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Ensino 223

A função da universidade não é produzir patentes

Kim Daasbjerg, professor da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, afirma que os pesquisadores não devem se preocupar com a viabilidade comercial de suas descobertas

Publicado em 06/11/2017

por Marina Kuzuyabu

Kim-Daasbjerg, professor da Universidade de Aarhus, defende liberdade para os pesquisadores Daasbjerg: empresários e investidores querem garantir o retorno dos investimentos que fazem em pesquisas. A universidade, contudo, não precisa ter essa preocupação

Daasbjerg: empresários e investidores querem garantir o retorno dos investimentos que fazem em pesquisas. A universidade, contudo, não precisa ter essa preocupação

A Universidade de Aarhus é a segunda maior universidade da Dinamarca, superada apenas pela Universidade de Copenhague. Ela foi fundada em 1928 e hoje conta com 42,5 mil estudantes. Como define em sua página na internet, sua missão é encontrar soluções para os complexos desafios do mundo atual e, para isso, busca manter uma estreita colaboração com empresas e indústrias.

Isso não quer dizer, contudo, que não há espaço para a pesquisa básica, também chamada de pesquisa pura, que é aquela que busca o avanço de teorias científicas.

Pelo menos é isso o que vem defendendo Kim Daasbjerg, professor de química da instituição e idealizador de um interessante projeto de inovação aberta, o Open Science.

A iniciativa é uma resposta a um problema detectado por ele e que, em sua opinião, está afastando as universidades de sua missão, que é beneficiar a sociedade. O problema reside na pressão sobre os pesquisadores para que eles façam descobertas com viabilidade comercial e gerem renda com patentes e licenciamento, uma situação que, no limite, coloca em risco a própria geração de ideias.

A solução para Daasbjerg é liberar os pesquisadores dessas amarras e simplesmente proibir o registro de patentes. Só assim eles voltarão a ter liberdade para testar ideias “selvagens”, como define, sem se importar com o resultado comercial dos experimentos.

Na entrevista a seguir, o professor conta em detalhes o projeto e os benefícios que ele trará para toda a comunidade.

A Aarhus University se apresenta como uma instituição que valoriza muito a colaboração com empresas e indústrias. Como o projeto Open Science se insere nesse contexto e quais são seus benefícios?
O projeto Open Science já tem sua primeira plataforma de inovação aberta, a Spoman, que, nesse caso específico, é voltada para o desenvolvimento de polímeros inteligentes e nanocompósitos [Spoman é um acrônimo de Smart Polymer Materials and Nano-Composites]. A iniciativa trará muitos benefícios para todas as partes envolvidas.

No campo de interesses das companhias privadas, a iniciativa permite que empresas, pesquisadores e estudantes trabalhem em conjunto em torno de temas fundamentais para a ciência. Como resultado, a pesquisa básica passará a desempenhar um papel mais importante na inovação industrial. Embora essas pesquisas tenham potencial para aumentar a produtividade dos negócios e gerar soluções comerciais inovadoras, apenas uma pequena porcentagem das empresas dinamarquesas opta por esse tipo de investimento. A razão disso é que os resultados da pesquisa básica são muito imprevisíveis e, muitas vezes, levam muitos anos para gerarem lucros. Isto é especialmente verdadeiro para as pequenas e médias empresas que, geralmente, têm menos recursos disponíveis para investir em conhecimento e integrá-lo aos esforços de pesquisa e desenvolvimento.

No entanto, todas as empresas, independentemente do tamanho, são pressionadas por investidores e competidores a gerar melhorias incrementais e de curto prazo para produtos existentes, a fim de conseguir retornos mais rápidos.
A iniciativa Spoman é um remédio para esse fato infeliz.

A adesão é livre e ela reduz, para as empresas, os riscos de explorar ideias radicalmente novas por meio da pesquisa básica. Em outras palavras, pequenas e grandes empresas têm a chance de testar ideias “selvagens” que, potencialmente, podem levar à inovação radical. Em resumo, os benefícios para as empresas privadas são os seguintes: acesso fácil e gratuito ao conhecimento de ponta que pode ser usado para desenvolver novos produtos, serviços etc.; acesso aos nossos alunos e possíveis funcionários; contato com uma ampla seleção de pesquisadores de classe mundial; contato com empresas para discutir interesses compartilhados ou estabelecer novas colaborações comerciais; e possibilidade de explorar ideias selvagens e potencialmente mutáveis, que, de outra forma, seriam consideradas muito arriscadas pela administração ou pelos investidores.

