incorporação dos games ao ambiente escolar também acontece por conta da expressividade do fenômeno entre as crianças e os adolescentes. A indústria de videogames movimentou mais de US$ 25 bilhões em 2010 apenas em vendas nos EUA, de acordo com a Entertainment Software Association. Para se ter uma ideia, um lançamento como Call of Duty: Black Ops, de orçamento semelhante a um filme blockbuster, chegou a vender sete milhões de cópias em apenas 24 horas no dia do lançamento, em novembro do ano passado. “Das crianças até o ensino médio, computador e videogame são coisas naturais. O problema é que onde estão as maiores possibilidades, é onde a escola menos explora”, observa Denio Di Lascio, professor de game design do curso de tecnologia em jogos digitais do Senac, em São Paulo.

No Brasil, enquanto o uso de games na educação corporativa e no ensino superior vai adquirindo cada vez mais importância, com dezenas de fabricantes 100% nacionais, a experiência com jogos eletrônicos em sala de aula na Educação Básica ainda se resume a iniciativas pontuais e com pouca ligação com o conteúdo programático. Para Di Lascio, essa é uma questão que envolve principalmente o desconhecimento do professor sobre as possibilidades dos videogames. “A maioria mal sabe do que as crianças estão falando”, aponta. Da mesma maneira, na opinião dele, as políticas públicas ainda estão na fase de prover as escolas de computadores – com mais preocupação com o equipamento do que com o conteúdo que será utilizado.

80% diversão
Uma das principais pesquisadoras do tema no Brasil, Lynn Alves, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), acredita que, como regra geral, o jogo eletrônico deve ser encarado como um pretexto para discussões de conteúdo, tal como um filme ou um livro. “A escola não deve se transformar numa lan house”, diz. Coordenadora do grupo de pesquisa Comunidades Virtuais, voltado para a relação entre games e educação, Lynn afirma que a imersão provocada pelo videogame e as possibilidades narrativas permitem ao aluno quebrar a rigidez do ambiente escolar e lidar de maneira lúdica com os temas do currículo. Para que isso funcione, no entanto, o game não pode perder justamente as características que atraem tantos usuários. “O jogo não pode se transformar num livro eletrônico. Se isso acontecer, o objetivo se perdeu”, aponta.

Na opinião de Di Lascio, do Senac, há um conceito generalizado de que o game com fins educativos é mais “chato” que um game comercial, do tipo que as crianças e jovens jogam em casa depois da aula. “É aquela história: ou o jogo educa ou o jogo entretém. Mas qualquer jogo, mesmo educativo, tem de respeitar a regra do ‘80% fun’, ou seja, 80% tem de ser diversão”, diz. Para ele, a capacidade audiovisual, os diferentes cenários e a possibilidade de o jogador criar uma “história pessoal” dentro do jogo são as razões que fazem do videogame um meio tão atrativo. “O aluno não aprende nada dando tiro para todo lado, mas mesmo assim esse game pode trazer mais possibilidades e ser mais interessante do que um jogo para ensinar matemática que mais parece um livro eletrônico”, compara Di Lascio.

Em uma conferência TEDx na Universidade da Pensilvânia, em outubro de 2010, a pesquisadora Ali Carr-Chellman apresentou uma palestra sobre como os jogos eletrônicos poderiam ser úteis para despertar o interesse dos meninos de 3 a 13 anos a respeito do conteúdo escolar. Para ela, a escola deu as costas para os interesses dos meninos e se tornou, em geral, um ambiente para meninas – afinal, eles prefeririam dedicar tempo e energia para assuntos como esportes ou videogame. Por isso, defende a pesquisadora, os professores deveriam ampliar as possibilidades do que pode ser discutido em sala de aula e estarem “mais abertos e receptivos à cultura dos meninos”. Isso envolveria, por exemplo, incentivá-los a escrever redações sobre como eles passaram para uma determinada fase em um jogo.

Engajamento
Na prática, o videogame pode fazer parte do cotidiano de sala de aula de duas maneiras: a mais comum é utilizando jogos educativos, desenvolvidos especificamente para o ensino de determinada disciplina ou desenvolvimento de alguma habilidade; a segunda, mais difícil de ser abordada, é valer-se de games comerciais para discutir conteúdo. Algumas iniciativas no Brasil procuram abordar temas do currículo baseados na linguagem dos videogames. É o caso do jogo “Búzios – Ecos da Liberdade”, desenvolvido pelo Comunidades Virtuais com apoio da Uneb e financiamento da Fapesb, órgão de fomento à pesquisa do governo baiano.

O enredo do jogo, que pode ser baixado gratuitamente, acompanha a Revolta dos Alfaiates ocorrida na Bahia no final do século XVIII, um movimento de origem popular também conhecido como Conjuração Baiana. Os personagens precisam resolver “quests” e transitam por ambientes e situações que retratam os antecedentes da revolta e cenários da época (veja quadro abaixo). Outro jogo desenvolvido pelo grupo de pesquisa, chamado “Tríade”, discute a Revolução Francesa em moldes semelhantes. De acordo com Lynn Alves, no entanto, jogos eletrônicos do tipo contribuem muito pouco para o aprendizado se o professor não “construir um sentido” em torno da atividade. E para que os jogos atraiam a atenção dos alunos tanto quanto um sucesso comercial, a pesquisadora Ali Carr-Chellman aponta que ainda é necessário investir mais no design, já que, em geral, os games educativos ainda estão mais próximos de uma série de “flash cards” (similares a cartões de jogo da memória) do que de um videogame de fato. “Eles não têm a profundidade, a narrativa rica e realmente engajadora que os videogames têm e nos quais os meninos estão realmente interessados. Precisamos criar jogos melhores”, afirma.

