NOTÍCIA

Edição 226

Relação família-escola

Ao esperar que a escola atenda a demandas particulares e questionar decisões pedagógicas, a família interfere no entendimento das crianças sobre a relação entre os espaços público e privado

Publicado em 15/02/2016

por Juliana Holanda

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Escola e família nunca estiveram tão próximas. Se antes essa era uma relação distante e esporádica, hoje os pais têm contato quase que diário com as escolas de seus filhos. Depositam na instituição escolar a expectativa de um futuro de sucesso, e cobram de perto o que consideram ser importante para a ascensão social de suas crianças. No caso das escolas particulares, a cobrança chega a questões como excesso ou falta de lições de casa e à percepção de não se sentirem ouvidos pelas escolas em suas queixas e reclamações. Mas, ao esperar que a escola atenda a demandas individuais, a família não estaria subvertendo princípios do espaço escolar socializador e coletivo? E, ao fazê-lo, quais seriam as consequências para o ambiente de ensino e para as próprias crianças?

Como pano de fundo desse fenômeno estão as representações da escola e das próprias crianças para as famílias. Para Maria Alice Nogueira, coordenadora do Observatório Sociológico Família-Escola, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o fator fundamental para que os pais da classe média falem, hoje, com tanta propriedade de questões pedagógicas seria a centralidade da criança na vida das famílias.

Em paralelo a esse reinado infantil, ocupando o centro das decisões familiares, o sucesso ou o fracasso dos filhos passou a ser visto pelos pais como resultado de suas ações e omissões. “Hoje a família se culpa por um adulto que ‘não deu certo’, o que também não acontecia no passado”, diz Maria Alice. “Sobretudo para a classe média, a escolarização define a posição social que alguém terá no futuro, e a criança foi assumindo uma centralidade cada vez maior na vida familiar. Por tabela, a escola passou a ser importante para a família”, pontua.

Vigilância constante

A expectativa de ascensão social por meio do ensino tornou os pais das classes média e média alta “verdadeiros profissionais do acompanhamento escolar”, escreve Luciana Fevorini em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP), em 2009. “Justamente por isso são também bastante exigentes em relação ao trabalho da escola e atentos às suas limitações”, aponta.

Atualmente diretora do Colégio Equipe, em São Paulo, Luciana entrevistou, durante o seu doutorado, famílias de três escolas particulares paulistanas, com filhos matriculados na educação infantil e nos ensinos fundamental e médio. Assim como outros, seu estudo aponta que há uma adesão muito grande dessa camada social aos valores, normas e exigências escolares. Uma das poucas críticas detectadas pelas entrevistas foi a de que os pais não se sentem ouvidos pelas escolas em suas queixas e reclamações. Ao mesmo tempo, as famílias não desejam entregar unicamente à escola a responsabilidade pela formação de valores de seus filhos – pelo contrário, desejam fazê-lo de forma compartilhada.

Luciana avalia que o compartilhamento de papéis é um fator relevante para analisar a relação família-escola no atual contexto social, em que ambas as instituições dividem a responsabilidade pela educação de crianças e jovens. “Atualmente, uma série de funções, como a transmissão de valores, é compartilhada entre a família e a escola. A única coisa que realmente não cabe à família é a transmissão do saber sistematizado da humanidade. Esse é o papel primordial da escola”, diz.

Ensino como serviço

Mas estariam os pais das classes média e média alta cobrando demais a escola, e com demandas de cunho particular? Para Luciana, cobranças individualizadas que desconsideram o caráter coletivo da escola só ocorrem em contextos específicos. “Quando os pais veem a escola não como uma parceira – ou a quem confiam parte da educação de seu filho –, mas como uma prestadora de serviço, aí, sim, fazem exigências individuais ou pessoais.”

Para o historiador Carlos Roberto Jamil Cury, da Pontifícia Universidade Católica de Minas gerais (PUC-MG) e estudioso da diferenciação entre o público e o privado na educação brasileira, muito da expectativa individualizada por parte das famílias que desconsideram a natureza pública da instituição escolar se dá por causa da tradição brasileira na chamada “dupla rede”, em que os dois sistemas de ensino convivem mutuamente. “Nessa perspectiva, o sonho da classe média e das classes altas é o vestibular. A partir disso existe, sim, uma forte ênfase na individualização do seu filho no sucesso dos processos de ingresso ao ensino superior. Essa tradição se choca um pouco com uma vertente escolar que propugna outros aspectos da convivência escolar”, diz Cury.

