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Um lugar incômodo

Deslocados de seu lugar de origem, professores passam de avaliadores a avaliados e colocam em questão a eficiência do procedimento; para gestores, avaliação de todas as variáveis é um parâmetro importante para a qualidade da educação

Publicado em 10/09/2011

por Henrique Ostronoff

No final de 2008, a Secretaria da Educação do Estado de São Paulo promoveu um exame para professores temporários de sua rede de escolas. O objetivo era classificar os docentes para a atribuição de aulas não preenchidas pelos professores efetivos em 2009. Participaram dos exames 212 mil candidatos, dos quais 100 mil já atuavam como professores “Admitidos em Caráter Temporário” (ACT).

Os exames buscavam avaliar os candidatos em relação à Proposta Curricular do Estado e, segundo a Secretaria da Educação, consistiam em um meio de verificar quais professores estavam mais aptos a ministrar os conteúdos de suas disciplinas. Além das provas, divididas por disciplinas e níveis de ensino, também seriam usados outros dois critérios para a seleção: tempo de serviço e títulos.

Os resultados dos exames mostraram uma situação inesperada. Cerca de 1,5 mil  professores ACTs dos níveis fundamental e médio e 2 mil novos concorrentes tiraram nota zero no teste de 25 questões. Considerando-se apenas os candidatos a vagas de aulas para 1ª a 4ª séries, 41% dos novos e 33% dos já experientes acertaram menos da metade das questões, ou seja, a tradicional “nota vermelha” dos boletins dos estudantes.

Pelo resultado geral, havia a possibilidade de se contratar novos professores temporários para substituir pelo menos parte daqueles que, mesmo já atuando na rede, não alcançaram notas adequadas. Assim, nenhum professor entraria em sala de aula sem o conhecimento necessário do conteúdo exigido pelas provas da Secretaria da Educação de São Paulo.

A avaliação poderia ser considerada um simples concurso para admissão de funcionários realizado por uma secretaria de estado. No entanto, confusões administrativas causadas pela secretaria esvaziaram a legitimidade do processo. Houve denúncias de divulgação antecipada de conteúdos e gabaritos dos testes, boicote de alguns temporários (que entregaram as provas em branco), falhas na divulgação dos resultados – que deram como ausentes um grande número de candidatos que fizeram a prova, e vice-versa -, e foram encontrados erros na redação dos exames.


Embate promissor


O Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp) entrou com liminar na justiça e conseguiu reverter a situação. Dessa forma, a prova foi anulada e os professores ACTs garantiram sua permanência na rede escolar por meio dos critérios até então utilizados – tempo de casa e titulação. Agora, o governo paulista anuncia novos concursos para a efetivação de docentes, uma vez que, dos cerca de 250 mil professores necessários para atender a rede estadual, apenas em torno de 130 mil são efetivos.

De todo o processo, porém, não ficou apenas a discussão entre governo e o sindicato sobre a validade dos métodos de contratação de professores. Os testes aplicados aos docentes temporários da rede pública paulista mostraram que uma boa porcentagem deles não estaria apta a dar aulas, pelo menos de acordo com os critérios do órgão estadual paulista.

A presidente da Apeoesp, Maria Izabel Azevedo Noronha, no artigo
Aprender com os erros para melhorar a educação

, em que comenta a chamada “provinha dos ACTS”, questionou: “Diz a secretária [da Educação de São Paulo, na época, Maria Helena Guimarães de Castro] que a prova avaliaria a qualidade de ensino nas escolas estaduais. Mas de que forma essa prova poderia avaliar a qualidade do ensino, se o seu conteúdo apenas permitiria, quando muito, averiguar a capacidade dos professores de aprender os ‘guias curriculares’ impostos pela secretária?”.  Adiante, qualificou a avaliação de “provinha superficial”.

Apesar da rejeição da Apeoesp aos exames, a noção de que os professores, de um modo geral, não admitem passar por avaliações não é totalmente verdadeira. É o que mostra o estudo “A qualidade da educação sob o olhar dos professores”, produzido pela Fundação SM e a Organização dos Estados Ibero-americanos (OEI). Diante da afirmação “Eu gostaria que na minha escola houvesse um sistema para avaliar o trabalho dos professores”, 45% dos que responderam o questionário disseram concordar com a ideia, 32% são indiferentes e 23% discordam.

A pesquisa ouviu 8,8 mil professores dos quais 83% de escolas públicas e o restante de instituições privadas – uma proporção semelhante à distribuição de docentes em todo o país – e abrangeu quase todo o território, com exceção da região Norte. Os docentes do ensino público foram os que mais discordaram (25%), e os das escolas privadas os que mais apoiaram (57%) a instituição de avaliações dos docentes. Para os autores do estudo, “a necessidade de avaliar o trabalho docente continua sendo um tema pendente, dividindo a opinião dos entrevistados”. No entanto, a porcentagem dos que estão de acordo com a proposta “constitui uma abertura positiva para o aperfeiçoamento do ensino nas escolas onde atuam”.


