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Arte e Cultura

Um breve mergulho no legado de Paulo Leminski

Conheça um pouco da obra de um dos maiores poetas brasileiros

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Perissé

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O paranaense Paulo Leminski (1944-1989) foi um dos mais ousados escritores brasileiros do século passado. Bastaria mencionar o livro Catatau, de 1975, texto vertiginoso com frases lancinantes, experimentação contínua da linguagem. Numa passagem, Leminski recomenda ao leitor: “repara bem no que não digo”. Trata-se de um romance que não tem nada a contar, mas muito tem a sugerir entre o saber e o signo.

O saber que não está dito, na literatura, pertence ao leitor criar e dizer, é convite a que entre em ação. Somos nós, leitores, convidados a pensar além da conta, além das linhas, além do óbvio, além do prescrito. Quanto mais corajoso for o escritor, mais coragem nos será exigida. Se Leminski testava a literatura em seus limites, cabe também ao leitor, com igual empenho, testar a sua capacidade de interpretar o dito e o nãodito. Ler Paulo Leminski é, portanto, exercício de crescimento e superação.

No poema “Erra uma vez”, de
La vie en close

(1991), livro póstumo, o poeta declarou:

nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez

Para além do trocadilho, o artista da palavra encara o erro como elemento do jogo verbal. Por isso não teme duplicar o “r”, errar mais de uma vez. Por isso brinca com o erro e nele se inspira. Porque somente o erro tem vez. Não teme repetir o erro até que vejamos a importância do fazer e do descobrir. A certeza de que errar é humano deixa de ser uma lamúria, torna-se afirmação alegre da nossa condição. Somente errando é que se aprende. Mas o poeta diz mais: é o próprio erro que deve aprender o seu lugar nessa história, na história do nosso aprendizado.

Escrever para entender sem entender
O lugar-comum, as rotinas mentais, as frases insossas, o comodismo intelectual, a burocracia paralisante, as disciplinas disciplinadoras, as avaliações inválidas, o medo de falhar, o cotidiano entediante, a convivência banal, a informação rasa, tudo isso incomoda o poeta. O poeta, esse mestre do surpreendente, quer uma outra escola. Uma escola poética. Nessa escola impossível (mas necessária), o poeta entende o ininteligível, sem desmanchar o mistério:

entendo
mas não entendo
o que estou entendendo (La vie en close)

O que o poeta não entende e ao mesmo tempo entende? A resposta não poderia ser mais simples e mais generosa: tudo. Tudo: a vida e a morte. Escrever é entender com radicalidade que nada é tão fácil de entender. E daí? O escritor encontra na criação, na literatura, sua razão de viver e morrer, sem esperar respostas apaziguadoras, definitivas:

Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
preciso porque estou tonto.
Ninguém tem nada com isso.
Escrevo porque amanhece,
e as estrelas lá no céu
lembram letras no papel,
quando o poema me anoitece.
A aranha tece teias.
O peixe beija e morde o que vê.
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê? (Distraídos venceremos, 1987)

Como o peixe e a aranha fazem o que têm de fazer, sobrevivendo como peixe e como aranha, sem mais, igualmente o poeta, distraído com os versos que escreve, desprende-se das explicações que pouco explicam. Escreve apenas, e isso não é pouco. E o poeta ganha tempo de vida ao escolher essa vida… Escrevendo por opção (ou por não ter outra opção), tece suas teias e com suas palavras beija e morde o que vê.

O escrever como ato vital, sem finalidades redacionais. Sem um porquê. Sem esperar prêmios ou reprovações. Ou melhor, o porquê e o prêmio estão no próprio ato, as letras no papel brilham como estrelas, sem se preocuparem com mais nada.

Literatura, guerra e amor
Em
Guerra dentro da gente

(1988), há um episódio significativo. O herói (herói é quem sempre aprende) chama-se Baita. Ele se encontra na Grande Cidade. Candidatou-se a ser um dos guardas do Grande Rei. Baita nunca brigou com ninguém… só consigo mesmo. E certa noite, um dos guardas que treinavam os candidatos tentou intimidá-lo:

Baita levantou, ergueu a cabeça e encarou o homenzarrão que veio cambaleando e gritando outros insultos.
O brutamontes parou a dois passos dele e continuou xingando a mãe, o pai, a família, a terra de Baita.
“Palavras”, pensou. “São apenas palavras. Insultos são apenas palavras.”
Mas o gigante veio para cima dele, tentando empurrá-lo para dentro da fogueira. Baita só girou o corpo, sem encostar a mão no brutamontes, que com seu próprio impulso caiu dentro da fogueira.
Em um instante, sua roupa, sua barba e seus cabelos pegaram fogo; ele rolou gritando, levantou, caiu, tentou levantar, caiu de novo e não levantou mais.

Insultos não são palavras, na verdade. São menos do que isso. O jovem Baita perderia a guerra interior se aceitasse brigar com o gigante, se não agisse contra o impulso natural. As palavras que surgem na mente de Baita são as verdadeiras palavras. Baita não precisou xingar o agressor. Simplesmente soube desviar-se, em silêncio, no minuto preciso. Aprendera uma lição importante. Não se deixaria empurrar para o fogo da ira e do ódio, que já queimava por dentro o brutamontes.

O “amor-antídoto”, dizia Leminski na apresentação de
Guerra dentro da gente

, “é um milagre cada vez mais raro”. Mas se toda palavra é um pequeno gesto de amor, se escrever é entregar-se apaixonadamente à criação de palavras que brilham, a literatura vale por si mesma. E torna-se, por sua própria força, ocasião de aprendizado.

A luta com as palavras é uma guerra interior, que abre possibilidades para pensar além do já pensado, entender além do entendimento, sentir novos sentidos. Uma das maiores carências da sala de aula consiste em não experimentarmos, professores e alunos, a força da leitura educadora. A literatura reduzida à mera obrigação é batalha perdida para todos nós.

 

Autor

Gabriel Perissé


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