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Patrulhamento do “politicamente correto” assombra professores

Para especialistas, conflitos entre educadores e alunos revelam campos de tensões ainda não resolvidos na sociedade e devem ser respondidos pedagogicamente

Publicado em 07/10/2014

por Cristina Charão

Getty Images

 
Quando professores e alunos passam pelos portões da escola, carregam com eles não só livros, cadernos, lápis ou canetas. Trazem consigo também o que leram no jornal ou viram na TV, o que compartilharam na internet e tudo o mais que ouviram, conversaram, experimentaram pelo caminho. Professores e alunos carregam para a escola suas crenças, descrenças, certezas, incertezas e também opiniões e questionamentos que circulam pelas ruas.

Ou seja: os portões não têm o poder mágico de anular a história dos indivíduos que passam por eles e, por consequência, tampouco neutralizam os conflitos que podem nascer do encontro de visões distintas de mundo em uma sala de aula. “É uma grande ingenuidade achar que pode haver ação humana neutra”, diz Pedrinho Guareschi, professor do programa de pós-graduação em psicologia social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele, que foi orientando de Paulo Freire, lembra que é justamente do encontro entre diferentes posições que nasce o processo pedagógico.

Mas quando os conflitos do lado de fora se acirram, os ânimos dentro da escola também se influenciam. “É substancialmente mais fácil uma educação em uma sociedade em que haja consenso sobre o que é belo, feio, certo e errado”, diz José Sérgio Fonseca de Carvalho, doutor em Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo, professor da Faculdade de Educação na mesma instituição e colunista de Educação. “Mas vivemos, no Brasil, um momento de absoluta diversidade de posição e absoluta incomunicabilidade entre essas posições,” avalia. Neste embalo, o que seria oportunidade de educar reduz-se a confronto. E sem sentido.

Patrulhamento
Um professor de cursinhos pré-vestibulares em São Paulo – que pediu para não ser identificado – reclama, por exemplo, do que ele chama de “patrulha do politicamente correto”. “É uma patrulha tão cega de alguns alunos, sempre em busca de alguns indícios que, na opinião deles, mostram algum tipo de preconceito escondido que é o suficiente para que você seja alvo do ódio e perseguição”, diz ele. Como exemplo, conta que fez um comentário despretensioso sobre não gostar de lojas de utilidades domésticas durante uma aula e teria sido chamado de “machista nojento” por uma aluna. Ele se diz tolhido por este tipo de postura, que considera belicosa.

José Sérgio contextualiza a questão. “Não há por que a gente temer o conflito: a relação professor aluno é uma relação pautada pelo conflito”, diz. “A questão é como responder pedagogicamente aos conflitos que estão instalados.”

E não há fórmula pronta a ser seguida pelos docentes, mas exclusivamente um preceito que deve balizar a prática pedagógica: a busca permanente do equilíbrio entre as convicções pessoais e o papel do professor como parte de uma instituição – a escola – regida por valores sociais, como, por exemplo, o combate a todo tipo de preconceito, a busca da igualdade racial e de gênero, a laicidade do Estado.

O professor Guareschi recorre novamente a Paulo Freire – “não há um que sabe mais e outro que sabe menos; há um que sabe uma coisa e outro que sabe outra coisa” -, para indicar que a busca desse equilíbrio passa justamente por acolher os questionamentos dos outros frente a questões.

“A essência do processo pedagógico é fazer perguntas”, diz. Quando a escola se pretende neutra e deixa de ser o espaço para se questionar, passa a formatar e não formar cidadãos e cidadãs.

E quando esse ambiente não está dado no ambiente escolar, seja qual for o motivo? O professor de pré-vestibulares ouvido pela reportagem – que descreve as ações de patrulha a que tem sido submetido no seu trabalho – lembra, no entanto, que esta dinâmica de discussão e debate de ideias não cabe em aulas de cursinho, voltadas para a transmissão de conteúdos muito específicos.

Questão de classe
O professor aponta na direção das escolas ou, mais especificamente, de determinadas escolas “de elite” – que formam a maioria dos alunos que fazem parte do público que procura os cursinhos preparatórios – e que se dedicariam a uma formação mais crítica dos alunos, para indicar a origem do que considera um autoritarismo dos alunos.

Ele reconhece que é importante estar atento para não se reproduzirem o racismo, o machismo, a homofobia, mas se diz incomodado com a “patrulha injusta”.

De forma sintomática, aquilo que é considerado um avanço – o reconhecimento de que a maneira como falamos ou nos referimos às minorias sociais é também uma forma de reprodução dos preconceitos – parece não ter chegado justamente à população que mais é vitimada pela exclusão social. Na escola pública, que recebe a imensa maioria dos filhos das classes mais pobres, o “politicamente correto” passa longe.