Definição de objetivos


Maria do Rosário Longo Mortatti, professora livre-docente do curso de Pedagogia e Programa de Pós-Gradua­ção em Educação, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Marília, afirma que os métodos e conteúdos de avaliação dependem de um projeto pré-determinado – a partir de que necessidades e os fins a serem alcançados.  E acrescenta: “O processo de avaliação é sempre limitado e pode acarretar mais problemas do que soluções, especialmente quando o ‘objeto’ de avaliação são sujeitos que não participaram da definição dos objetivos e com eles não concordam ou sobre eles não têm clareza suficiente, nem de suas consequências”.

No entender da pesquisadora, os modelos oficiais de avaliação de desempenho dos professores de Educação Básica atualmente realizados no país precisam “problematizar o parâmetro de ‘eficiência’ que se quer avaliar ou medir”. “Se o professor não tiver estabelecido para seu trabalho docente determinados objetivos centrados em determinado parâmetro de eficiência, como um avaliador externo a esse trabalho pode esperar que o professor tenha atingido esses objetivos e, em caso negativo, pode decidir punir esse professor por ele não ter feito o que não pretendia fazer, ou premiá-lo por ter feito o que deveria ter feito, ou seja, ensinar para que seus alunos aprendam?”, questiona.

“Para ser rigoroso e consequente, o método de avaliação, ou seja, o como avaliar, depende do esforço rigoroso de avaliadores e avaliados na busca conjunta para pensar respostas às seguintes questões: por que, para que, quando, onde e o que se avalia. Os melhores métodos são, portanto, aqueles que decorrem da coparticipação de avaliadores e avaliados em todas as etapas do projeto político-pedagógico pelo qual são também corresponsáveis”, afirma Maria do Rosário Longo Mortatti, também coordenadora do grupo de pesquisa História do Ensino de Língua e Literatura no Brasil, na Unesp. E acrescenta que não faz sentido “que se avalie ‘de fora’ o que outro executou e de cujo processo de concepção não tenha participado. Não cabe pensar que se avalie o que o avaliado não tem condições de realizar”.


Temporários paulistas esperam para receber atribuição de aulas: proceso de avaliação feito pelo governo foi contestado na Justiça. (Foto: Marlene Bergamo/Folha Imagem)


Divórcio prático-teórico

“Antes de falar sobre o professor, seu desempenho e a avaliação do mesmo, é preciso situar a qualidade do ensino num contexto mais abrangente que explica o que acontece na escola e na sala de aula”, diz Heloí­sa Lück, doutora em educação pela Columbia University pela George Washington University, ambas nos Estados Unidos.

Para ela, a baixa qualidade da Educação Básica  no Brasil é histórica e há diversos fatores que contribuíram para essa situação, como a falta de foco e a segmentação de políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade do ensino, a sobrecarga de funções sociais da escola e dos seus professores e a precariedade material de grande número de unidades educacionais. Ela aponta também fatores “intraescolares”, como currículo desarticulado da rea­lidade, metodologias ultrapassadas e descuido com a construção de cultura organizacional da escola educativa. E destaca a atuação do professor como um dos fatores mais importantes, “uma vez que é na relação professor-aluno que acontece a orientação da aprendizagem. Nenhuma escola pode ter qualidade melhor do que a do nível de competência do conjunto de seus professores”.

Para Heloísa Lück, também diretora educacional do Centro do Desenvolvimento Humano Aplicado (Cedhap), de Curitiba, os sistemas de ensino do país adotaram políticas de melhoria da formação de professores por meio de incentivos. Mas as consequências, de um modo geral, não foram as esperadas.

Ao mesmo tempo  que aumentava o número de programas formadores de docentes ou cursos de graduação e pós-graduação na área da educação, faltou o acompanhamento cuidadoso da qualidade da formação. “Houve um barateamento das exigências pela qualidade na formação dos profissionais da educação”, diz. “As instituições formadoras de profissionais da educação não têm formado docentes com as competências necessárias para enfrentar os reais problemas educacionais. Isso porque há um divórcio entre o que aprendem e os desafios enfrentados nas escolas.”


Instrumento de gestão


No entanto, apesar das deficiên­cias verificadas na formação dos docentes, a avaliação pode e deve ser implementada, pois é inerente à gestão de qualquer sistema. “Nenhuma gestão é competente se não realiza continuamente avaliação de processos e desempenho, com o objetivo de melhorá-los”, afirma Heloísa Lück. Mas deixa claro que a ação tem de estar sempre voltada para a promoção do desenvolvimento. “Sua orientação deve ser proativa e não reativa. Adotando-se uma lógica reativa, ela torna-se perniciosa e todos vão querer evitá-la e burlá-la. E, como resultado, ela causa mais prejuízos do que benefícios.”

Consultora do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), Heloísa Lück cita os casos recentes de avaliações de alunos por meio de provas nacionais e estaduais que demonstram o baixo rendimento escolar. Segundo ela, os sistemas de educação dos estados, ao procurarem identificar os motivos dessa situação, verificam “fraquezas no entendimento pelos professores, das mesmas áreas em que os alunos apresentam baixos resultados”. Assim, a avaliação deve ter o objetivo de diagnosticar. E alerta: “O papel dessa avaliação não é o de denunciar, tal como está sendo feito atualmente. O que está ocorrendo com a divulgação dos resultados escolares demonstra total falta de responsabilidade com a escola e seus profissionais e os coloca como culpados, quando muitas vezes podem ser vítimas de sistemas viciados de mecanismos inadequados de gestão do ensino”.

