NOTÍCIA

Edição 219

Novo livro de Anna Marie Holm fala sobre a relação com a natureza em atividades de arte-educação

Conhecida por seu trabalho com os bebês e autora de três livros publicados no Brasil, a artista dinamarquesa concedeu a entrevista pouco tempo antes de falecer repentinamente

Publicado em 07/07/2015

por Juliana Holanda

© Gustavo Morita
A dinamarquesa Anna Marie Holm: de zero a 6 anos, somos artistas de instalação

Anna Marie Holm é uma das principais responsáveis pela chegada da arte contemporânea às escolas brasileiras, até então influenciadas pelo pensamento modernista na arte-educação. Seu trabalho também alterou o olhar voltado aos bebês ao entendê-los como seres artísticos. Baby-Art – Os primeiros passos com a arte, lançado no Brasil em 2007 pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), é livro de referência para quem trabalha com a primeira infância. Sua principal influência foi o uso de qualquer espaço ou material como fontes de criação artística. O mais importante impacto de sua obra no ambiente escolar, entretanto, foi o de alterar a atenção centrada na produção infantil para o processo artístico vivido como experiência pelas crianças. Seus livros registram essas experiências, que são o grande “produto final”.

A história dessa dinamarquesa com o Brasil tornou-se um caso de amor recíproco. Em 2002, ela conheceu o trabalho de artistas brasileiros que estavam expondo na Dinamarca e apaixonou-se por seu caráter passional. Dois anos depois, trouxe seu livro Fazer e pensar arte como presente para os amigos que a hospedaram. A obra foi parar nas mãos de Ana Angélica Albano, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que logo reconheceu seu valor inovador. Daí a voltar ao país com o livro traduzido foi um passo. No avião, ficou sabendo que, com o lançamento, faria atividades para quatro mil crianças no MAM. “Isso é o Brasil. Sempre uma surpresa”, diverte-se. Pensando em retrospectiva sobre sua relação com o país, diz que o livro foi “feito para o Brasil”. Dois anos depois, publicava em português, também pelo MAM, Baby-Art, que a tornou mais conhecida por aqui.

Em maio, esteve em São Paulo para lançar seu terceiro livro em português, Eco-Arte com crianças, que estabelece premissas para o uso de materiais não convencionais e de ocupação do espaço ao ar livre. Durante uma semana, Anna Marie realizou atividades com educadores, a convite do Ateliê Carambola Escola de Educação Infantil, responsável pela edição brasileira da obra. A receptividade ao seu trabalho parece ainda encantar a artista. Assediada para tirar fotos a todo momento, ela brinca: “Quando volto para a Dinamarca, ninguém quer tirar foto comigo”.

A revista Educação lamenta o falecimento de Anna Marie, diagnosticada tardiamente com um câncer de estômago no início de julho.

Na entrevista a seguir, concedida por Anna Marie poucas semanas antes de seu súbito falecimento, fala sobre sua visão mais recente acerca da arte na escola e estabelece as bases para um trabalho melhor e mais ecológico com as crianças.

Seu primeiro livro brasileiro, Fazer e pensar arte (de 2005), teve grande impacto nas escolas. Era algo novo naquele momento?
Sim, porque quebrei as regras. Usei a arte como ferramenta para pesquisar o mundo. Normalmente, as escolas estavam de alguma forma mais conectadas à arte moderna, mais ensinando. Eu estava trabalhando com arte contemporânea, num modo aberto de experimento, de pesquisa. Uso muito material reciclado, digo que qualquer material no mundo é artístico. Foi muito bom para as escolas brasileiras, pois o meu modo de pensar a arte não era caro. Então, o livro foi feito para os brasileiros, e eu não sabia disso. Eu o fiz na Dinamarca e estava realmente em uma arte experimental, que muitos não entendiam. Mas as crianças amavam a forma como trabalhava com elas. E me ensinaram a acreditar nessa forma de trabalhar com a arte, que o que faço é a coisa certa. Esse é o meu sentimento profundo. Trabalho da forma que as crianças querem que eu trabalhe.

Como você começou a trabalhar com crianças?
Trabalho com arte a vida toda, trabalhava muito com o desenvolvimento do desenho e da pintura. Mas então comecei a ver que as crianças pequenas são artistas mais de instalação, usam o ambiente ao redor delas. É muito abstrato para uma criança pequena ter uma folha de papel. Se movendo na sala, elas são a sala. São muito artísticas, vão para o mundo.

Em Fazer e pensar arte, você trabalha com crianças de 9 a 12 anos, mas ficou mais conhecida no Brasil por seu trabalho com bebês. Há diferenças entre as propostas?
Sim, mas o pensamento é o mesmo. Sempre trago uma ideia, um ponto de partida. Os mais inteligentes, os mais artísticos, vão longe. É isso que espero, sejam eles bebês ou adolescentes. Mas não trabalho mais com adolescentes. Decidi trabalhar, até o resto da minha vida, apenas com crianças de 0 a 6 anos. Me dei conta de que é a fase mais importante.

