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Formação Docente

Lápis, borracha e joystick

Jogos disponíveis no mercado podem ser usados no ambiente educacional em atividades que conquistam os alunos

Publicado em 09/11/2012

por Marcelo Daniel







Gustavo Morita
Inspirados no Legendary Wars, os alunos do Dante Alighieri (SP) estão criando seu próprio games

Eles vivem na frente da tela com o joystick na mão. Mas o que pode ser hipnotizante para as crianças e jovens que adoram videogames também pode ser uma vantagem para as escolas. Como defende o professor Simon Egenfeldt-Nielsen, pesquisador da Universidade de Tecnologia da Informação de Copenhague, Dinamarca, recursos como as recompensas e o sistema de aproveitamento característicos desses produtos tornam mais interessante a execução de tarefas repetitivas. Além disso, muitos desses jogos têm conteúdos didáticos em suas histórias, o que pode ser aproveitado pela escola.


“Sabemos por estudos que os jogos, em geral, melhoram a retenção e a transferência de conteúdos, por isso, se você quer que o aluno lembre o que aprendeu, os games são um bom lugar para olhar”, falou Simon à revista Educação, também autor do livro Educational potential of computer games (O potencial educacional dos jogos de computador, em tradução livre).


Por outro lado, os jogos criados especialmente para o ambiente educacional nem sempre conquistam o mesmo grau de sucesso.


“Jogo videogame desde os 5 anos de idade e posso dizer que os títulos educativos são chatos e, às vezes, previsíveis”, confessa o professor de educação física Archimedes de Moura Junior, que desde 2005 usa videogames em suas aulas em escolas estaduais da zona norte de São Paulo.


Harry Potter vai à aula
Sem esperar pelo tempo em que os jogos educativos se tornem mais atrativos, muitos professores aproveitam o que há no mercado para conquistar os alunos. No preparo das suas aulas de educação física, Archimedes sempre trazia sob o braço o Tapete de dança, acessório para o Playstation 2, que aplicava com os alunos.


Posteriormente, adaptou para a classe o Quadribol, modalidade esportiva dos bruxinhos da série Harry Potter. Com videogame e TV próprios, Archimedes deixava que estudantes da 4ª série do ensino fundamental jogassem dois minutos do game Harry Potter: Quidditch World Cup e, na aula seguinte, os conhecimentos adquiridos na tela eram colocados em prática na quadra, com direito a chapéu de bruxo e acessórios. O projeto deu tão certo que, no ano seguinte, integrou-se com outras disciplinas, que passaram a abordar os livros da autora da série Harry Potter, J. K. Rowling, inspiradas pelas aulas de educação física.


Pensando na adaptação dos games de mercado para a escola, Archimedes iniciou seu mais ousado projeto, realizado em 2011, na escola Projeto Vida, da cidade de São Paulo. O professor recorda, entre risos, como foi a surpresa das salas, 8º e 9º anos do ensino fundamental, quando ele anunciou a atividade. “Dividi os alunos em grupos e orientei que cada grupo escolhesse um jogo eletrônico, com o objetivo de trazê-lo para a quadra.”


As semanas que se seguiram foram de intenso trabalho dos quartetos e trios formados pelos estudantes. Pelo cronograma definido nas aulas, cada grupo teria uma data para colocar sua ideia em prática para a sala. As equipes tinham, no mínimo, duas aulas para envolver o restante dos colegas com sua transposição – o primeiro encontro era totalmente utilizado para explicar como seriam as regras.


“Unanimidade não existe nunca, mas posso dizer que a aceitação pelos alunos foi altíssima, beirou 100%”, comemora. “Se se levar em conta todas as turmas do colégio, trabalhamos 30 jogos diferentes nas aulas.”


Em vez do tradicional futsal, as marcações da quadra foram utilizadas como cenários para grandes sucessos como Mario Kart (corrida), Counter Strike (jogo de tiro em primeira pessoa), que se transformou em uma versão complexa do jogo de queimada, Guitar Hero (música) e FIFA Street (esporte). “Daí você pode pensar: ‘um jogo de futebol fica fácil de transpor’, mas não era bem assim, eu queria ver os elementos do videogame dentro da brincadeira”, relata.


