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O que ensinar a quem ensina

Em meio ao corporativismo acadêmico e à oscilação das políticas públicas, cursos de formação de professores escorregam na busca do equilíbrio entre práticas pedagógicas e conhecimento do objeto a ser ministrado.

Publicado em 10/09/2011

por Valéria Hartt

É necessário avançar para um campo mais livre do corporativismo acadêmico e do caráter remediativo das políticas públicas. Falar que a formação de professores vai mal não é novidade. Há décadas discute-se a deficiência dos cursos de formação e questões centrais continuam sem resposta: qual o caráter da formação docente? Os cursos devem apontar para o ensino técnico-profissionalizante ou para a formação acadêmica? Que identidades estão por trás da figura do bacharel, na formação de especialistas, e dos egressos dos cursos de licenciatura? Que lógica pontua a visão curricular de uma ou outra concepção e como isso tangencia, na prática, as exigências curriculares impostas à educação básica?

Apesar da enxurrada de leis, diretrizes e parâmetros curriculares, da multiplicação de cursos e faculdades dirigidos ao magistério, a figura do professor, que personifica o desafio da educação na sala de aula, permanece frágil, ainda à procura de identidade.

Estudo feito pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) em 2003 demonstra que a formação do professor afeta diretamente o desempenho do aluno. Quando o educador possui formação superior, a média de seus alunos na prova de leitura é de 172 pontos. Quando a formação é secundária, cai para 157.

Resta saber, exatamente, qual é a formação pretendida – um embate que se arrasta nos últimos 30 anos e emerge com a freqüência com que aparecem os dados, e a conseqüente fragilidade da escola pública. 

"Ainda não há uma política nacional de formação e valorização do magistério", critica Helena de Freitas, presidente da Associação Nacional pela Formação de Profissionais da Educação (Anfope).


Fragmentação

Na formação superior, os contrastes e dilemas na qualificação docente refletem a própria estrutura do ensino acadêmico no país. Com a reforma universitária iniciada nos anos 70, o Brasil incorpora o sistema norte-americano – a separação de pesquisa e ensino – e retira das faculdades de filosofia os departamentos de educação, até então responsáveis pela formação de professores em nível superior.

O modelo, que na essência permanece até hoje, ainda está na raiz dos sucessivos debates travados em torno da formação desses profissionais. Nem a polêmica criação dos Institutos de Educação Superior (Resolução 01/99), nem as sucessivas diretrizes curriculares para a formação inicial de professores da educação básica conseguiram vencer a fragmentação acadêmica e avançar com consistência na formação dos profissionais de ensino.

"As universidades mantêm uma estrutura medieval, um corporativismo que acaba loteando os currículos segundo essa lógica, e não segundo o interesse da formação do professor. Há muita dificuldade para articular as especialidades com os saberes específicos da formação docente a partir da pedagogia", sustenta Roxane Rojo, professora do Departamento de Lingüística Aplicada da Unicamp.


Conhecimentos pedagógicos

Na prática, é fácil comprovar a dificuldade apontada pela educadora. Até hoje, o campo específico da educação e da pedagogia se reduz a cerca de 1/5 do total da carga horária dos cursos de formação inicial.

Na USP, a Faculdade de Educação mantém apenas seis disciplinas de conhecimentos pedagógicos na grade da licenciatura: Introdução aos Estudos de Educação (60h), Psicologia da Educação (60h), Didática (60h), Metodologia do Ensino I e II (120h), Política e Organização da Educação Básica no Brasil (60h), além de Estágio Supervisionado (300h).

Outro entrave diz respeito à prática de ensino. Nas licenciaturas que preparam profissionais para o atendimento a crianças de 0 a 11 anos, a exigência legal aponta para 300 horas de estágio supervisionado, "prioritariamente em educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental",  e 100 horas de atividades teórico-práticas de aprofundamento em áreas específicas. No curso de Enfermagem, por exemplo, o estágio corresponde a pelo menos 20% da carga horária total, fixada em 3.200 horas.

Ainda que seja desejável a ampliação da carga horária destinada à prática de ensino, os especialistas alertam para os perigos de sua aplicação isolada da reformulação curricular.

"A prática pedagógica sem reflexão teórica é mera situação de treinamento. Falta uma estrutura curricular e falta ao professor uma formação básica. A formação pedagógica precisa vir antes da formação do especialista. Essa é uma lógica que precisa ser invertida", sustenta Lisandre Maria Castello Branco, professora da Faculdade de Educação da USP e psicanalista pelo Sedes  Sapientiae.  "Se você perguntar para muitos cursos de licenciatura qual o seu conceito de educação, muitos ficam sem resposta. Se perguntar qual o papel do professor, muitos não sabem. Precisa existir um currículo articulado, diversificado, em que  o embasamento teórico é fundamental", propõe.