Ainda de acordo com Heloísa Lück, a observação é o método mais eficiente de avaliação dos docentes, “de modo a verificar, na relação professor-aluno, que estratégias de ensino são mais eficazes, como reagem os alunos diante dos vários momentos da aula. E é importante destacar que avaliar representa observar a relação entre o que é feito e os resultados imediatos obtidos, de modo a reforçar os mais eficazes e modificar os que não contribuem para promover a mobilização e aprendizagem dos alunos”.


Fatores associados


Embora reconheça que todo profissional deve passar por algum tipo de avaliação, no caso dos docentes esse postulado precisa ser visto de uma forma diferenciada, afirma o sociólogo Rudá Ricci, diretor do Instituto Cultiva, ONG voltada ao controle social sobre políticas públicas. Para ele, a baixa qualidade da educação brasileira decorre principalmente de fatores extraescolares. “Várias pesquisas mostram que no Brasil os piores indicadores e resultados têm a ver com áreas e situações de risco envolvendo a família do aluno.” Dessa forma, a qualificação do professor não deve ser colocada como o principal item quando se fala de deficiência do ensino.

Ainda para Rudá Ricci, ex-professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), os estudantes de faculdades de disciplinas específicas como sociologia, química ou física não se formam entendendo de ensino. “O único que entende de educação na universidade brasileira é o formado em educação. Então, formou-se um grande mercado em cima do mito de que é preciso ter mais qualificação de professor. Qualificação a gente tem de ter em qualquer carreira. Agora, dizer que esse é o principal problema da educação brasileira é uma bobagem”, afirma.

O sociólogo diz também que as avaliações de professores não atingem seus objetivos, pois o foco da análise deveria recair sobre a atividade de ensino e não sobre o conhecimento do conteúdo, como geralmente acontece. “Quando se contrata um professor de física, não se está contratando um físico, mas um professor. Ele pode até não estar atualizado em física, mas tem de entender de educação. No Brasil, mudamos o eixo da discussão. Achamos que o professor tem de saber tudo da matéria mesmo sendo um péssimo professor. E essas avaliações não avaliam isso.”


Escala nacional


A polêmica sobre o tema tem tudo para esquentar. Depois de São Paulo, existe a possibilidade de a experiência se estender para todo o país. No Senado, está pronto para ser votado um projeto de lei apresentado pelo atual suplente de senador Wilson Matos (PSDB-PR), em 2007, propondo a implantação do Exame Nacional de Avaliação do Magistério da Educação Básica (Enameb).

O exame poderá ser aplicado a cada cinco anos a docentes em exercício na Educação Básica, Educação de Jovens e Adultos (EJA) e educação especial, tanto das redes públicas como de escolas privadas. De acordo com o texto do projeto de lei, o professor será avaliado para se verificar “suas habilidades para ajustamento às exigências decorrentes da evolução do conhecimento e suas competências para compreender temas exteriores ao âmbito específico de sua profissão, ligados à realidade brasileira e mundial e a outras áreas do conhecimento”. No entanto, não determina o método que será utilizado para a aplicação dos exames.

O projeto determina que os resultados das provas do Enameb não serão divulgados publicamente. Mas poderão ser utilizados pelas instituições municipais, estaduais e federais e as escolas privadas “como parte de programas de avaliação de desempenho e para fins de progressão na carreira do magistério”.

No seu parecer, a relatora da proposta na Comissão de Educação, Cultura e Esporte, a senadora Rosalba Ciarlini (DEM-RN), afirmou: “Parece-nos, se não incompreensível, no mínimo contraditório que um profissional acostumado, por dever de ofício, a avaliar, não seja avaliado”. E constatou que o Enameb não é uma novidade. Ela lembra que, em 2003, o Ministério da Educação (MEC) havia instituído o Sistema Nacional de Certificação e Formação Continuada de Professores da Educação Básica, do qual fazia parte o Exame Nacional de Certificação de Professores (ENCP).

No entanto, em 2004, diante da forte contestação que sofreu de sindicatos de professores, foi substituído pelo Sistema Nacional de Formação Continuada de Professores da Educação Básica. A senadora Rosalba Ciarlini afirma também que a proposta é pertinente, pois, durante as audiências públicas para discutir o Enameb, “os representantes dos segmentos de gestores e de professores defenderam alguma avaliação, conquanto divirjam quanto ao formato”.

Sem entrar no mérito da pertinência ou não da avaliação ou da certificação – já em si, dois processos diferentes -, resta atentar a um fato notório: a febre legisladora que assola deputados, senadores e vereadores, que adornam a educação com os mais diversos penduricalhos, muito mais relacionados a seus próprios interesses que ao bom funcionamento dos sistemas educativos nacionais.

Autor

Henrique Ostronoff


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