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Entrevistas

Cronobiologia – os ritmos da vida

Verónica Valentiuzzi explica como professores e alunos podem respeitar os horários fisiológicos e aumentar o desempenho nas diversas atividades de ensino e aprendizagem

Publicado em 21/11/2011

por Marcos Gomes

O estudo sistemático da organização temporal da matéria viva só recentemente ganhou importância na biologia e na ciência em geral. Mas ele tem muito a nos dizer sobre o entendimento da vida e inclusive sobre os aspectos práticos do nosso dia a dia como seres vivos, como a definição dos melhores horários para dormir, estudar, tomar remédios etc. Essa é a opinião da cientista argentina Verónica Valentinuzzi, que desenvolveu parte de sua carreira acadêmica no Brasil. Atualmente ela é coordenadora do Laboratório de Cronobiologia do Centro de Pesquisa e Transferência Tecnológica de La Rioja (Crilar – Centro de Investigación y Transferencia Tecnológica de La Rioja), localizado no semiárido centro-oeste da Argentina. Em entrevista exclusiva, Verónica fala de sua vida profissional e dos últimos progressos da cronobiologia.


Qual o tema de estudo da cronobiologia?
A cronobiologia estuda os ritmos biológicos, assim como os relógios biológicos que geram esses ritmos.Os ritmos biológicos (circadianos, infradianos e ultradianos) se manifestam em todas as variáveis de um organismo (moleculares, bioquímicas, fisiológicas e comportamentais) e em todas as espécies vivas, desde unicelulares até o homem. Esses ritmos são um componente fundamental dos seres vivos.


O que são ciclos circadianos, infradianos e ultradianos?
Os ritmos biológicos são classificados em três grupos. Os circadianos (circa, próximo; dies, dia) são aqueles ritmos endógenos que expressam um período de aproximadamente 24 horas (20h ± 4h). Um exemplo é o nosso ritmo de atividade-repouso, diversos ritmos hormonais, o ritmo de temperatura corporal etc. Todos repetem o ciclo a cada 24 horas. Os ritmos infradianos
são aqueles que ocorrem em períodos maiores que 28 horas. Um exemplo clássico é a reprodução estacional de alguns animais (com um período próximo de um ano), o período menstrual da mulher, de 28 dias, ritmos circalunares típicos de espécies que vivem próximo a costas etc. Já os ritmos ultradianos são aqueles que têm duração menor que 20 horas. Diversos hormônios hipotalâmicos (o hipotálamo é uma região do cérebro responsável pelo controle da fome e sede, regulação da temperatura corpórea e síntese de alguns hormônios) são ultradianos, assim como nosso nível de consciência e atenção mostra marcados ritmos ultradianos: durante o sono, temos alternâncias regulares de diferentes fases (sono REM, sono não REM), ao mesmo tempo que durante o dia temos picos de elevada atenção, alternando com períodos de menor atenção ou até sonolência (a duração dessas alternâncias é de aproximadamente 90 minutos).








Equipe Crilar
Verônica em pesquisa de campo com a bióloga brasileira Gisele Oda, da USP
Como a cronobiologia se aplica ao ensino?
Somos animais diurnos, estamos acordados e ativos durante o dia e dormimos à noite. Para isso, diversas variáveis fisiológicas estão em seus níveis máximos durante o dia (cortisol sanguíneo – hormônio envolvido na mobilização dos estoques de glicose em situações de estresse, especialmente logo após despertarmos -, temperatura corporal, pressão arterial, nível de atenção, disponibilidade de glicose, colesterol, entre outras). Enquanto isso, outras variáveis estão no seu nível mais baixo (melatonina – hormônio liberado nos períodos de escuro, que esta envolvido na regulação do ciclo vigília-sono -, hormônio de crescimento, nível de atenção etc.). Durante a noite, quando dormimos, a situação se inverte. Fica claro que, com base nessa organização temporal interna, todos têm horários ótimos para se alimentar, para dormir, para fazer exercícios e para realizar atividades cognitivas. Respeitar esses horários fisiológicos certamente vai aumentar nosso desempenho nas diversas atividades.


Dá para organizar as atividades escolares à luz da cronobiologia?
O planejamento das atividades escolares pode (e deve) ser visto sob um prisma cronobiológico. Isso significa organizar atividades de modo a contemplar momentos de maior ou menor rendimento nas tarefas escolares, seja do ponto de vista dos alunos ou dos professores. O custo orgânico de uma tarefa escolar não é o mesmo nas diferentes horas do dia. Por exemplo, uma das características da fase da adolescência é um atraso do relógio biológico, provavelmente determinado pelas grandes mudanças hormonais. Disso resulta que os jovens tenham muita dificuldade em deitar cedo e acordar cedo. É um fato que incide negativamente no desempenho escolar quando o turno é muito cedo. Alguns pesquisadores na área, como Luiz Menna-Barreto da USP, vêm tentando aplicar esses conceitos para que as escolas atrasem os horários do primeiro turno de aulas. Há uma estreita relação entre o desempenho cognitivo e o ciclo sono-vigília. E isso inclui qualidade e duração do sono. Manter um padrão de sono regular e estável ao longo dos dias é essencial para um bom desempenho escolar. Por um lado manter esse padrão assegura a organização temporal interna de todas as variáveis fi siológicas e por outro lado o sono profundo é essencial para que aconteça a consolidação dos fatos adquiridos durante o dia (ou seja, a formação da memória de longa duração). Outro ponto muito importante é o grau de matutinidade ou vespertinidade de cada indivíduo, que é pessoal e determinado geneticamente. Esse fator determina qual é o horário natural para acordar de manhã e deitar à noite.