Um dos efeitos mais significativos que demandas como essas podem gerar é o rompimento da dinâmica própria à democracia. “Na medida em que existe uma individualização, a classe média às vezes passa a ter dificuldade de aceitar as regras do jogo comum”, avalia.

Diana Vidal, professora de história da educação na Faculdade de Educação da USP, acredita que muitos desses pais buscam a homogeneidade de padrões morais e éticos na escola particular. “Quando se espera que o resultado seja igual ao investimento, aí com certeza as famílias cobram a escola de uma maneira diferente, procurando adquirir um produto, como o filho entrar nas melhores universidades”, exemplifica.

Por outro lado, as próprias escolas, muitas vezes, também alimentam o tratamento dos pais como clientes. “Vejo uma preocupação excessiva das escolas em atender a todas as expectativas da família. E isso não é possível, porque muitas vezes os pais estão pedindo algo da ordem do indivíduo e do privado, e a instituição escolar é coletiva e pública”, argumenta Luciana.

Público ou privado?

É claro que, quando se trata do quesito didático-pedagógico, é aceitável que a escola particularize mais o seu olhar. “Do ponto de vista da aprendizagem, a escola deve olhar para as individualidades e, na medida do possível, não trabalhar só em cima da média ou de um padrão comum de avaliação. Mas do ponto de vista das regras, das normas,do funcionamento da escola, nunca. A escola deve sempre tratar todos os alunos de forma igual”, diz a diretora do Colégio Equipe.

Um dos resultados interessantes de seu estudo mostra que, apesar de esperar que a escola acompanhe seus filhos de forma individualizadano que se refere ao processo de aprendizagem, e de não se sentirem ouvidos, os pais, por outro lado, valorizam a instituição escolar justamente quando ela não atende a todas as suas demandas. “Eles também confiam na escola por ela nem sempre concordar com o que pedem. Até porque a escola os faz pensar sobre o papel que eles e seus filhos ocupam nesse ambiente.”

Ao mesmo tempo, a escola deve estar atenta para responder a demandas que vão surgindo a partir de mudanças sociais, como as geradas pelas novas configurações familiares, por exemplo. Luciana lembra o caso de um casal que se incomodou com o descritivo “pai” e “mãe” em questionários enviados pela escola às famílias, e solicitou que os termos fossem suprimidos. A escola atendeu ao pedido por achá-lo procedente.

Em outro momento, porém, quando a instituição decidiu pedir que um aluno se retirasse da escola por não ser coerente com seus princípios pedagógicos, enfrentou uma mobilização de pais e alunos solidários ao colega. Houve uma reunião para ouvir as demandas, mas a resolução foi mantida. “Não mudamos a decisão, mas abrimos um espaço de diálogo em que os papéis ficaram mais claros. Inclusive a autonomia da escola para decidir sobre questões como essa”, lembra a diretora.

Nesse contexto, a confusão entre público e privado é percebida entre os próprios alunos. “Quando digo, por exemplo, que eles devem se portar na escola como nos espaços públicos – não andar descalço, de pijama etc. – muitas vezes eles não entendem.”

Luciana considera, entretanto, que essa é uma confusão gerada a partir do atual contexto social, de compartilhamento do cuidar e do educar entre as instituições familiar e escolar. “Muitos estão aqui desde os seis meses de idade, comeram, dormiram dentro da escola. É claro que eles vão crescendo e isso vai mudando, mas em certa medida, quando eles eram crianças, a escola cuidou mais de questões da ordem do privado do que agora, quando eles são jovens.”

Escola aberta

A quebra da relação de confiança entre família-escola pode afetar as próprias crianças, acredita a professora Francisca Maria Soares, da Faculdade de Educação da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN). “Quando a escola percebe a falta de confiança do pai, pode gerar no aluno indisposição e insegurança. Não sei se ele tomaria partido, mas certamente não vai estar tão confortável como quando percebe um ajuste no diálogo entre a família e a escola”, avalia.

Em 2011, Francisca orientou um estudo sobre as expectativas de pais e responsáveis de alunos do ensino fundamental de duas escolas públicas no município de Mossoró (RN). Um dos resultados que mais chamaram a atenção foi a alta adesão dos pais à proposta dos pesquisadores. As próprias escolas se surpreenderam pela participação expressiva das famílias. “A partir disso, a escola começou a vê-los de forma diferente. Mudou a perspectiva de que os pais só mandam os alunos para a escola e que não estão interessados em saber como eles estão”, relata a pesquisadora.

