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O tempo lento do educar

Para o mineiro Francisco Marques, o Chico dos Bonecos, a arte de educar está diretamente ligada à arte de aprender. Duas artes com tempos próprios

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Perissé

Não se pode conceber uma arte de ensinar destituída de alegria, de descobertas emocionantes, e de uma disciplina que nasça da harmonia. Professores que exercem essa arte profissionalmente desenvolvem, também com alegria, e com disciplina, talentos didáticos necessários para que suas aulas sejam inesquecíveis. O talento da voz audível e persuasiva. O talento do corpo entusiasmado. O talento da memória fluente. O talento da linguagem viva, musical. O talento da imaginação cheia de cores.

Esses talentos estão presentes no trabalho do educador e escritor mineiro Francisco Marques (1959-), ou, como vem se tornando cada vez mais conhecido, o Chico dos Bonecos.

Salta aos olhos e impressiona os ouvidos o jogo contínuo de sons e letras, imagens e palavras. Lançando mão das tradições populares, das canções de domínio público, Chico dos Bonecos vai recriando a linguagem, revirando os conceitos, inspirando professores e alunos. É de sua autoria, por exemplo, a paródia que há de salvar aqueles que, em outros tempos, dormiram com medo das terríveis caretas do Boi da Cara Preta:

Foi, foi, foi,
foi só pra você
que eu troquei a letra
da canção de adormecer.

  
Numa entrevista, Chico dos Bonecos disse que, para ele, o brinquedo mais atraente é a palavra. A palavra em tensão criativa, luminosa, cantarolante, rimável, amigável. Em seu livro A biblioteca dos bichos (1995), com versos redondilhos maiores, define a leitura que cada um sabe fazer. Saltada, como a do sapo:

O Sapo só lê pulando.
Cada pulo é uma vitória!
Pula de um livro pra outro
na prateleira de História.
  
Rica em vocabulário:
Maritaca xexelenta
prova um milho imaginário:
espaventa a xexelência
debulhando o dicionário.
Atenta ao seu poder:
A Pintada toda-toda
lia limpando o bigode:
– Com a força dessas palavras
nem a minha pinta pode…

A leitura educadora que os bichos fazem serve como estímulo para o bicho-homem, inventor dos livros mas nem sempre adepto desta maravilhosa invenção. E não há forma melhor de ensinar do que mostrar como se faz, algo bem mais divertido do que, de longe, e com cara amarrada, mandar o outro fazer… o aluno fazer.


Lugar de brincadeira é na escola


Se o professor é um artista, e se a leitura é animado jogo de palavras, a escola só terá sentido se se tornar lugar de brincadeiras. Porque a brincadeira ensina. O estudo é divertimento, quando se entende que aprender é decorrência natural de estar vivo, os cinco sentidos abertos. A escola é o lugar no qual letras e números são brinquedos.

No livro Garranchos (2001), um dos poemas mostra a escola mais humilde como lugar privilegiado em que a criança pode entregar-se de corpo e alma à experiência do aprender:

Meu pouco estudo
minha leitura fraca
eu aprendi numa escola rural
– dessas pequenininhas que cabem no bolso.
Dessas que
numa olhadela
cabe a escola todinha
e aguenta ainda litros de céu
árvores e árvores
cachorros e cocôs no corredor
e um menino com a cara breada de terra
brincando com os números.


Aluno de Comênio


Para educar, precisamos respirar "profundalentamente", sem pressas, sem ansiedade. Educar é tarefa existencial. O professor, a professora como fontes de calor e de luz. Nada fácil. Mas é imprescindível. Caso contrário, o aprender perde toda a graça. Vira desgraça.

No seu mais recente livro, Muitas coisas, poucas palavras (2009), Chico dos Bonecos capta o essencial dos ensinamentos de Comênio em sua Didática magna, em estilo teatral, com direito a canções e ilustrações (estas, a cargo de Silvia Amstalden).

A arte de ensinar é fruto de outra – da arte de aprender. E uma e outra não podem ser submetidas à pressa ou a discursos de eficácia que atropelem o mais importante:

A nossa arte de ensinar é uma estrada segura, clara, cercada de infinitas coisas para se ver, ouvir, saborear, pegar, cheirar. Por isso, nessa estrada caminhamos devagar, calmamente, lentamente.

Nessa estrada uma coisa vem depois da outra. Portanto, a demora para consolidar um conhecimento não é sinônimo de perda de tempo. Ao contrário, é uma economia de tempo, porque, a partir daí, um novo conhecimento pode ser construído com segurança. Por isso, nessa estrada, caminhamos rapidamente – lentamente.

Esse é o paradoxo fundamental do aprender brincando e do brincar aprendendo. O aprendizado que respeita a realidade de cada aluno não é veloz nem lento. Cada passo tem o seu momento, o seu atrativo, a sua dificuldade, a sua beleza.
Atuando como discípulo e divulgador de Comênio, Chico dos Bonecos defende outro paradoxo. Torna presente entre nós um pensador com mais de 400 anos de idade, um pensador do passado, cujas ideias, no entanto, ainda são consideradas utópicas, futuristas, vanguardistas, desafiantes.


Fontes

A biblioteca dos bichos. Belo Horizonte: Formato, 2008.
Entrevista de Chico dos Bonecos, em:
http://www.youtube.com/watch?v=xynHEy5Ocvc

Garranchos. São Paulo:
Paulinas, 2001.

Muitas coisas, poucas palavras.
São Paulo:
Editora Peirópolis, 2009.


*Gabriel Perissé


é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP)
(



www.perisse.com.br



).

Autor

Gabriel Perissé


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