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Fé privada, desvios públicos

O tema da laicidade no ensino público foi uma das pedras de toque da lei de laicidade francesa em 1905. Desde então, a França tornou-se um modelo internacional de compreensão da laicidade como neutralidade confessional do Estado. O Estado francês não professa nenhuma religião como […]

Publicado em 10/09/2011

por Debora Diniz

O tema da laicidade no ensino público foi uma das pedras de toque da lei de laicidade francesa em 1905. Desde então, a França tornou-se um modelo internacional de compreensão da laicidade como neutralidade confessional do Estado. O Estado francês não professa nenhuma religião como oficial e, ao reconhecer a diversidade religiosa na vida social, o espaço público não incorpora nenhum símbolo ou tradição religiosa. A educação pública é um desses espaços em que a fronteira entre religiões e Estado não deve ser ultrapassada. O debate em torno do uso do véu por estudantes muçulmanas e a decisão de proibi-lo nas escolas públicas é, certamente, o exemplo mais recente da política francesa sobre a separação entre educação e valores religiosos.

O caso francês é paradigmático para compreender o processo de separação entre Estado e religiões por seu caráter limite: a garantia da liberdade se deu pela radical laicização do ensino e pela proibição de inclusão de perspectivas religiosas nas escolas públicas. Ainda hoje, a França adota uma perspectiva muito original no cenário internacional para o enfrentamento da tensão entre educação e perspectivas religiosas: a educação é um bem público e como tal deve assumir uma identidade moralmente neutra em matéria religiosa. Para alguns, a solução francesa é apenas um mecanismo opressor do Estado frente à diversidade religiosa; para outros, é uma estratégia política eficiente para coibir pretensões de determinadas religiões de ascenderem ao ordenamento político da República e fragmentarem bens sociais fundamentais, como é o caso da educação pública.
 
A estratégia francesa é a de não reconhecer qualquer caráter primordial ou fundador da vida social no fato religioso, ao mesmo tempo que identifica as crenças religiosas como um tema propício a conflitos morais insolúveis. Na compreensão republicana francesa, o fato religioso é como qualquer outro fato social: não há caráter sagrado ou especial na sua expressão simbólica. Na busca por garantir um espaço público que possibilite a liberdade de opinião e de pensamento, o fato religioso não compõe o currículo de escolas e universidades financiadas pelo Estado.

O Brasil adota uma perspectiva diferente diante do fato religioso, a qual se encontra próxima da estadunidense. Parte-se do pressuposto da pluralidade religiosa, e o esforço político é por garantir mecanismos de tolerância no espaço público. Mas a expressão pública da tolerância à diversidade moral pressupõe a anterioridade do fato religioso na vida social: ou seja, o fato religioso não se assemelharia a outras expressões simbólicas da sociedade brasileira, haveria privilégios para a garantia de sua expressão. O resultado é que se assume um caráter primordial no fato religioso, a despeito da condição constitucionalmente laica da democracia brasileira.


Entre a pluralidade e a neutralidade

Assim como a França, o Brasil é uma república constitucionalmente laica, mas a laicidade se expressa pela pluriconfessionalidade e não pela neutralidade confessional da estrutura básica do Estado. A pluriconfessionalidade do Estado se manifesta não apenas como um fenômeno sociológico da vida coletiva, mas pelo apoio do Estado às religiões, seja por meio de redução de tributos e isenção de impostos, concessão de benefícios a escolas, universidades, igrejas e templos, manifestando-se até mesmo pela ostentação de símbolos religiosos em espaços públicos. A entrada do ensino religioso como currículo obrigatório, de matrícula facultativa ao ensino fundamental, é uma das situações mais singulares que expressam a sobreposição entre Estado e religiões nas instituições públicas da sociedade brasileira, em especial na educação.

É possível reconhecer a pluriconfessionalidade da sociedade brasileira e ao mesmo tempo assumir uma posição moralmente neutra nas instituições básicas do Estado. Na educação isso significaria não aproximar religiões e conteúdos de ensino: religião seria matéria de ética privada, ao passo que o conteúdo ministrado nas escolas deve reproduzir nossa ética pública. No entanto, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional assume um pressuposto diferente de como deve se expressar a diversidade religiosa na educação. Além de garantir que o ensino religioso seja parte integrante da formação básica das crianças, a Lei exige que as comunidades religiosas se organizem em entidades civis para determinar o conteúdo do ensino.