“Ninguém tá nem aí, há deboches de todo tipo”, relata uma professora de português da rede municipal de Porto Alegre, que também pediu para não ter seu nome citado.

Ela conta que é muito comum o conhecido “pegar no pé” por conta da orientação sexual dos colegas e ver alunos gritando ofensas raciais – inclusive, alunos negros. Mas o deboche alcança também o próprio politicamente correto. “Outro dia, um deles me disse: ”Só não deixa eu ir ao banheiro porque sou negro”. E ele era branco!”

O que é da escola?
Mais do que com as piadas sem graça, a professora mostra-se preocupada com o fato de que a concepção de escola internalizada pelos alunos igualmente reflete o ideário da escola neutra, focada na transmissão do conteúdo. Ela narra um episódio revelador: “Eu propus aos alunos que participássemos de um concurso, produzindo vídeos sobre a questão do negro, partindo da história de Zumbi do Palmares. Um aluno, negro, me contestou, me enfrentou até em sala de aula dizendo que onde já se viu, isso não era coisa para se fazer na escola.”

O que é ou não é “coisa para se fazer na escola” é foco permanente de disputas que se expressam também na postura das direções e coordenações e, frequentemente, dos pais em relação ao conteúdo e ou práticas pedagógicas propostas por professores. Em grande parte dos casos, essas disputas ganham contornos moralizantes, como ocorreu – mais de uma vez – com uma professora de português da rede privada de Porto Alegre.

Ela conta que a presença da palavra “coito” em um texto que ela havia selecionado para ler com alunos da segunda etapa do Ensino Fundamental foi o suficiente para ouvir reclamações. Em outro episódio, a menção ao hábito de fumar também foi questionada. “As pessoas que fazem a escola têm se achado muito modernas, mas em geral eu vejo muitos discursos prontos”, diz a professora. “E o pior é que esta coisa toda do politicamente correto acaba mascarando as questões mais profundas.”

Um efeito disso parece ser o enquadramento também dos alunos a esta lógica moralizante. Com esta professora, os alunos estranham e alguns até reclamam que livros infantojuvenis, indicados pelos programas de livros didáticos e de incentivo à leitura para a idade deles, contenham termos como “putz” ou “merda”. “A escola continua trabalhando com esta coisa da aura da criança ingênua, pura. Parece não haver uma discussão sobre este suposto ser angelical com quem trabalhamos”, desabafa.

Para Pedrinho Guareschi, a ideia da escola neutra mascara perguntas importantes. “”Que tipo de sociedade nós queremos?” é a pergunta que deve guiar toda ação educativa”, afirma ele. “A questão é que, como em muitas sociedades ninguém está contente, estamos vivendo convulsões em todas as sociedades, nós temos de parar para discutir o que queremos. E a educação tem de estar dentro disso.”

Pressões e política
Os conflitos de caráter político-ideológico que permeiam a educação não se expressam exclusivamente como um fenômeno de sala de aula. Num momento da história do país em que se intensificam os debates sobre os diferentes tipos de discriminação – racial, de gênero, por orientação sexual -, em que as mudanças no cenário de distribuição de renda põem em questão as divisões de classe social e em que temas envolvendo as liberdades individuais e visões religiosas também se tornam foco de discussões, também na área da educação isso tudo vem à tona.

Há dois anos, o projeto Escola sem Homofobia do Ministério da Educação transformou-se no centro de uma longa polêmica sobre a tematização da sexualidade nas escolas. Representantes de igrejas evangélicas e a bancada conservadora do Congresso Nacional pressionaram o governo federal, que acabou desistindo da distribuição do material pedagógico que serviria à discussão da orientação se­xual e dos preconceitos e violências relacionados. Mais recentemente, ganhou notoriedade nas redes sociais um site que reúne denúncias contra professores que utilizariam o espaço escolar para “doutrinar” os alunos. No caso, a “doutrina” denunciada inclui questões como a reforma agrária, o direito de propriedade, os direitos da população GLBTT e o que são consideradas “versões de esquerda” da história.

A tentativa de cristalizar o conhecimento em versões estanques é apontada como grande ameaça a um projeto de educação democrático. “Quem quer continuar dominando não aceita uma nova prática educativa”, alerta Guareschi. “O que pode fazer da escola um lugar emancipador em termos políticos não é apresentar a posição A, B ou C, liberal, socialista ou anarquista, mas sim ser o espaço onde estão reunidas pessoas que têm várias posições”, avalia José Sérgio Carvalho. “A grande vantagem de estar no espaço escolar não é apreender uma dessas posições, mas entender as razões que cada um, nessa pluralidade de experiências, tem para tomar as suas decisões.”

Autor

Cristina Charão


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