É o caso das pessoas madrugadoras e das que só conseguem trabalhar ou estudar bem no período da tarde?
Todos conhecem pessoas madrugadoras, que se levantam com bom humor e prontas para tudo. Elas são os indivíduos de cronotipo matutino. Aqueles que dormem até tarde e só começam a funcionar depois do almoço, apresentando um máximo de efi ciência ao entardecer, são classificados como sendo os de tipo vespertino. Existem, ainda, pessoas que não chegam nem a um extremo nem a outro, os mistos, ora com predominância matutina, ora com predominância vespertina. Esse grupo é o mais predominante e também aquele que consegue se ajustar aos horários impostos mais facilmente. Os cronotipos costumam se estabilizar somente na idade adulta. Sempre que possível, adapte sua rotina ao seu tipo e com isso vai assegurar um bom desempenho cognitivo, além de outros benefícios.


Como o professor pode levar a cronobiologia para a sala de aula?
Até pouco tempo atrás, a biologia buscava seus modelos e explicações por meio da descrição espacial de estruturas de organismos, sistemas, tecidos, células ou partes de células. O tempo nesses modelos representava só um cenário onde as estruturas funcionam e eventualmente se transformam. Com o surgimento da cronobiologia como disciplina formal há uns 50 anos, começou-se a reconhecer que a dimensão temporal é essencial para caracterizar integralmente um sistema biológico. Assim como existe um sistema circulatório, um sistema nervoso, um sistema digestivo e renal, também existe um sistema de temporização com bases anatômicas e fi siológicas bem definidas.


Você poderia elencar algumas descobertas  importantes na área? 
Três marcos da cronobiologia me vêm à mente. O primeiro foi em 1729, quando o astrônomo De Marian sugeriu a existência de relógios biológicos, ao comprovar que o movimento regular de abertura e fechamento das folhas de uma planta, a sensitiva (Mimosa pudica) continuava a ocorrer inclusive em condições constantes, sem estímulos (a sensitiva retrai as folhas quando o galho é tocado, e também as fecha à noite, quando o sol se põe). Ele demonstrou pela primeira vez que o ritmo biológico é gerado endogenamente. Outro grande marco ocorreu na década de 1970, quando após múltiplas tentativas foi descoberto o relógio biológico de mamíferos, exatamente nos núcleos supraquiasmáticos do hipotálamo – que marca todas as funções do organismo, ditando os ritmos acerca da duração do dia (níveis de luz) e da temperatura da pele. Já a descoberta mais recente e de grande impacto foi a comprovação da existência de fotorreceptores específicos na retina de mamíferos, destinados ao processo de sincronização do relógio biológico, que, junto com os cones e bastonetes do sistema visual, permitem que o animal se mantenha em sincronia com o ciclo dia-noite externo.


Quais são as aplicações da cronobiologia na vida cotidiana?
A cronobiologia tem muito a dizer no caso das desorganizações temporais causadas pela vida moderna: trabalhos em turnos alternados, o jet lag provocado por voos transmeridionais, trabalho que avança pela noite, tudo isso afeta nosso organismo e seus ritmos temporais. Está claramente demonstrado que, se esse tipo de desorganização perdura, ocorre maior incidência de doenças gástricas, cardíacas, metabólicas, pior desempenho em tarefas cognitivas e físicas, maior propensão a acidentes, ocorrendo inclusive diminuição da longevidade. A cronobiologia recomenda manter hábitos regulares e, quando não for possível, propõe alguns métodos contra os efeitos negativos, como acelerar a ressincronização ao novo esquema (com exposição à luz intensa, atividade física em horários predeterminados). No diagnóstico e terapêutica de doenças, por exemplo,ganha destaque a aplicação da cronobiologia na avaliação da pressão sanguínea, que manifesta um ritmo circadiano preciso. Conhecê-lo é essencial no momento de decidir se o paciente tem pressão alta ou baixa e o medicamento a prescrever. Na terapêutica se sabe que muitos medicamentos vão ter maior ou menor eficiência e efeitos colaterais segundo o horário da administração. Isso tem sido particularmente relevante na quimioterapia para câncer. Estão surgindo até novas palavras, como cronofarmacologia ou cronoterapêutica, definindo áreas onde o fator tempo no diagnóstico e planejamento do tratamento é essencial.


 






Equipe Crilar
Verónica no Laboratório de Cronobiologia de La Rioja (Crilar)


Como foi o período em que viveu no Brasil na definição de suas pesquisas?
Formei-me engenheira zootecnista na província argentina de Tucumán, mas desenvolvi a maior parte da minha carreira no Brasil, país que considero minha pátria e onde no transcurso de 13 anos formei sólidos vínculos tanto profissionais como pessoais (até meu filho é brasileiro). Fiz mestrado e doutorado em Ciências Biológicas (Fisiologia) no Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), sendo minha orientadora (e amiga) Elenice de Moraes Ferrari. Fiz parte do doutorado (sanduíche) no Center for Biological Timing: Circadian and Seasonal Rhythms, da Northwestern University, em Illinois, nos EUA, onde trabalhei com duas personalidades muito influentes na área da cronobiologia (Fred Turek e Joseph Takahashi).

Meu pós-doutorado foi com Gilberto Xavier, no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP). E finalmente passei meus últimos três anos brasileiros como pesquisadora visitante em Natal (RN), na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com John Araújo. Durante meus anos no Brasil tive uma constante interação com especialistas-chaves da cronobiologia brasileira, por meio do Grupo Multidisciplinar de Desenvolvimento e Ritmos Biológicos da USP, iniciado por Luiz Menna-Barreto, Miriam Márquez, José Cipolla-Neto e Nelson Marques, verdadeiros mestres e pioneiros da cronobiologia latino-americana e aos quais devo minha incursão nessa área da biologia.

Autor

Marcos Gomes


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