Há um paradoxo por trás dessa determinação legal: por um lado, o Es­tado assume que não é competente para determinar o conteúdo do ensino religioso para escolas públicas, mas, por outro lado, delega essa faculdade a entidades civis de diferentes denominações religiosas. O resultado desse paradoxo é duplo:

a) Em nenhuma outra área do conhecimento científico ou social, o Estado abdica de seu papel na definição de conteúdos, tampouco renuncia ao papel de monitoramento do conhecimento pelos painéis de avaliadores do livro didático. Todos os livros didáticos distribuídos pelo Ministério da Educação para as escolas públicas de ensino fundamental e médio são submetidos a um painel de avaliadores constituído de professores de universidades públicas nacionais. Cabe ao painel de avaliadores recomendar ou não os livros de acordo com conteúdos técnicos, éticos e sociais;

b) O Estado força as comunidades religiosas a se constituir em entidade civil para o provimento de conteúdo da disciplina ensino religioso, o que pode ser considerado inconstitucional, pois nenhuma comunidade ou pessoa é obrigada a se associar para fins de representação social de seus interesses.

A estratégia de pressionar as comunidades religiosas a se constituir em entidade civil teve por objetivo garantir o caráter de pluriconfessionalidade do Estado na oferta do ensino religioso. Foi nesse contexto que o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso se constituiu como pessoa jurídica para congregar as diferentes comunidades religiosas. As primeiras entidades a serem aceitas além do espectro cristão – Federação das Religiões de Matriz Africana do Paraná e a Fé Bahá’í – só o foram após a fundação da entidade. No entanto, houve uma resistência política considerável de entidades cristãs à aceitação de diferentes comunidades religiosas. Controvérsia semelhante ocorreu no Estado do Rio de Janeiro por ocasião do primeiro concurso público para provimento de vagas de professores de ensino religioso: apenas comunidades religiosas com doutrina estabelecida e formação de representantes religiosos puderam postular-se, o que restringiu a elegibilidade aos católicos, evangélicos e judeus.


Abdicação

Há registros documentais do processo de revisão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação que demonstram a intensa participação de entidades cristãs, em especial comunidades católicas, de forma a garantir o ensino religioso nas escolas públicas. No entanto, para além da inclusão do ensino religioso como disciplina obrigatória à formação do futuro cidadão, a revisão resultou em uma cessão de direitos e deveres educacionais do Estado frente às comunidades religiosas: o Ministério da Educação abdicou de seu poder e dever de definição de conteúdos programáticos de disciplinas obrigatórias. Uma possível explicação para esse caráter excepcional que o currículo de ensino religioso adquiriu no cenário da política de educação básica no país é a hipótese da anterioridade do fato religioso na sociedade brasileira. Outra hipótese é a compreensão de que religião é tema para especialistas crentes e não para especialistas laicos, por isso somente representantes das comunidades religiosas poderiam determinar conteúdos para o ensino de religião. Ou seja, a religião, por ser matéria de ética privada, é tema de intensa diversidade moral na sociedade brasileira, não cabendo ao Estado determinar seu conteúdo, pois interferiria na autonomia das escolas e das comunidades religiosas:

O interessante desse raciocínio é que ele não se aplica a outras áreas do conhecimento, também presentes nas disciplinas de ensino fundamental e médio. Há importantes controvérsias científicas no campo da biologia ou da física, como por exemplo se o criacionismo e a astrologia seriam ou não teorias científicas, e a despeito delas o Estado assume uma posição de defesa da hegemonia da ciência. Os formulários de avaliação dos currículos de biologia, por exemplo, são claros em solicitar ao avaliador que reprove os livros com expressões de proselitismo religioso, desrespeito às minorias, autoritarismo científico ou mesmo teorias científicas não comprovadas. O desrespeito a esses itens são critérios de exclusão dos livros didáticos pelo painel de avaliadores. Ou seja, o Estado sugere que certos limites à liberdade de expressão da ciência sejam respeitados nos livros didáticos de forma a garantir nosso marco constitucional pautado nos direitos humanos, na tolerância e na promoção da cidadania.

A entrada do ensino religioso nas escolas públicas desafia o significado da educação pública no Brasil. Se o principal objetivo da educação é formar cidadãos cooperativos e aptos à vida social, a pergunta que nos resta é saber se conteúdos religiosos devem ser parte do conjunto de informações compartilhadas. Não importa que grande parte da sociedade brasileira declare-se como pertencente a alguma crença religiosa. Se religião for seriamente considerada matéria de ética privada, não cabe às escolas públicas introduzir esse tema em seus currículos de ensino. Isso poderá levar a uma fragmentação desnecessária no conhecimento, introduzindo sentimentos de disputas por crenças que pouco se prestam à contestação racional, um importante valor ético do ensino público.



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Dossiê – Artigo / Fé privada, desvios públicos



*Debora Diniz é professora da Universidade de Brasília. Coordena a pesquisa nacional O Ensino Religioso nas Escolas Públicas Brasileiras: qual pluralismo?, com apoio do Prosare/Cebrap/CCR e patrocínio de The John D. e Catherine T. MacArthur Foundation

Autor

Debora Diniz


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