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Desigualdades em campo

Com cerca de 13% do total de matrículas da Educação Básica brasileira, as escolas rurais ainda não conseguiram tornar-se um fator de equalização de oportunidades

Publicado em 10/09/2011

por Elisângela Fernandes


Formação deve preparar o docente para trabalhar com alunos de diferentes séries e idades

Embora o acesso ao ensino fundamental seja dado como universalizado em todo o Brasil, a persistência das desigualdades educacionais entre as zonas rural e urbana faz lembrar os tempos lentos da história. Em pleno século 21, milhares de crianças e jovens enfrentam inúmeras barreiras para continuar os estudos e concluir as etapas do fundamental e do médio, em cenário que muitas vezes evoca os primeiros anos do século passado. Os números das matrículas no campo mostram que as políticas educacionais na área rural priorizam o atendimento escolar apenas até o 5º ano do ensino fundamental. Daí em diante, o estudante deve, em geral, buscar outras cidades caso queira continuar a estudar. E embora as matrículas no campo representem apenas 13% do total do país, esse percentual representa mais de 6,6 milhões de crianças e jovens espalhados em 83 mil escolas rurais. Esse contingente de alunos é maior do que toda a população do Paraguai.

O afunilamento da oferta pode ser percebido pela distribuição das matrículas nos diferentes ciclos e etapas da Educação Básica. O estudo
Das desigualdades aos direitos: a exigência de políticas afirmativas para a promoção da equidade educacional no campo

, realizado em 2009 para o Observatório da Equidade, órgão vinculado ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, mostra que para cada duas vagas nos anos iniciais do fundamental existe apenas uma nos anos finais. Para cada seis vagas nos anos finais, há apenas uma no ensino médio. Na zona urbana a relação das matrículas é de quatro vagas nas séries iniciais, três nas séries finais e duas no ensino médio. A dificuldade em dar prosseguimento aos estudos é nítida quando se compara a escolaridade dos jovens. Entre a população urbana de 25 a 34 anos, 52,5% têm ensino médio ou superior. No meio rural esse percentual é de apenas 17%.


Especificidades



A ausência de políticas específicas para o campo é umas das principais causas dessa desigualdade. Mônica Molina, professora da Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília e uma das responsáveis pelo estudo do Observatório da Equidade, credita a continuidade da situação à ausência de ações em massa do Estado para superar as desigualdades. E defende a necessidade de um conjunto de políticas que envolvam todas as esferas governamentais.

"Historicamente, o campo sempre foi deixado de lado. Chegamos a um ponto em que as únicas políticas para a zona rural foram fechar as escolas e eventualmente transportar as crianças", critica o professor José Marcelino de Rezende Pinto, da Universidade de São Paulo.

Os programas e projetos de financiamento específicos para a educação rural são recentes. A própria Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), do Ministério da Educação – que possui uma coordenação específica para a educação rural -, foi criada apenas em 2004. É a secretaria mais nova do MEC.

Para o diretor de diversidade da Secad, Armênio Bello Schmidt, o grande desafio da pasta é justamente o de elaborar uma política de Estado específica de educação no campo. "Na zona urbana, a criança ingressa na educação infantil e tem mais oportunidades de concluir o ensino superior. Isso ainda não faz parte da realidade da grande maioria dos sujeitos do campo."

A Secad é responsável, no âmbito nacional, por nortear não só o ensino na zona rural, mas também a alfabetização e educação de jovens e adultos, educação ambiental, educação em direitos humanos, educação escolar indígena e diversidade étnico-racial. A criação de uma secretaria exclusiva para a educação no campo é uma bandeira antiga de movimentos sociais. Entretanto, o MEC não trabalha com essa perspectiva.  "Não temos como criar uma secretaria para cada nível de ensino. Seria necessário uma superestrutura, financiamento, funcionários, espaço físico, entre outras coisas. Nosso objetivo é dar continuidade aos programas que, pela primeira vez, buscam atender de forma específica a população rural", defende Schmidt.