Uma vez escolhido o jogo, Archimedes acompanhava de perto a adaptação. “Nada era gratuito, cada tema era contextualizado – em um jogo que trazia o conflito no Oriente Médio, por exemplo, o professor de história participava e aprofundava o assunto”, explica.


Danilo Silvestre, professor de filosofia e português do Colégio SunPort, usa jogos de videogames a partir do ensino médio principalmente como recurso de provocação a um pensamento crítico. “Usar os jogos em classe para debater seus temas não é muito diferente de levar uma letra de música ou um filme para a sala de aula, mas os alunos estão mais abertos a jogar e são atingidos com mais força porque estão consideravelmente mais familiarizados com a linguagem”, diz Danilo, que cita muitos jogos em sala de aula para mostrar que os jogos são ferramentas válidas de expressão e instigar os alunos a irem atrás de outros tipos de jogos que não sejam apenas “diversão”. “Acho essa uma das funções mais importantes da escola: fazer o aluno entender que a “diversão” não basta, que ela não alimenta. Sentar numa carteira de escola todos os dias não é “divertido”, mas pode ser recompensador – do mesmo modo que um jogo ou filme que eles possam considerar chato pode  colocar em movimento um longo processo de pensamento.”


Aprender sem perceber
A dificuldade de adaptar os conteúdos de games para o aprendizado realmente existe, mas pode ser superada. “Infelizmente, o game e os artefatos digitais não nasceram para a educação; eles surgem para uma lógica de mercado da qual a escola não faz parte”, constata a especialista em Tecnologia Educacional Valdenice Minatel, coordenadora do colégio Dante Alighieri, de São Paulo. “O que nós temos de fazer é dar o sangue, suar a camisa, descobrir como adaptar, climatizar isso para uma escola.”


Para Valdenice, o interessante nessas propostas compõe o que ela chama de duplo desafio. “Se a gente educa para uma vida, que tem jogos e está imersa em um meio digital, precisamos experimentar isso, com viés na educação, que é a formação integral do aluno.”


Por isso, os alunos do Dante estão criando seu próprio game. A oficina une estudantes e professores para desenvolver um título que una história, física, química e biologia. A inspiração vem do Legendary Wars, um jogo de estratégia para smartphones, bastante popular no mundo inteiro, e das séries Warcraft e Epic Wars. Cerca de dois terços do Fabulis, nome do projeto, está pronto.


A primeira edição da oficina ocorreu em 2011. A etapa atual, chamada de “Level 2”, inclui desenho à mão, modelagem, animação, texturização, enredo e game engine. Eduardo Sasaki, de 14 anos, é o único que integrou a primeira edição da oficina e agora participa da segunda etapa. “Houve uma evolução, tem mais alunos e os programas utilizados são melhores, agora podemos criar em 3D e está bem melhor para fazer os gráficos.”


A essência do game traz como eixo um episódio real, extraído de uma cruzada da Idade Média. Utilizando as ferramentas Unity e Blender, que são softwares livres, os alunos vão possibilitar que o jogador crie um personagem, um general, que deve comandar seu exército na conquista de um castelo a outro. Em situações de extremo desafio, ou quando o player é malsucedido na partida, um quiz com perguntas das outras matérias pode reverter a situação, além de oferecer recompensas.


“O envolvimento e o comprometimento são maiores e a gente consegue desenvolver com eles também uma série de competências que, com um game já pronto, não seria possível”, explica a professora de biologia Helika Chikuchi, que foi uma das pioneiras no desenvolvimento da ideia junto ao departamento de Tecnologia Educacional do Dante. Quanto aos benefícios do processo, ela elenca a divisão de trabalho, organização e pesquisa. “Eles brincam, mas têm o compromisso de trazer etapas, às vezes alguém fura e eles percebem o quanto é importante a assiduidade”, relata.


O futuro do videogame na escola
Para o professor Roger Tavares, do Centro Universitário Senac, em São Paulo, ainda há resistência quanto ao uso de games na educação. “Entender videogames e aprendizado juntos não é realmente fácil”, enfatiza. “Os próprios jogadores não conseguem entender essa relação, porque para eles ‘educação’ tem de ser chata, linear, massificante, assim como um remédio que tem de ser amargo.”