Por quê?
Os bebês são muito artísticos na forma com que se relacionam com o mundo. E eles me ensinam. Se você esquecer o que é a abordagem artística do mundo, basta ir a algum lugar do berçário e olhar como eles se relacionam com o mundo. São artistas de instalação desde o começo. É muito interessante ser um artista que trabalha com crianças pequenas. Você pode ter uma pequena ideia, algo pequeno, e eles tornam esse algo grande. Os maiores são racionais, é difícil para eles. Então, se vou escrever mais, se vou desenvolver o meu modo de pensar pela arte, tenho de trabalhar com 0 a 6 anos.

Os bebês são artistas? O que produzem é arte?
Não diria que são artistas. Mas têm um modo muito artístico de tocar o mundo desde que nascem.

Seu trabalho está centrado no processo artístico, e não na produção final. Como nasce uma proposta que você faz às crianças?
É trabalho duro. Todo mundo diz ”Anna Marie, você é tão cheia de ideias”. Trabalho para elas! Vou atrás do mundo inteiro para encontrar ideias. Pode ser uma foto no jornal, uma grande exposição em algum lugar do mundo, eu coleto. E tudo isso para ter uma ideia que você não sabe quando vai aparecer. É um trabalho pesado. E quando faço, parece muito simples. Mas é muito complicado chegar às ideias simples, porque essas pequenas ideias precisam conter muitas possibilidades.

Em Eco-Arte, aprofunda-se a relação da natureza como material para a experiência artística. A ideia é usar a natureza de forma consciente?
Isso é muito importante de ser feito para o futuro. Pare de comprar coisas químicas. Pensamos que, se trabalhamos com arte, temos permissão para fazer coisas ruins com os materiais. Não temos. Somos responsáveis por uma nova forma de trabalhar com arte.

Eco-Arte foi escrito já há quatro anos. Você olhou seu trabalho e sentiu essa necessidade?
Sinto que sou responsável por ser parte dessa mudança. Não podemos ter esse catálogo e comprar todas essas coisas com plástico e comprar, comprar, comprar. Pare. Quando nós não compramos coisas temos de ser mais inventivos. Muito mais artísticos.

Você estabelece alguns “dogmas” para desenvolver as atividades no trabalho com crianças e arte de modo mais ecológico. O primeiro refere-se à construção do espaço para a brincadeira. Como criá-lo?
Apenas ir lá. Não criar, mas sentir o lugar. Sentir onde estamos. Se não for possível ficar ao ar livre, podemos criar todas as possibilidades talvez na sala de aula, mas tirando as mesas, as cadeiras. Depende também dos adultos. Se eles limitam as crianças dizendo ”não faça isso”, ”tome cuidado”, ”não ande”… Gosto de trabalhar com adultos que não limitam as crianças. Mas isso é muito difícil, pois sempre achamos que temos o direito de dizer o que é certo.

Qual o lugar do adulto no processo artístico das crianças?
Eles devem brincar com elas. Seja natural e aproveite o quão fantástico é. Porque é como ouro. Essa é a energia para a qual devemos viver no futuro. Esse grande espaço. As crianças conseguem estar lá. Mas normalmente não as deixamos. Eu conecto isso com a arte porque penso que é muito artístico o que está acontecendo.

O professor precisa ser artista?
Não, eles não podem ser todos artistas. Mas eles têm de aprender, se  não limitam as crianças, a ficar felizes por ter esse ouro. Você não precisa ser um artista, mas você terá uma sensação das coisas fantásticas que estão acontecendo.

Você chama isso de uma experiência artística para as crianças?
Sim. Mas as crianças não pensam que isso seja uma experiência artística. Pensam que é uma brincadeira. Eu não sei se é brincadeira, se é trabalho, se é pesquisa, ou se é arte. Essa é a grande questão. E é isso que eu acho tão fantástico: eu nunca terei a resposta! E é por isso que estou aqui. Lembro de uma vez em que eu trabalhei durante três meses na pré-escola. Em uma manhã, um garoto pequeno veio e disse ”bom-dia, Anna Marie. Você veio brincar conosco hoje de novo?” Ele não percebeu que eu vinha trabalhando com arte há três meses. Isso é muito bom. Muito importante.

Na escola, propostas e atividades sempre têm um “objetivo pedagógico”. Como superar a cultura do resultado quando falamos do processo criativo infantil?
Não é bom estar muito concentrado no resultado. Se você organiza muito e só tem o resultado na sua mente, nunca vai descobrir o que é um sentimento artístico. Algumas vezes você tem de fazer isso, tudo bem. Mas algumas vezes você tem de começar com essa pequena ideia difícil de encontrar e ver o que acontece. E então deixe que a história sobre isso seja o produto. Você quer um produto? Vou te contar a história sobre isso. Isso é um produto.

Você vê diferenças entre os processos artísticos das crianças de quando você iniciou o seu trabalho e os das crianças de hoje?
Não foram as crianças que mudaram. Fomos nós que mudamos a vida delas. É por isso que elas têm de se comportar algumas vezes com tanta energia. Nós vivemos a vida delas, mas elas ainda têm essa energia para o mundo, então, onde elas podem colocar isso? Nós mudamos, não as crianças, elas continuam as mesmas.

Autor

Juliana Holanda


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