Objetos de ensino

Se é consenso que para se tornar professor é preciso ter conhecimentos e práticas que ultrapassam o campo de sua especialidade, há também críticas à precariedade da formação nas áreas específicas – aquelas que, na sala de aula, se constituem em objetos de ensino.

Na Universidade Estadual de Feira de Santana (UFFS), Bahia, a grade de licenciatura para formação inicial de professores de Geografia prevê 150 horas para o ensino específico da disciplina, distribuídas em dois módulos de 75 horas cada.

Em tese de doutorado apresentada na Federal de São Carlos, a pesquisadora Cleonice Braga, da Faculdade de Educação da UFFS, analisa o cenário para propor uma visão que, acredita, vai ao encontro da necessidade dos cursos de formação. Entende que, se todos os alunos desenvolvem ou desenvolverão sua prática de ensino em Geografia, seria de fundamental importância que essa disciplina fosse destacada como ponto de partida para as reflexões, como direcionadora de estudos teóricos, "para que pudesse ser reconstruída e, finalmente, transformada".

Afinal, onde os professores das séries iniciais aprenderão os conhecimentos das áreas específicas que precisarão ensinar ou que já ensinam?  É uma discussão carente de proposições objetivas ainda hoje.

Ao instituir que "somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço", a LDB 9.394/96 fomentou a participação da rede privada de ensino superior. Só em 2000, 142 novos cursos de Pedagogia foram autorizados pelo MEC, a maior parte de instituições privadas, segundo dados do Censo Escolar e de outras fontes cruzados por Roselane Campos, da Federal de Santa Catarina.

"Que meta poderia estar comprometida com a qualidade, ao prever a formação de 225 mil professores em dez anos?", questiona Cleonice.


"A formação pedagógica precisa vir antes da formação do especialista. Essa é uma lógica que precisa ser invertida", diz Lisandre Maria Castello Branco, da Feusp

Mas o nó da questão não parece estar no caráter quantitativo. Políticas para a educação por vezes têm de assumir um alcance ampliado, de massa. Ao contemplar o aumento de professores graduados para as etapas iniciais do ensino fundamental, a proposta avançou – ainda mais quando se considera seu alcance em regiões até então desprovidas de qualquer referencial acadêmico para a formação do magistério. O entrave é que, ao ignorar deficiências antigas, a explosão de licenciaturas não veio acompanhada de mudanças qualitativas. Não teve nem mesmo o próprio exemplo do Estado, que preferiu repassar a instituições particulares grande parcela da responsabilidade pela formação. Multiplicaram-se as licenciaturas, algumas sem cumprir sequer a carga horária prevista em lei.

O estudo de Roselane Campos, rea­lizado em 2004, indicava a existência de 2.138 cursos de formação de profes­sores, divididos em 765 cursos Normais Superiores e 1.373 cursos de Pedagogia. Do total, 38,54% são vinculados a instituições públicas federais e estaduais e 61,31% a instituições privadas.

"Houve e continua havendo um investimento grande na privatização do ensino superior, apesar das negativas do discurso oficial. O ProUni é exemplo dessa política, ao fornecer bolsa de estudo em faculdades particulares, ao invés de fortalecer as universidades públicas", diz Roxane Rojo, da Unicamp.


Rebaixamento

O cenário preocupa. Se, de um lado, são essas instituições que oferecem o maior número de vagas – faculdades integradas, isoladas, não raro sem vínculos com a pesquisa e a produção de conhecimento -, não se pode ignorar que concentram também um número menor de docentes titulados em relação às instituições públicas.

"São ações que marcam uma concepção de formação de professores aligeirada, rebaixada, orientada por manuais didáticos e de caráter pragmatista", critica a presidente da Anfope.

A mesma expansão desordenada aconteceu com os cursos a distância, também legitimados para a formação inicial. Hoje, é quase impossível precisar o número de cursos, estudantes e pólos a distância. Há instituições com mais de mil pólos espalhados pelo país e cursos que o futuro professor só freqüenta uma ou duas vezes ao mês.Outros, só quando têm dúvida.


Avanços e conflitos

Ainda que timidamente, a política oficial trouxe avanços em 2002. A formação de professores deixou de ser um apêndice do bacharelado, houve melhor distribuição das matérias pedagógicas no currículo e a carga horária total aumentou para 3.200 horas – 2.800 dedicadas às atividades formativas.

Em abril de 2006, novo parecer do Conselho Nacional de Educação (CNE 05/2006) ampliou as mudanças nos cursos de pedagogia, com a indicação clara de que cabe a eles, por excelência, a formação de professores para educação infantil e séries iniciais do ensino fundamental. A intenção era fortalecer a educação básica. O resultado concreto sugere um conflito ainda maior na já fragilizada identidade dos cursos de formação. Ao confronto entre bacharelado e licenciaturas, somou-se outro, entre as licenciaturas e os cursos de pedagogia.

