NOTÍCIA

Ensino Médio

Ronda Noturna

Com 2,9 milhões de estudantes, turno da noite ganha atenção como modalidade do ensino médio, mas padece com a falta de políticas que combatam a baixa qualidade e a precária infraestrutura







Gabo Morales
EE Emiliano A. C. A. e Melo Di Cavalcanti, em São Paulo: a relação dos alunos do turno da noite com o trabalho ainda não é clara
A noite já foi opção, passou a solução e, agora, volta a ser uma alternativa para o ensino médio no Brasil. Há 20 anos, os alunos que frequentavam as salas do então 2º grau noturno eram cerca de 60%. As estatísticas mostram que, hoje, o turno responde por cerca de 35% das matrículas na etapa final da Educação Básica. Se estes percentuais indicam mudanças na oferta, os números absolutos e outras estatísticas sobre a escolaridade dos brasileiros não deixam esquecer que a opção diurna para os estudantes do ensino médio não exclui, absolutamente, a necessidade de investir na qualificação da alternativa da noite.


Segundo os dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2010 havia mais de 2,9 milhões de estudantes matriculados no ensino médio noturno – isso significa que um terço dos alunos estuda à noite. Considerando, ainda, que há outros milhões de jovens por chegar ao ensino médio e outros tantos que estão fora da escola e não completaram esta etapa, muitos deles já envolvidos com o mundo do trabalho, a demanda por escolas que abram suas portas à noite seguirá existindo por muitos anos. “Se fôssemos atender todo mundo que não completou o ensino médio e já tem mais de 18 anos, estaríamos falando de algo em torno de 80 milhões de pessoas para quem o ensino noturno é, em geral, a única opção”, comenta Ocimar Alavarse, professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP).


Para além das estatísticas, a novidade é que o ensino médio noturno ganha, pela primeira vez, atenção como modalidade de ensino, com características e demandas próprias que devem ser atendidas pelas políticas públicas. As novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) e aguardando a homologação do Ministério da Educação (MEC), preveem uma organização curricular diferenciada para as classes da noite. O texto do parecer 5/2011 menciona inclusive a possibilidade de diminuição da carga horária diária e o aumento do número de anos para completar o ciclo médio. Há quem defenda e quem conteste a proposta específica do CNE, porém a necessidade de reforma da etapa como um todo e a busca de uma solução específica para o noturno são uma unanimidade entre educadores. No entanto, como aponta a assessora da área de Juventude da Ação Educativa, Raquel Souza, o primeiro passo para oferecer educação de qualidade nesta etapa da Educação Básica, considerando as classes noturnas como uma alternativa necessária, é conhecer os perfis e as demandas dos jovens.








Gabo Morales
Hemeson Dantas e Daniel Freitas: motivações distintas para a matrícula no noturno
Vai e vens
Criado para atender a população trabalhadora que, aos poucos, conseguia chegar ao colegial nas décadas de 50 e 60, nas décadas seguintes o turno da noite foi transformado em solução para a oferta do então 2º grau, especialmente na rede pública. Nos anos 90, enquanto o número de matrículas no ensino médio aumentava aceleradamente, mais que dobrando entre 1991 e 2001, o percentual de alunos matriculados no noturno oscilava um pouco, mas terminava a década representando cerca de 54% das matrículas. Neste período, o noturno dividiu com o diurno o aumento da demanda, mas foi pela manhã que o número de matrículas mais cresceu.


Somente em 2002, o noturno deixou de ser responsável por atender a maioria dos alunos, ao mesmo tempo que o número de matrículas começou a se estabilizar. A partir daí, os dados, organizados pelo Inep a pedido do professor Ocimar Alavarse, mostram que começa a haver uma transferência das matrículas para o diurno. Para ele, deve ocorrer com o ensino médio o mesmo que ocorreu com o fundamental a partir da regularização do fluxo escolar. “Existia muita gente no ensino fundamental noturno até 2004. Rapidamente, o fluxo foi se regularizando, as crianças e adolescentes foram chegando cada vez mais jovens aos anos finais desta etapa, o que limita a distribuição desta população para o turno da noite”, comenta.