E quanto aos pesquisadores e alunos? Quais são as vantagens para eles?
Os pesquisadores têm contato com colegas de outros grupos e instituições – e potenciais novos parceiros de colaboração; acesso a parceiros industriais que podem financiar projetos de pesquisa; possibilidade de publicar em conjunto com parceiros industriais – estes tipicamente produzem um maior impacto do que os pesquisadores acadêmicos comuns; estímulo para novas ideias de pesquisas; incentivo para resolver problemas interdisciplinares; e suporte para criar empresas ou divisões de empresas a partir de demandas do mercado.

Por ter uma abordagem aberta e transparente, a Spoman também aumenta a reprodutibilidade e a qualidade dos resultados da pesquisa. Já os benefícios para os estudantes são: treinamento em um ambiente altamente interdisciplinar; capacitação para resolver problemas com base na necessidade; contato com potenciais empregadores; desenvolvimento de novas habilidades em comunicação científica; e integração a uma grande rede de contatos na academia e na indústria.

De onde veio a ideia de criar o projeto?
Até certo ponto, a iniciativa Spoman foi uma maneira de trazer a ciência de volta aos valores Mertonianos [relativos ao conjunto de normas estabelecidas pelo sociólogo americano Robert K. Merton em 1942], como abertura, transparência e reprodutibilidade.

Durante as duas últimas décadas, os políticos dinamarqueses intensificaram os esforços para “forçar” as universidades a criar valor para a sociedade, como se fossem empresas, e comercializar suas ideias através de transferência de tecnologia (patentes, licenciamento, etc.). A colaboração Spoman neutraliza esse foco, já que seus fundadores não acreditam que as pesquisas tenham que, necessariamente, produzir receitas impressionantes. A abordagem fechada e protecionista pode impedir a missão original das universidades, que é beneficiar a sociedade.

Além disso, a política acima mencionada favoreceu a pesquisa aplicada em prejuízo da pesquisa básica – e isso pode eventualmente acabar com a própria fonte de ideias e descobertas. Além disso, os pesquisadores universitários encontram-se sob enorme pressão competitiva para ser o primeiro a publicar novos resultados – e eles, por exemplo, são avaliados com base no número e impacto de suas publicações.

Infelizmente, esse sistema encoraja o protecionismo e a concorrência, em vez de colaboração e compartilhamento de resultados. Como resposta, o Spoman permite que as universidades se concentrem no que melhor fazem: pesquisa básica e educação. E convida as empresas no processo a fazer o que melhor fazem: aplicar os resultados para fins comerciais. Portanto, o Spoman reduz a distância da pesquisa básica à inovação / aplicação, convidando a indústria a se tornar parte de toda a cadeia de pesquisas.

Ao fazer isso como ciência aberta, os resultados estão abertos para todos, portanto, novos materiais, técnicas ou conhecimentos são usados ​​não apenas em uma, mas em muitas aplicações. Isso permite novas colaborações e compartilhamento de experiências que, no final, podem reduzir os custos de pesquisa e desenvolvimento.

Como o Open Science funciona na prática?
A indústria e os pesquisadores definem projetos científicos básicos com base em desafios comuns a mais de uma empresa. Os projetos são realizados por estudantes. Nesse semestre, temos 20 alunos (de programas de mestrado, doutorado e pós-doutorado) trabalhando em colaboração ativa com parceiros industriais. Todos os resultados, métodos e planos são compartilhados na plataforma do Open Science (http://osf.io/wudyt/).

Como os pesquisadores e as empresas receberam a iniciativa?
A iniciativa Open Science se desenvolveu a partir de uma estreita colaboração entre pesquisadores acadêmicos e oito empresas fundadoras: RadiSurf, SP Group, NEWTEC, ECCO, LEGO, Alfa Laval, Vestas e Velux. Já temos outras empresas conosco e, até o momento, nenhuma delas demonstrou preocupação quanto à natureza aberta da iniciativa. Como mencionado anteriormente, essa é uma situação de ganha-ganha.