Para os críticos, o formato descaracterizou a formação docente, ao incluir na Pedagogia também a missão de preparar profissionais na área de serviços e apoio escolar, "bem como em outras áreas nas quais sejam previstos conhecimentos pedagógicos".

Surgiram comparações que apontam a pedagogia como um verdadeiro empório, com produtos variados, dependendo da demanda do cliente. Com promessas de emprego em outros segmentos do mercado de trabalho, não foram poucos os cursos que se distanciaram do espaço da educação como a finalidade da formação de seus profissionais.

No extremo oposto, ainda que contrários às distorções criadas, aglutinaram-se os defensores da chamada Base Comum Nacional, no entendimento de que o exercício de atividades como supervisão, gestão e coordenação pedagógica têm como base a docência e a ela devem estar atrelados de forma indissociável.


Contradições

Há um conflito claro quando a formação de professores esbarra na realidade concreta da sala de aula. Fala-se em formar alunos com visão crítica, mas a muitos professores falta uma visão ampliada da realidade. Fala-se em formar alunos pensantes, quando há docentes que não conseguem desenvolver habilidades de raciocínio ou flexibilidade de pensamento.

As críticas não são novidade. Ao contrário, chegam a ser repetitivas, tratadas em um sem-número de artigos, teses e estudos de diferentes especialistas. Culpar o professor é ignorar o enorme paradoxo em que está inserida sua identidade e prática profissional.

"O professor só ensina aquilo que sabe e na perspectiva daquilo em que acredita. Se ele é formado no paradigma da transmissão-recepção do conteúdo, dificilmente se sentirá à vontade para desenvolver a atividade docente em uma perspectiva construtiva, conforme proposta dos PCNs e das novas diretrizes para formação de professores da educação básica", diz   Inez Araújo, pesquisadora do Centro de Educação da Federal de Sergipe.


Roxane Rojo, da Unicamp: "dificuldade para articular as especialidades com os saberes específicos da formação docente, a partir da pedagogia"

Está aí a primeira contradição entre o que é proposto pelos documentos oficiais e o que é efetivamente realizado nos cursos de formação.

Outra, mais gritante, põe em xeque a coerência entre a formação e a prática esperada do futuro professor. As diretrizes, ao fundamentar a simetria invertida, deixam como pressuposto a idéia de que, em seu processo formativo, o futuro profissional vivencie experiências que, mais tarde, realizará com seus alunos no exercício do magistério. Não é o que acontece. Os professores universitários, por não estarem formados pela visão apontada pelas diretrizes, não formam alunos para essa nova realidade educacional. Não se pode pretender semelhança alguma entre a disciplinarização calcificada nas universidades e os eixos temáticos dos PCNs para o ensino fundamental. É preciso antes diminuir a distância entre as instituições formadoras e a educação básica.
No estudo em que acompanhou o uso da matemática na vida de crianças e jovens da periferia de Recife, a pesquisadora Teresinha Carraher demonstrou que, na prática, eles utilizam conhecimentos que não são capazes de reproduzir na vida escolar. No livro Na Vida 10, na Escola Zero (Cortez, 1995), ela traz sugestões para olhar o raciocínio de  forma independente da ideologia do saber instituído.

José Carlos Libâneo, da Faculdade de Educação da Universidade Católica de Goiás, completa: "Há excesso de discurso científico-educacional e pobreza de práticas pedagógicas. Estamos preocupados com os desafios do futuro, o professor do futuro, a escola do futuro, enquanto vivemos nas escolas um presente dramático, sofrido e contraditório". Qualquer semelhança com a história do Brasil não é mera coincidência.



Déficit crescente

O país corre sério risco de ficar sem professores de ensino médio na rede pública. Ao estabelecer a correlação entre o fomento pretendido pelo Foeb para os anos finais da educação básica e o número de egressos das licenciaturas, o Conselho Nacional de Educação ecoou o alerta que já havia sido dado dez anos atrás. Em 2003, o próprio governo Lula apontou a gravidade do problema, com a criação da Capemp (Comissão de Aperfeiçoamento de Professores do Ensino Médio e Profissional). Agora, ampara-se no sinal vermelho indicado pelo Saeb em 2005 para concluir o óbvio: há um enorme déficit de professores – 235 mil, segundo dados preliminares do Inep – particularmente de física, química, matemática e biologia.

Relatório da Câmara de Educação Básica do CNE, divulgado em julho, fala em "apagão do ensino médio" e pede "providências urgentes". O tom alarmista, embasado por números aparentemente subestimados (o déficit era de 253,8 mil em 2003), faz parecer novidade uma questão antiga. Frente a uma demanda estimada em 55,2 mil professores de física para o ensino médio, por exemplo, pouco mais de 7 mil efetivamente se licenciaram entre 1990 e 2001.

Autor

Valéria Hartt


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