Roger é fundador da comunidade Gamecultura, um espaço virtual que une professores, desenvolvedores, jogadores e interessados em jogos. Na opinião do especialista, a prática do jogo, às vezes, ensina sem perceber, seja no vocabulário em outro idioma, uso de relações de física, matemática, além de passar por constantes avaliações. “E se os próprios jogadores não conseguem entender isso, imagine então os pais e o resto do ambiente escolar”, afirma.


Ele aposta, porém, na popularização do uso de games pelas escolas. Roger sugere uma linha do tempo que tende a incluir os jogos eletrônicos no ambiente estudantil. “Talvez se pensarmos na tecnologia como uma evolução do quadro-negro, das transparências, PowerPoint, e das multimídias, que demoraram muito tempo para entrar na sala de aula; nessa lógica, talvez os videogames estejam nessa lista.”


O pesquisador Simon Egenfeldt-Nielsen, da Universidade de Tecnologia da Informação de Copenhague, revela que tem intenso contato com o assunto desde a infância: “Gosto de dizer que, na primeira metade da minha vida, eu fiz estudos informais sobre games”. Na sua opinião, esses recursos apenas não serão usados para ensinar se houver uma percepção limitada sobre o seu potencial. “Games são uma mídia em que você pode expressar qualquer coisa: o bom, o mau, o feio, o bonito, o educativo e o entretenimento.”


Valdenice Minatel, do colégio Dante Alighieri, evoca os jogos simbólicos do psicólogo Jean Piaget para abordar essa convergência: “na essência, não há uma grande novidade, o jogo já faz parte da educação da criança, que aprende muito na construção da personalidade”. Para a especialista em Tecnologia Educacional, é papel da escola criar situações que favoreçam a assimilação de conhecimentos nesse contexto. “Tudo, absolutamente tudo nesse mundo leva à aprendizagem, e existe um desejo pelo game.”








Para a sala de aula

Especialistas e professores indicam jogos eletrônicos que combinam com a sala de aula. “Esses títulos podem ser usados de diferentes maneiras, tudo depende de sua abordagem no aprendizado baseado em games”, diz o pesquisador Simon Egenfeldt-Nielsen.


SimCity (PC, iPad, entre outros)
Clássico dos jogos eletrônicos, foi desenvolvido em 1989, mas tem uma novíssima versão prevista para 2013. Trata-se de um divertido simulador de cidades, onde o jogador pode definir as áreas industriais, comerciais, residenciais, impostos, entre outras funções de um megaprefeito.
O que ensina: pode ser usado para abordar o planejamento urbano e o processo de ocupação das cidades.



Spore (PC)
Jogo de 2008, dos mesmos desenvolvedores de SimCity, trata-se de um simulador da vida no planeta. O jogador controla o desenvolvimento de uma espécie, desde seus microscópicos primeiros momentos, até tornar-se uma evoluída criatura social. 
O que ensina: introduz de maneira prática a teoria da evolução.



Civilization (PC, Playstation)
Desenvolvido em 1991, o jogo propõe o desafio de construir um império que resista ao “teste dos tempos”. Com início na Antiguidade (4.000 a.C.), seus domínios atravessam todas as eras medievais, até chegar a negociações com líderes da Guerra Fria.
O que ensina: faz um painel geral da História.



Angry Birds (Android, iPad, PC)
Um dos principais sucessos da era mobile, de 2009, o game é um quebra-cabeça com pássaros sem asas que, para conseguir voar, são arremessados por um estilingue gigante. Nos smartphones e tablets, são as pontas dos dedos que conduzem os personagens do puzzle, que possui uma legião de adeptos.
O que ensina: pode ser usado nas aulas introdutórias de física do 1º ano do ensino médio, como é feito pelo colégio Dante Alighieri. “Como os alunos têm tablets em sala, usamos Angry Birds para introduzir o assunto sobre lançamentos oblíquos de forma lúdica, apenas para despertar a atenção ao tema”, relata a professora Soraya Sefer.

Autor

Marcelo Daniel


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