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Moluscos e homens

O que há de comum entre seres aparentemente tão diferentes

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Alves

Meu amigo Fábio Roland, da Universidade de Juiz de Fora, cientista especializado na biologia dos lagos, contou-me que o primeiro interesse científico de Piaget foram os moluscos dos lagos da Suíça. Molluscus em latim quer dizer "mole", e deriva de mollis = mole. Moluscos são animais invertebrados que normalmente têm seu corpo protegido por uma concha, tais como as ostras, os mariscos, os caramujos.

Eu me juntaria alegremente a Piaget em suas pesquisas, porque as conchas dos moluscos sempre me fascinaram. Veja, por exemplo, a concha frágil de um simples caramujo gelatinoso, essa praga inimiga de jardins: assombro bioquímico, assombro arquitetônico, assombro matemático, assombro estético. Não admira que haja pessoas que se dediquem a fazer coleção de conchas, como foi o caso de Neruda. Quem tem olhos de poeta vê nas conchas sugestões metafísicas: elas falam sobre a intenção estética que pulsa no universo.

Depois, Piaget abandonou os moluscos. Seu interesse voltou-se para a psicologia, a compreensão dos processos de conhecimento, seu nascimento, seu desenvolvimento e seus mecanismos. Aparentemente, parece que Piaget mudou repentinamente o foco do seu interesse. Que ligação poderia haver entre os moluscos e a psicologia humana? Minha hipótese é que ele não se desviou do seu interesse original pelos moluscos. Moluscos e homens têm algo em comum: ambos têm corpo mole.

Os moluscos, para proteger o seu corpo mole – delicadas delícias culinárias, como é o caso das ostras e dos escargots – e sobreviver, constroem casas chamadas conchas. Os homens, para proteger seu corpo mole e sobreviver, têm também de construir casas. Moluscos e homens são ambos "construtivistas". A diferença é que o corpo dos moluscos já nasce sabendo a arte de construir sua casa. O modelo, os materiais e a forma de suas casas já estão dentro deles. Moluscos não precisam ir à escola. Não precisam pensar para inventar suas conchas.

Mas, ai de nós! Nascemos com um corpo mais mole que o dos moluscos: a pele frágil, desprotegida. Não temos nem penas, nem escamas, nem couro, nem cabelos, nem carapaças. Nascemos nus no sentido mais bruto da palavra. Nus, não sobreviveríamos diante do frio, da neve, da chuva, do calor. Sem saber o que fazer – inferiores, portanto, aos moluscos -, esse corpo mole, nu e desajeitado teve de inventar sua casa. Para isso, teve de aprender a pensar. Foi da moleza do nosso corpo que nasceu a inteligência. Você sabe isso por experiência própria: a inteligência só funciona quando o corpo não dá conta de resolver um impasse prático. Diante de um impasse prático, ele pensa. Inventa.

Como diz o ditado: "A necessidade é a mãe da invenção". A inteligência é a função que torna possível aos homens construir suas casas. E como o nosso corpo, mais incompetente que o corpo dos moluscos, não pode secretar sua própria casa, o jeito é fazer a casa com os materiais que se encontram espalhados pelo espaço ao redor, no mundo. A construção da casa exige conhecimento do mundo. Essa é a origem da ciên­cia. A inteligência sai à procura dos seus materiais. Tem de incursionar pelo mundo: pesquisar. Mas suas incursões e pesquisas não se fazem a esmo: fazem-se guiadas por um motivo prático. A inteligência busca o que é útil. O que é inútil ela ignora.


Rubem Alves

é educador e escritor

rubem_alves@uol.com.br

Autor

Rubem Alves


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