Um direito a ser efetivado



"A ausência da oferta de escolas às comunidades rurais é a negação do direito ao acesso à educação. Ainda há no imaginário brasileiro a ideia de que o campo não demanda políticas públicas, de que não se deve gastar dinheiro porque vai acabar. Mas o que a realidade mostra é que, pelo contrário, há um processo de dinamização das áreas rurais", afirma Mônica Molina.

Em 2009, análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) revelou que a escolaridade média da população de 15 anos ou mais na zona rural é de 4 anos, contra  8,6 anos no meio urbano. Esse número reforça a existência de um grande contingente de pessoas que estudaram no máximo até o final do fundamental 1.

O analfabetismo também é maior no campo: entre as pessoas de 15 anos ou mais, atinge 23,5% na área rural, quase 5,5 vezes superior ao verificado na zona urbana: 4,3%. O estudo do Observatório da Equidade alerta que se o "Brasil Rural" fosse um país, teria o 4º pior desempenho entre os países da América Latina e Caribe, melhor apenas que Haiti (45,2%), Nicarágua (31,9%) e Guatemala (28,2%).


Creches e distorção idade-série



A aprovação da ampliação da obrigatoriedade do ensino para a população de 4 a 17 anos remete a um grande desafio para os gestores públicos das áreas rurais, pois o acesso à educação infantil e ao ensino médio é muito baixo. Das crianças da zona urbana, 20,5% frequentaram a creche em 2008; na zona rural, essa taxa é quase três vezes menor: 7,2%. Na pré-escola, o atendimento chega a 82,2% na zona urbana e a 69,6% no campo. Entre os jovens de 15 a 17 anos da zona urbana, 59% frequentam o ensino médio, contra 33,3% na zona rural. Em relação ao ensino superior, 18% da população de 18 a 24 anos cursa essa etapa na zona urbana metropolitana. Na zona rural, a taxa é de apenas 3,4%.

Além do acesso, há a questão da aprendizagem. A distorção idade-série afeta três de cada quatro pessoas de 9 a 16 anos (75%) na zona rural. Na zona urbana, o percentual, de 56%, também é alto. Nos anos iniciais do ensino fundamental a distorção é de 38,9% no campo e de 18,4% na zona urbana.


Sem condições



Além da dificuldade de acesso, os alunos da zona rural sofrem com a má infraestrutura. Dados do Censo Escolar de 2009 revelam que 90% das escolas do campo não possuem biblioteca. Pouco mais de 8% têm laboratório de informática. Os laboratórios de ciências estão presentes em menos de 1% dos estabelecimentos de ensino. Além disso, quase 20% não possuem energia elétrica. O censo escolar de 2009 mostra que no Brasil 42,5 mil escolas possuem até 30 alunos matriculados, a maioria delas no campo.

Neste ano teve início o Programa Dinheiro Direto na Escola para as escolas do campo. O PDDE repassa R$ 12 mil por ano, para as escolas com até 50 alunos e que tenham unidade executora. "Com esse recurso não se faz uma escola nova, mas é possível realizar pequenos reparos, como por exemplo reformar banheiros ou trocar janelas", explica Armênio Schmidt. Até agora 3.160 escolas receberam os recursos.


De portas fechadas



Nos últimos anos houve um grande movimento de fechamento das escolas rurais. De acordo com o Censo Escolar, entre 2000 e 2009 mais de 34 mil estabelecimentos de ensino no campo deixaram de existir. Destes, 31,2 mil eram municipais.

As explicações para o fechamento são várias: o processo de municipalização, a redução da taxa de natalidade e a diminuição da população rural ao longo dos anos. A nucleação das escolas – a reunião de várias unidades em uma única – é outro fator que contribuiu para diminuição, principalmente no que diz respeito à oferta das séries finais do ensino fundamental e ao ensino médio. Nesses casos, os alunos da zona rural são transportados pelos municípios para os distritos maiores e muitas vezes para escolas da zona urbana. Essa estratégia elevou substancialmente os gastos com transporte nas esferas públicas municipal, estadual e federal.