Com cada vez mais adolescentes chegando à etapa média com 14 ou 15 anos, aumenta-se a demanda para que as escolas ofereçam turmas pela manhã e, em menor quantidade, à tarde. Segundo dados do Censo Escolar 2010, o turno vespertino foi responsável, em 2010, por 15,6% das matrículas, enquanto o matutino por 49,6%. “Mas este grande aumento no diurno não faz desaparecer o noturno”, adverte Alavarse, que desenvolve pesquisas sobre taxas de matrículas. Se, de um lado, a regularização do ensino fundamental diminuiu a idade dos adolescentes que chegam ao médio, de outro ela parece ter batido em um limite. Hoje, apenas 50,9% dos jovens de 15 a 17 anos estão cursando o ensino médio. Segundo estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) sobre a situação da educação brasileira a partir dos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2009, este fato se deve aos entraves observados no fluxo escolar do ensino fundamental. Em outras palavras, o fundamental tem elevada taxa de evasão e baixa taxa esperada de conclusão – o que compromete o acesso à etapa seguinte. E ainda há que se considerar que outros 14,8% dos jovens que deveriam estar no ensino médio estão fora da escola.


Ao mesmo tempo, o fato de o fundamental ser obrigatoriamente oferecido pela manhã e à tarde impõe limites físicos às escolas. “A demanda é muito maior do que o espaço que as escolas têm para oferecer. Com o fundamental de 9 anos, a gente passou a receber uma demanda a mais também”, diz Celso Renato Teixeira, diretor da EE Luiz Gonzaga Travassos da Rosa. A escola fica na periferia de São Paulo e teve de construir salas com recursos próprios para poder ofertar uma classe do EM à tarde. À noite, são seis turmas. “A oferta do ensino médio foi massificada a partir da estrutura das escolas de ensino fundamental, aproveitando salas ociosas e raramente construindo novas salas”, diz Raquel Souza, da Ação Educativa. “Não tenho dúvida de que seria pedagogicamente saudável que os jovens fizessem o médio durante o dia e, hoje, isso é defendido socialmente, mas fazer esta mudança exigiria um investimento muito grande em infraestrutura.”
#Q#
Diagnóstico
Se não há como simplesmente transferir os jovens que não precisam estudar à noite para o diurno, nem como negar o direito de quem tem de trabalhar ou quer voltar a estudar e demanda o ensino médio noturno, o que é preciso fazer para que este seja também pedagogicamente saudável? Uma das questões centrais é fazer um diagnóstico da educação oferecida à noite. No entanto, as estatísticas produzidas no Brasil pelo Inep (e pelas próprias secretarias estaduais) não costumam fazer recortes por turno – nem mesmo as informações sobre repetência e evasão escolar podem ser comparadas. Pelo menos é o que afirma o órgão, apesar de o próprio MEC ter divulgado os dados referentes a 2003 e 2004 com cortes específicos para evasão e repetência – o panorama foi relatado em 2006 por Educação. Em 2004, entre os 9,1 matriculados no curso noturno no país, 30% foram reprovados (2,7 milhões). No ano anterior, entre o 1,2 milhão de alunos que abandonaram o ensino médio, 835 mil (ou 70%) eram do noturno. 


As avaliações de desempenho das escolas ou dos alunos, como o Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), também não permitem quantificar a propalada diferença de aprendizagem a que estariam submetidos os estudantes do turno da noite. Mas há indícios recentes. Um estudo limitado a 17 escolas estaduais de São Paulo que fazem parte dos projetos da ONG Parceiros da Educação mostra que as instituições com maior número de classes oferecidas no noturno obtiveram notas menores no Índice de Desenvolvimento da Educação de São Paulo (Idesp). Segundo este levantamento, realizado em 2011, as três escolas que não oferecem o ensino médio à noite obtiveram uma nota média duas vezes maior (2,99) que as quatro escolas que têm mais de 80% das classes no noturno (1,44).


