NOTÍCIA

Edição 221

O pequeno sonho da reescrita

O professor deve assumir papel de revisor ou editor e não de simples corretor ou vigia da língua

 

© Shutterstock
Atividades em torno dos textos devem fazer sentido histórico: a revisão e a edição, como se faz nas editoras, têm esse sentido

 

Meu pequeno sonho é que não haja mais aulas de português que não sejam de fato aulas de português. Basta de aulas para dividir palavras em sílabas, ditar com pronúncias artificiais, copiar do quadro, sublinhar substantivos, “tirar” verbos da 2ª conjugação, responder a perguntas bobas (Quem subiu a montanha?) para supostamente verificar a compreensão de frases banais como “O burrinho subiu a montanha para pastar”.

Muitas aulas de gramática também são bem bobas. Alguém sabe por que as aulas de todos os anos começam com sujeito e predicado? Já imaginaram aulas de matemática recomeçando sempre com soma e multiplicação?

As adjetivas explicativas estão entre vírgulas? E quem colocou as vírgulas?

Meu sonho geral inclui que se leia muito e durante as aulas. E que os textos lidos sejam comentados e sejam do tipo que mexe com a cabeça dos alunos, que os colocam “pra cima”, exigem que seus cérebros trabalhem (poemas, textos de divulgação científica, trechos exemplares de livros que possam mostrar diferenças de estilo de época e mudanças da língua, entre outros). E que as letras de música que eles eventualmente analisem não sejam da marca Michel Teló – para isso não precisam sair de casa. Que sejam, por exemplo, como Construção (Chico Buarque), de um lado (até para falar com relevância das proparoxítonas, se se quiser), ou Cuitelinho, de outro.

Mas meu principal pequeno sonho tem a ver com escrita. Escreve-se mais hoje – com os aparelhos eletrônicos ­- do que nunca antes, o que gera um pouco de otimismo. Mas me refiro à escrita “trabalhada”, discutida, analisada.

As aulas são para escrever e revisar textos. O professor no papel de revisor ou editor, exatamente como nas editoras, é bem mais interessante do que como simples corretor ou vigia da língua. É que as atividades em torno dos textos devem fazer sentido histórico. E a revisão tem esse sentido (quem quiser ler sobre isso pode pedir como presente o livro Inscrever & Apagar, de Roger Chartier).

Vou mostrar um pouco como podem ser tais atividades “revisando” dois tipos de texto: um arcaico, e um de um aluno de periferia, que todos diriam que é ruim.

Arcaico

A atividade sugerida é do mesmo tipo: reescrever. Num caso, para atualizar (dicas sobre edição e reedição são bem-vindas). No outro, para adequar ou revisar (dicas sobre a norma são importantes). Considere-se este texto do século 14:

“Comta-se que hũu leom era tam velho que se nom podia mouer; e emcontrou com hũu asno e com hũu touro e com hũu porco. Veendo estes que o leom per velhiçe nom se podia mouer, disseram antre si”…

Em uma aula de português, os alunos reescreveriam este texto de modo a torná-lo atual, para que seja publicado em edição moderna. Mesmo sem pretensões filológicas, certos fatos merecem ser comentados:

a) mudanças regulares devem ser anotadas (exemplo: mouer > mover, hũu > um, leom > leão, nom > não etc., sejam de pronúncia ou escrita;

b) ao menos uma mudança sintática: nom se podia mouer > não podia se mover, não podia mover-se).

Desenvolvem-se assim a capacidade de observação e a consciência linguística. Um exemplo de resultado da revisão seria (pode haver soluções alternativas):

“Conta-se que um leão era tão velho que não podia se mover (mover-se, mexer, andar). Encontrou um asno (burro), um touro e um porco. Vendo que o leão, por (por causa de) sua velhice, não podia se mover (andar etc.), disseram entre si”…

Fazer estas alterações e comentá-las é uma verdadeira aula de língua!

Periférico

O outro trecho é o início de um texto de aluno de 3ª série, coletado por Eglê Franchi em Redação na escola: e as crianças eram difíceis.

“Eu e meu golega fomos pescar no riu comesou a puxar e ele viu e puxou e o ansol enroscou e ele subiu na árvore para denherosça e o ansol caio dreto do riu”.

A primeira coisa a ser dita, para evitar leituras tortas, é que é claro que o texto tem problemas. A segunda é que ele também tem virtudes, tem muita coisa bem escrita, isto é, certa. Além de ser um começo engraçado de uma história de pescaria. Se lermos o texto ao lado de antigos, nos quais a grafia resultava de hipóteses dos escritores, e não era fruto de lei, nosso pessimismo pode diminuir bastante.

Além disso, é para que alunos aprendam que existe a escola. Se soubessem escrever corretamente desde sempre, aulas não seriam necessárias.

Grafia

Pode-se reescrever o texto por etapas. Sugiro começar pela grafia (mas se poderia começar pela pontuação ou preenchendo “lacunas”).

A primeira versão poderia ser:

“Eu e meu colega fomos pescar no rio começou a puxar e ele viu e puxou e o anzol enroscou e ele subiu na árvore para desenroscar e o anzol caiu dentro do rio”.

Tudo deve ser comentado à medida que o texto vai sendo arrumado: alguns erros de grafia decorrem da pronúncia (riu), outros, do sistema (s / z em anzol). Deve-se dar destaque ao fato de que, se o aluno escreveu corretamente “enroscou”, poderia ter errado menos escrevendo “desenroscar” (discutir o caso: por que ele não aproveitou “enroscar” para escrever “desenroscar”?).

Pontuação

Em seguida, pode-se mexer na pontuação, o que pode exigir outras pequenas alterações do texto, como eliminar ocorrências de “e”. Ter em mente que sempre há várias alternativas. Uma pode ser:

“Eu e meu colega fomos pescar no rio. Começou a puxar. Ele viu e puxou. Mas o anzol enroscou e ele subiu na árvore para desenroscar. O anzol caiu dentro do rio”.

Elegância

O texto pode ser alterado de outras formas, não só para que fique “correto”, mas um pouco mais “elegante”:

“Eu e meu colega fomos pescar no rio. Os peixes começaram a beliscar. Ele viu e puxou o anzol, mas (o fez com muita força e) o anzol acabou enroscando na árvore. Teve que subir para desenroscar, mas então o anzol caiu no rio / na água”.

Revisão

Pode-se reescrever esse texto durante uma manhã inteira, acrescentando dados, como mencionar tipos de peixes, de iscas, o nome da árvore, informar se o rio era fundo ou perigoso, se a pescaria acontecia de tarde ou ao anoitecer, se pescavam para comer ou por diversão etc.

Se uma “classe” fizer esse tipo de trabalho duas vezes por semana por cinco anos, é certo que o domínio da escrita acabará sendo sofisticado. Uma vantagem (ou desvantagem?): o único “equipamento” exigido é um professor que saiba fazer isso…

O texto antigo, eu o li na Antologia Nacional, livro em que aprendi de fato a ler durante meu “ginásio”. Inclui textos de todas as épocas, comentados em seus aspectos gramaticais e históricos, sem nenhum viés – nem contra, nem a favor.

Mesmo sem estudar explicitamente variação linguística ou história da língua, vai ficando claro que muitas lições de gramatiquinha são ridículas quando comparadas ao que os textos mostram e ensinam.

Nossos alunos merecem aulas de verdade!

Autor

Sírio Possenti, da revista Língua Portuguesa


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