Atualmente, tanto o MEC quanto o Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) e o Conselho Nacional de Educação se dizem contrários ao fechamento das escolas e à nucleação nas zonas urbanas, opção que obriga o aluno a deslocar-se de seu lugar
de moradia.

Para Carlos Eduardo Sanches, presidente da Undime e secretário do município de Castro (PR), houve falta de planejamento. "As rotas longas, além da superlotação e muitas vezes a precariedade dos meios de transporte, contribuem para a evasão e para o baixo rendimento no aprendizado."

No arquipélago de Marajó (PA), onde o transporte é feito quase que exclusivamente por embarcações, muitas escolas também foram fechadas em função da nucleação. Edel Nazaré de Moraes Tenório, pesquisadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação do Campo na Amazônia (Geperuaz) e uma das coordenadoras do programa federal Território da Cidadania, explica que esse processo prioriza o transporte e obriga os alunos a se deslocar por distâncias cada vez maiores.

Edel acompanhou o percurso feito pelos alunos na região. O tempo médio para chegar às escolas é de duas horas. "Para entrar às 7h, o aluno sai de casa antes das 5h e só volta depois das 14h, isso numa realidade em que a merenda escolar é precária. Até para um adulto isso é desgastante."

Sanches explica que os valores repassados aos municípios pela União e estados não são suficientes para cobrir as despesas. Com a ampliação do acesso ao ensino fundamental, os gastos com transportes ficaram cada vez maiores. De acordo com ele, é comum o custo do transporte estar entre as principais despesas das redes municipais, em muitos casos perdendo apenas para a folha de pagamento. De acordo com o FNDE, os repasses para transporte escolar cresceram substancialmente nos últimos anos. As transferências da União para esse fim passaram de R$ 275,9 milhões em 2006 para R$ 655 milhões em 2010.

Para Yvelise Freitas de Souza Arcoverde, presidente do Consed e secretária de Educação do Paraná, os municípios são os mais prejudicados. "A política de transportes no Brasil não está resolvida e deverá estar na pauta do próximo governo. Não se deve substituir escola por ônibus", completa.

A participação das redes estaduais na educação rural é muito pequena. Em 2009, eram 6 mil escolas estaduais rurais no país, ou 7% do total. A secretária defende a construção de escolas, tanto estaduais quanto municipais. "Se estamos lutando pela ampliação da obrigatoriedade do ensino, precisamos investir na construção de escolas no campo. Criticamos muito a política do transporte, mas o foco das discussões está errado", completa Yvelise.

A expectativa para os próximos anos, diz Armênio Schmidt, da Secad, é que haja uma diminuição do processo de fechamento das escolas e, por consequência, um aumento do número de construções. "O ideal seria que fossem em torno de mil escolas por ano. Esse é o desafio que os governos têm pela frente."


Entraves para construir



Em 2009, o MEC liberou R$ 200 milhões para a realização de convênios com municípios para a construção e reforma de escolas rurais. No entanto, apenas 46 convênios foram celebrados e 54 escolas construídas, sendo executados apenas R$ 42 milhões do total previsto. Segundo a coordenação geral de infraestrutura educacional do FNDE, muitas vezes os projetos apresentados não são aprovados, pois as redes de ensino têm dificuldade para conseguir terrenos. Outras vezes, as prefeituras indicam lotes situados longe da demanda de alunos ou em condições topográficas desfavoráveis. Além disso, é bastante comum haver inadequações nos custos propostos para execução da obra e problemas em relação ao domínio dos terrenos.

Armênio Schmidt afirma que mais de 500 escolas foram construídas nos últimos oito anos. Por outro lado, há cerca de 130 projetos feitos em 2009 que ainda não foram pagos por conta das inconsistências na documentação apresentada pelos municípios. "A questão burocrática é sempre difícil, mas não temos como fugir. O MEC não pode financiar, por exemplo, uma escola em um terreno particular. Qualquer município em um mês consegue dar conta de levantar as informações solicitadas. O município precisa apresentar o projeto até a fundação. Do chão para cima, o projeto da escola é padrão."