Em paralelo a isso, os pesquisadores observam que o professor deve ser capaz de trabalhar as informações que os alunos oferecem sobre os games que eles jogam em casa. Não que o professor precise estar atento aos lançamentos do mercado, mas que pelo menos tenha uma visão “acolhedora” a respeito dos jogos eletrônicos. “O professor acaba, sem querer, minimizando a importância que aqueles personagens têm (no dia a dia dos alunos)”, afirma Denio Di Lascio.

Nas aulas de pós-graduação sobre o tema, Lynn Alves também se depara com relatos de docentes que procuram trazer a experiência dos jogos comerciais para o ambiente em que trabalham. Os exemplos mais freqüentes são daqueles que utilizam passagens da narrativa, partes do enredo e personagens para ilustrar o conteúdo ministrado em sala de aula. Na série God of War, por exemplo, o protagonista Kratos e os cenários e situações pelos quais ele transita são baseados na mitologia grega. Já o game Dante’s Inferno traz elementos da Divina Comédia de Dante, assim como inúmeros outros exemplos de títulos que envolvem temas tão variados quanto a formação de sociedades medievais e a Segunda Guerra Mundial. Toda essa variedade de matéria-prima, aponta a pesquisadora, oferece caminhos para o professor trabalhar. “Vejo nos fóruns da internet os alunos discutindo questões da narrativa dos games, eles estão curiosos para saber mais. Então, é possível estabelecer relações e confrontos entre o conteúdo dos games e a história, a literatura, ver se o jogo está sendo fiel ou não”, sugere.

Falta mediação
Para os professores, no entanto, é um desafio adaptar-se à linguagem de uma geração que já nasceu com um joystick nas mãos. No período de testes dos jogos desenvolvidos pelo grupo Comunidades Virtuais, por exemplo, os produtores precisaram criar uma seção de FAQ (frequently asked questions, ou “perguntas feitas frequentemente”) para os professores que tomavam contato com o game, algo desnecessário para os alunos. “Os professores precisam de uma mediação mais efetiva, de ajuda para resolver as ‘quests’. Sem intervenção, o nível de frustração deles é muito alto”, conta Lynn Alves. Por isso, os docentes sentem-se mais à vontade com a linha de videogames familiares ou “casuais”, caso do Nintendo Wii ou do acessório Kinect do Xbox, que reproduzem movimentos das mãos ou do corpo.

Ainda para o trabalho docente, “alfabetizar-se” na linguagem dos videogames pode permitir uma aproximação maior com o universo dos alunos para além do conteúdo. Jogos sociais populares entre as crianças, como o Habbo Hotel, podem dizer muito sobre a capacidade de socialização e a habilidade de gerenciar finanças. Por outro lado, até os títulos não recomendados para menores de 18 anos, como os da série Grand Theft Auto (GTA), podem funcionar como ponto de partida para discutir criminalidade e violência. Diante de tantas possibilidades, não é possível simplesmente fechar os olhos para o fenômeno.

História baiana na tela

A Escola Municipal Antônio Euzébio, em Salvador, é atualmente uma espécie de campo de testes dos jogos eletrônicos desenvolvidos pelo grupo de pesquisas Comunidades Virtuais, da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Por ser de pequeno porte – são cerca de 180 alunos do ensino infantil ao 5º ano – e uma direção aberta a novidades, é um ambiente propício para avaliar o impacto dos games no ensino e aprendizagem. Lá, por exemplo, as crianças passaram a usar o game Búzios: Ecos da Liberdade como auxílio nas aulas de história e cultura afro – o enredo do jogo trata da Revolta dos Alfaiates no final do século XVIII. Antes, porém, os professores tiveram de entender e manusear o jogo. “Os jogos eletrônicos permitem de fato a aprendizagem”, afirma a coordenadora Nohara Vanessa Goes. “Aqueles professores que tinham a visão de que o videogame era só brincadeira passaram a entender as possibilidades.”

Nohara conta que já tinha interesse no tema antes mesmo da parceria da escola com a Uneb – tanto que cursou a disciplina de “jogos eletrônicos” como aluna especial na pós-graduação da universidade. Para ela, a grande questão é como capacitar o corpo docente para lidar com os games. “Eles não tiveram essa experiência de jogar videogame na infância e adolescência, então as dificuldades são notórias, eles não têm toda aquela habilidade. Mesmo assim, a abertura foi muito grande”, conta. Outro desafio é orientar como os recursos proporcionados pelo jogo – a narrativa envolvente, a memória, a interpretação textual, as habilidades motoras – permitem que o videogame seja mais do que um equipamento de informática.

Na prática, conta Nohara, a presença dos games começa a mudar alguns comportamentos. Para estudar a abolição da escravatura dentro da aula de informática, por exemplo, o normal seria os alunos pesquisarem no Google ou na Wikipedia – hoje já podem usar um jogo como o Búzios, em que a imersão na história desperta mais identificação e sentido. Aos poucos, os alunos também começam a levar seus games para a escola, que são avaliados pela equipe antes de serem utilizados – e que podem, inclusive, conter algumas situações de violência. “É uma oportunidade para discutir isso em sala de aula. Não é o jogo pelo jogo, o objetivo não é transformar a escola numa lan house”, ressalta a coordenadora.

Autor

Gabriel Jareta


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