No entanto, existem preocupações entre os pesquisadores acadêmicos. Alguns participam por idealismo – eles querem abrir a ciência novamente –, outros porque veem a Spoman como uma espécie de rede e meio para conseguir financiamento. Mas também temos os que não se inscrevem na abordagem aberta e aqueles que não desejam participar em absoluto, e está tudo bem. O Spoman é um complemento da forma como as pesquisas e transferências de tecnologia são tradicionalmente realizadas. Mas esperamos que o Spoman crie um fluxo de projetos derivados e que estes levem a patentes. Ninguém pode patentear os resultados abertos, mas suas aplicações específicas podem, sim, ser registradas.

O modelo da inovação aberta é viável para empresas que investem grandes somas em pesquisa e desenvolvimento? Elas não se preocupam em proteger os resultados dessas pesquisas?
Como todos os projetos são projetos de pesquisa básica, não há segredos, produtos ou aplicações envolvidas. Por exemplo: podemos desenvolver conceitos para uma nova classe de material. Mas nenhuma das empresas precisa divulgar o que pretende fazer com o material – e ele pode servir para propósitos muito diferentes em diferentes setores e empresas. Assim, as discussões se concentram em grandes necessidades industriais e não em aplicações específicas. Atualmente, temos tanto empresas grandes (por exemplo, LEGO e ECCO), como médias e pequenas.

Quanto aos pesquisadores, eles não estão frustrados com a ideia de que não serão reconhecidos individualmente?
As pesquisas deverão ser publicadas em revistas, como acontece usualmente. No caso de os pesquisadores publicarem com parceiros industriais, as análises bibliométricas indicam que eles alcançarão um impacto maior – e ainda terão mais citações – do que se publicarem sozinhos. E isso pode, por sua vez, beneficiar suas carreiras.

Além disso, a iniciativa Spoman pode trazer desdobramentos individuais para os pesquisadores em projetos posteriores de colaboração “fechada”. Finalmente, o Open Science Framework usado para publicar os dados e resultados tem uma característica especial que permite que o pesquisador individual seja “cotado” cada vez que seus dados são usados ​​ou baixados. Com o tempo, isso pode contribuir para novos indicadores na forma como as universidades avaliam seus pesquisadores e uma nova “economia de reputação” que não se baseia apenas no protecionismo e nas citações.

Quais resultados vocês já colheram?
A iniciativa é muito recente e ainda não gerou novos produtos ou aumento de emprego, por exemplo. Mas acreditamos firmemente que isso acontecerá quando o projeto amadurecer. Estes são, no entanto, efeitos de longo prazo que não podemos esperar medir já.

Quanto aos efeitos de curto prazo, posso dizer que nós detectamos objetivos de estudo / interesse comuns entre estudantes, pesquisadores, empresários, políticos e gestores universitários e conseguimos financiamento da Fundação Industrial Dinamarquesa e da própria universidade para lançar o Spoman. Como iniciamos o Open Science em janeiro de 2017, já temos relatados quatro projetos e acabamos de iniciar outros oito envolvendo mais 20 alunos. Todos os meses, as empresas e os pesquisadores estão se reunindo para discutir temas de ciência, a direção dos projetos e o próprio conceito de inovação aberta.

Outro resultado que pode ser mencionado é o fato de já haver pesquisadores e parceiros industriais planejando colaborações “fechadas” para amadurecer resultados do Spoman. Desta forma, novas colaborações e maiores investimentos em pesquisa já estão em andamento. Os parceiros industriais também estão relatando enormes benefícios depois que se conectaram a novos pesquisadores e empresas. Essa rede abriu oportunidades para o desenvolvimento de novos negócios, P&D e até novas relações comerciais. As primeiras publicações devem acontecer dentro de um ano.

Em sua opinião, outras instituições podem replicar o projeto? Que caminhos eles devem seguir para alcançar um resultado semelhante?
Todos podem replicar o projeto – e espero que alguém o faça. Usaremos nossa avaliação para propor princípios básicos sobre como fazê-lo. No entanto, podem existir diferenças regionais, institucionais ou disciplinares para que uma nova implementação siga uma rota completamente diferente da nossa. Estamos mais do que satisfeitos em ajudar com a nossa experiência se alguém estiver interessado.

Leia também: Universidade Feevale cria programa de inovação aberta

Autor

Marina Kuzuyabu


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