Carlos Eduardo Sanches recorda que, como secretário de Castro, demorou mais de um ano para conseguir a posse de um terreno e viabilizar a construção em local adequado. "O trâmite burocrático é lento", reclama. A dificuldade para comprovar o domínio relativo à posse dos terrenos também é enfrentado pelos municípios em outros projetos do governo federal, como, por exemplo, o ProInfância, para a construção de creches.


Investimento ainda insuficiente



O financiamento da educação rural é apontado por Marcelino Rezende como um dos fatores que desestimulam a sua manutenção pelos municípios. Como a maioria das escolas rurais possui poucos estudantes e o Fundeb repassa os valores de acordo com o número de alunos, os recursos acabam sendo insuficientes para manter a estrutura escolar como um todo. "Não há economia de escala", explica.

Em vez de propor a construção de escolas por meio de convênios, Rezende diz que seria mais efetivo ampliar os fatores de ponderação do Fundeb para a educação rural. "Isso daria mais liberdade para a construção das escolas de acordo com as necessidades locais, que são diferentes em regiões de assentamentos, na floresta, em comunidades indígenas etc." Os fatores de ponderação são as variáveis utilizadas para atribuir o valor unitário de remuneração do Fundeb. Por exemplo, para o cálculo do financiamento por aluno das séries iniciais do ensino fundamental é utilizado o fator 1 para as escolas urbanas e 1,15 para as escolas rurais. Essa medida visa justamente reduzir as desigualdades entre as duas localidades, embora pesquisadores e gestores reconheçam que a distinção entre os valores ainda seja pequena no caso da educação rural.


O trabalho docente



A formação dos professores que atuam no campo é desafiadora, não só pela falta de profissionais com nível superior, mas também pela diversidade das realidades sociais encontradas e por prevalecerem o professor polivalente e as classes multisseriadas.  

O estudo do Observatório da Educação mostra que em 2007 havia 311 mil professores no ensino fundamental e médio regulares no campo. Esse número representa 17% dos docentes em exercício no país. Deles, 61% não têm formação superior, o que significa um contingente de aproximadamente 178 mil professores.

Outra característica das escolas rurais é que mais de 70% são multisseriadas, o que requer investimento na qualificação dos professores para que estes possam trabalhar com alunos de diferentes séries e idades ao mesmo tempo. "Muitas pesquisas têm mostrado que é comum os professores trabalharem com métodos de ensino típicos das escolas seriadas em turmas multisseriadas", diz Mônica Molina. Com esse quadro, não é difícil antever os problemas em relação à qualidade: os docentes com menos anos de formação são aqueles que têm de se deparar com situações educacionais mais complexas.

De acordo com a Secad, mais de 3 mil professores estão em processo de formação específica para o ensino no campo em 32 universidades e institutos federais. Os pesquisadores afirmam que ainda é cedo para avaliar a qualidade desses cursos, mas mencionam algumas iniciativas que alcançaram resultados positivos.

A professora da UnB diz que o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera), com os cursos de pedagogia da terra, foi a grande fonte de inspiração para as novas licenciaturas de educação no campo. O grande mérito dessa formação, segundo ela, é mostrar ao professor que é possível dar conta dos conteúdos previstos nas diretrizes curriculares nacionais e, ao mesmo tempo, trabalhar o contexto do educando e cultivar o conhecimento científico a partir da realidade rural, de forma a valorizar a agricultura familiar, que geralmente é discriminada e encarada como um reflexo da pobreza e do atraso.

A necessidade de material e formação específica para as classes multisseriadas pode ser percebida pelo interesse cada vez maior das redes de ensino pelo programa Escola Ativa, oferecido pela Secad. Atualmente 40 mil escolas são atendidas pelo projeto. Em 2006, eram 6 mil.

De todo jeito, basta que se preste atenção a regiões como o oeste baiano, por exemplo, para ver que a demanda por educação é enorme, seja a oferta precária ou não. Saber
identificar as diferentes necessidades locais – e, obviamente, investir – será a chave para que essas regiões melhorem indicadores sociais e econômicos.

Autor

Elisângela Fernandes


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