Os resultados encontram eco na fala da professora Maria Luiza Fernandes, que leciona língua portuguesa à noite na EE Emiliano A. C. A. e Melo Di Cavalcanti, afirma que há realidades completamente distintas nos turnos diurno e noturno. “De manhã, os alunos vêm mais dispostos e estimulados. Você consegue propor mais atividades. À noite, eles estão se virando. Poucos querem fazer faculdade. Alguns querem fazer curso técnico, outros não sabem e grande parte vai ficar no ensino médio e pronto”, relata. Celso Teixeira, da EE Luiz Gonzaga Travassos da Rosa, aponta que a diferença mais significativa entre os turnos é justamente essa: a maneira como o aluno chega à sala de aula. “É uma luta manter o estudante à noite. O desinteresse e o cansaço acabam gerando a evasão. Ele desiste, para de novo e nunca termina. Isso gera o baixo rendimento. O aluno que ficou o dia todo em outra atividade não processa mais os conteúdos”, diz.


Pesquisas de caráter qualitativo acerca do ensino médio, especialmente as que ouvem diretores, professores e alunos, demonstram que os “problemas” inerentes ao período noturno vão além do simples cansaço de estudantes e docentes e das dificuldades para que os jovens trabalhadores consigam dar conta das atividades. Um dos mais amplos estudos foi feito pelo MEC e divulgado em livro no ano de 2008. A equipe da pesquisa Ensino Médio Noturno: Democratização e Diversidade investigou 80 escolas consideradas “de qualidade” em oito estados, colhendo dados descritivos e impressões das comunidades escolares sobre o turno da noite. Uma das conclusões é que a infraestrutura das escolas – em muitos casos, já precária – não é ofertada da mesma forma para os estudantes do noturno. Bibliotecas e laboratórios, por exemplo, costumam estar fechados à noite. Há ainda a ausência de pessoal de apoio pedagógico e mesmo de outros serviços, como a limpeza. Mesmo as secretarias e os representantes da direção não estão, em várias escolas, disponíveis para os alunos da noite.






Gabo Morales
Ausência de equipe pedagógica é comum em escolas que ofertam o ensino noturno


Quem são os estudantes?
Para Raquel Souza, da Ação Educativa, outro foco importante para delinear novas propostas para o turno da noite é conhecer a demanda real e o perfil dos jovens que precisam recorrer a esta alternativa. “O ensino médio noturno funciona em um tempo que é singular e tem um público que é singular”, comenta. Neste caso, como indica inclusive o parecer do Conselho Nacional de Educação sobre o novo Ensino Médio, a tarefa central é reconhecer as múltiplas juventudes que frequentam a escola.


O estudo do MEC, por exemplo, aponta que algumas características podem definir o tipo de relação que os alunos têm com a escola. Uma delas é a trajetória escolar anterior, já que parte dos alunos sai diretamente do fundamental para o médio, ainda que com vários casos de repetência, e outros estão retomando os estudos depois de alguns anos fora da escola. Outra é a expectativa em relação ao futuro. A pesquisa mostrou que a maior parte dos alunos do noturno pensa em seguir estudando na universidade, mas que o mundo do trabalho – representado pelo desejo de conseguir um emprego ou fazer um curso técnico – está muito presente no seu imaginário.


Descobrir qual é, afinal, a relação dos alunos com o trabalho parece ser o dilema atual do ensino médio noturno. Embora localizado, o levantamento feito pela Parceiros da Educação nas 17 escolas paulistanas mostrou que 50% dos estudantes daquelas instituições não trabalham. O dado encontra fundamento nas estatísticas. De um lado, os adolescentes chegam cada vez mais novos ao ensino médio – com 15 anos – e, por conta da falta de turmas durante o dia, acabam tendo de estudar à noite. De outro, os últimos anos registram uma diminuição constante do número de jovens de 15 a 17 anos que trabalham (veja quadro na pág. 40).


Retratos
Porém, ao conversar com os alunos das escolas pesquisadas pela Parceiros da Educação, o que surge é uma realidade nem “só estudante” ou “só trabalhador”. Muitos estão procurando trabalho e alguns, até mesmo por conta disso, preferissem estudar pela manhã. É o caso de Hemeson Eliaby de Lima Dantas, de 18 anos, aluno do 3º ano da EE Luiz Gonzaga Travassos da Rosa. “Eu preferia estudar de manhã por causa do trabalho, porque eu gostaria de trabalhar em shopping e o horário seria de tarde e a noite e para isso eu teria de estudar de manhã. Se aqui na escola tivesse o terceiro de manhã, eu teria tentado”, diz ele.