Os resultados indicaram que os pais de alunos de escolas públicas também depositam na instituição de ensino expectativas em relação ao futuro de seus filhos: querem que a escola os prepare tanto “para a vida” como para o mercado de trabalho.

Ao longo do tempo, a relação escola-família é vista como um campo de tensão intrínseco e permanente. Os pesquisadores costumam apontar para a inevitabilidade do conflito inerente a essa relação. “Há, no senso comum, a ideia de que a tensão é algo negativo. Não é ruim, nem bom, é inevitável”, diz Maria Alice Nogueira, da UFMG.

Ela lembra que, apesar de essa relação sempre ter existido, antes era mais distante, mais esporádica e menos “face a face”. “O contato físico dos pais com a escola se dava mais nas reuniões, nas festas. E a relação não abrigava todo o processo educacional, como valores, moralidade, cidadania. Hoje, os pais têm um contato quase que diário com a escola dos filhos – e querem ter – sobretudo os pais da classe média”, analisa.

O fenômeno recente, para a pesquisadora, é a intensificação da tentativa de “uma seara interferir na outra”. “A família, hoje, tenta intervir na instrução, em coisas que, antes, eram vistas como assuntos só da escola. No passado, a família só intervinha nas questões
exteriores à sala de aula”, diz.

Por outro lado, hoje, a escola “entra na família”, com o argumento de que é preciso estabelecer uma coerência entre as ações pedagógica e familiar. “No passado, seria muito difícil ver uma situação que hoje é corriqueira – os educadores detendo conhecimento daquilo que eram os segredos mais guardados na esfera familiar – como o alcoolismo, o divórcio, o desajuste, ou interferindo no intramuros da casa, como o horário em que a criança dorme, ou quantas horas assiste à televisão”, diz Maria Alice.

Diana Vidal, da Faculdade de Educação da USP, lembra que, no início do século 20, a relação da escola com a família era de transmissão de conhecimento. “No momento em que a escola obrigatória foi se constituindo, com o projeto de ser uma escola de massa, ela foi tendo uma preocupação muito grande em infl uenciar e mudar o comportamento das famílias. Nesse momento, a escola estabelece uma linha de separação entre as ações de cada uma dessas instituições sociais, no sentido de dizer que a escola é o lugar apropriado, por exemplo, para ensinar os conteúdos”, explica.

Diana acredita que, no momento atual, as instituições estão procurando retomar essa relação. “Até porque, ao longo desse processo, a escola foi alijando a família das decisões. Hoje a escola já assumiu esse locus, então agora ela precisa chamar a família de novo para participar.”

Pontos de encontro

Considerando sua experiência como pesquisadora e gestora escolar, Luciana avalia que, de maneira geral, as famílias de classe média têm percebido as escolas como sua própria extensão. Já Diana, da Feusp, percebe que os pais enxergam as instituições de ensino à luz de suas experiências como alunos antigamente. Francisca, da UERN, introduz uma visão mais positiva dessa relação. Para ela, entre pais de alunos das camadas populares a escola ainda é uma instituição de credibilidade mesmo quando entra em conflito com as posições das famílias. “Para eles, é a partir da escola que a criança pode acessar outros caminhos, como uma vida diferente da dos seus pais. A escola é dá ‘preparo para a vida’
que eles defendem.”

Sintomaticamente, abrir espaço para uma relação de escuta ainda parece ser um grande desafio. Muitas vezes, as reuniões com as famílias são realizadas com o único intuito de falar sobre o desempenho dos alunos. “Nesses casos, os pais escutam mais reclamações do que têm abertura para a valorização de suas opiniões”, pontua Francisca, da UERN.

A clareza na comunicação também parece ser uma dificuldade. Francisca lembra de ter entrevistado uma mãe que não participou de uma reunião escolar. “Ela não compareceu, porque não sabia ler. Um comunicado foi enviado a ela por escrito, mas não funcionou.”

Luciana reconhece que, por vezes, a gestão incorre em um vício de achar que, ao falar com os pais, algo foi, de fato, comunicado. “A escola precisa sair desse lugar. Por outro lado, o desafio das famílias é entender que seu filho vai ser educado para a vida coletiva.”

As experiências mostram que mais importante do que resistir à tensão inerente à relação família-escola é encontrar uma forma de geri-la. Nesse caminho, pesquisadores e gestores apontam ser necessário encarar a reorganização do papel da escola na atualidade, demarcando o seu lugar na detenção dos saberes sistematizados, mas também abrindo diálogos.

Autor

Juliana Holanda


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