Outros jovens podem não estar buscando trabalho, mas aproveitam o período diurno para qualificar-se para um futuro emprego. “Nossa experiência ouvindo jovens das escolas paulistas é que eles fazem muitas coisas: alguns bicos, cursos de informática, um curso técnico”, comenta Raquel. Daniel de Lima Freitas, de 17 anos e colega de 3º ano de Hemeson, deixa claro: “a vantagem de estudar à noite é que eu posso priorizar outras coisas que para mim são mais importantes, colocando elas no período da manhã onde eu tenho mais energia”. No caso dele, o mais importante é aproveitar uma bolsa em uma escola particular de inglês e se dedicar a atividades voluntárias que o creditam a participar da seleção do programa Jovens Embaixadores, que leva estudantes da escola pública para uma temporada de estudos nos Estados Unidos.
#Q#
Dia ou noite?
Emendas apresentadas ao PNE no Congresso também refletem a dicotomia “diurno x noturno” no ensino médio


O Plano Nacional de Educação (PNE) enviado pelo Ministério da Educação para apreciação do Congresso Nacional prevê como uma das suas 20 metas a universalização do acesso de jovens de 15 a 17 anos à Educação Básica até 2020 e o aumento da taxa líquida de matrícula no ensino médio – o número de estudantes com idade compatível matriculados – para 85%. Uma das estratégias delineadas é redimensionar a oferta, atendendo à demanda e às necessidades específicas dos estudantes, inclusive em relação aos turnos diurno e noturno. Mas algumas propostas apresentadas como emendas ao projeto do MEC apontam no sentido da extinção do ensino médio noturno.

Em uma delas, a deputada Dorinha Seabra Rezende (DEM-TO) sugere “ampliar o atendimento no turno diurno para pelo menos 80% das vagas”. Outra, do deputado Hugo Leal (PSC-RJ), propõe que o ensino médio diurno seja ofertado a “todos os alunos egressos do ensino fundamental”. Por trás das propostas, há a ideia de que a diferença pedagógica inerente ao ensino noturno – o cansaço dos alunos e professores, a insuficiência de recursos para além da sala de aula – seria insuperável. Assim, o mais justo seria colocar todos os alunos no diurno.

A coordenadora geral da ONG Parceiros da Educação e ex-secretária de Educação de São Paulo, Maria Helena Guimarães de Castro, diz que a ampliação da oferta de vagas no diurno é a única solução para a questão das desigualdades no ensino-aprendizagem. Ela defende a existência de cursos noturnos “apenas para alunos mais velhos e/ou trabalhadores”. “Quem não trabalha tem direito de estudar durante o dia e assim melhorar as condições de aprendizagem”, afirma.

Ocimar Alavarse, da USP, e Raquel Souza, da Ação Educativa, defendem o investimento no turno da noite. “Para atender toda a população de jovens e adultos que precisam completar o ensino médio e estão fora da escola, não se pode descartar, em nenhuma hipótese, o ensino noturno”, diz Alavarse. Para Raquel, reconhecer que o ensino diurno tem vantagens pedagógicas não exime o poder público de trabalhar para que os alunos da noite tenham as mesmas oportunidades educativas.

Além disso, ela afirma que a transferência dos alunos para o diurno, embora possa ser desejável, não pode implicar o fechamento das classes noturnas. Para que elas deixem de existir, é preciso criar outras condições para que os alunos possam frequentar a escola durante o dia. “Não basta ampliar infraestrutura, contratar mais professores, se não houver uma preocupação com o fato de existirem milhões de jovens pobres, que optaram pelo trabalho no lugar da escola”, comenta. Algumas soluções possíveis seriam políticas de estímulo pecuniário, como bolsas para a conclusão do ensino médio, ou programas de bolsas de iniciação científica neste nível da educação.

Autor

Amanda Proetti e Cristina Charão


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