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A educação integral versus o puxadinho

Olhar sobre a arquitetura educacional brasileira mostra que há pouca reflexão sobre espaços escolares; carência de recursos leva à cultura do improviso

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Barros



"Acreditamos, às vezes, que nos conhecemos no tempo, quando na realidade só se conhece uma série de fixações em espaços da estabilidade do ser, de um ser que não quer acabar, que no próprio passado vai em busca do tempo perdido, que quer ‘suspender’ o vôo do tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço conserva tempo comprimido. O espaço serve para isso."

Tomando como ponto de partida essa reflexão sobre o entrecruzamento entre espaço e tempo, feita pelo filósofo Gaston Bachelard em A Poética do Espaço, Antonio Viñao Frago, professor de Teoria e História da Educação da Faculdade de Murcia (Espanha), traz para o campo da educação o olhar sobre as relações determinadas pelo lócus escolar ou nele concretizadas, em artigo do livro Currículo, Espaço e Subjetividade.

Essa visada, no entanto, é pouco usual. Raros são os estudos que buscam destrinchar as relações entre arquitetura e educação. Mesmo na consecução de projetos arquitetônicos para escolas, poucos são os educadores, ao longo da história, que relacionaram as práticas que propunham ou realizavam ao espaço em que aconteciam.

"Não é um fenômeno local, é uma questão universal. Os pedagogos têm dificuldade para determinar o que desejam do espaço físico. Em toda literatura que existe no Brasil e na Unesco, não há quase nada de recomendação sobre o que devem ser os ambientes físicos", atesta o arquiteto João Honório de Mello Filho, responsável nos anos 70/80 pela Conesp, atual FDE, órgão estadual paulista encarregado da construção de escolas, e membro do grupo de trabalho que estuda arquitetura educacional na União Internacional dos Arquitetos (UIA).

"No Brasil, raras vezes houve uma preocupação mais sistematizada, que envolvesse um projeto pedagógico definido e profissionais de arquitetura, sanitarismo, psicologia. Aconteceu na época da construção das escolas normais e em algumas iniciativas depois, mas foi acabando. No geral, faz-se o que dá para fazer com o pouco dinheiro que há. É a ‘República do Puxadinho’", batiza Gelson Pinto de Almeida, arquiteto e professor da Universidade Federal de São Carlos, um dos poucos a pesquisar o assunto no Brasil.

Almeida destaca que, atualmente, por uma imposição de mercado, as escolas particulares começam a dar mais atenção à questão. "A escola particular tem de aparecer e de parecer nova, dinâmica, colorida, vendável e séria", observa.


Escola e cidade


Criado em 1898, o Grupo Escolar do Brás (hoje EE Romão Puiggari), é um exemplo vivo do estilo eclético e higienista da virada dos séculos 19 e 20: colunas românicas, severidade das formas, uso de janelões e pé direito com cerca de 4 metros de altura

 "O espaço conserva tempo comprimido", diz Bachelard. "O espaço jamais é neutro: em vez disso, carrega, em sua configuração como território e lugar, signos, símbolos e vestígios da condição e das relações sociais de e entre aqueles que o habitam", acrescenta Frago.

Esses signos, símbolos e vestígios, presentes ou não, revelam muito sobre a educação que se pratica e que se praticava. Falam das relações entre a escola e a sociedade, dos alunos entre si e com os professores; das diferentes pedagogias; dos ritos escolares; das prioridades públicas; de estratos sociais que reservam aos seus uma educação exclusiva; da história das idéias e das lutas políticas que têm como palco a cidade e seus edifícios. Ainda que muitas vezes seus projetos não tenham sido tocados com essa consciência, os prédios e espaços escolares são índices dessas relações.

Esses indícios podem ser históricos, como na transposição das classes de conventos para prédios especialmente concebidos para a educação, a partir do século 19; pedagógicos, como na pas­sagem para o século 20, quando co­me­çam a ganhar corpo as pedagogias ati­vas (Montessori, Waldorf etc.), em que o espaço é sempre um elemento didá­tico. Para Jean Piaget (1896-1980), co­mo lembra Agustín Escolano em "Arquitetura como Programa", ensaio do li­vro que assina com Frago, as primeiras experiências espaciais, vividas em casa e na escola, são elementos vitais para o de­senvolvimento nos planos sensorial, motor e cognitivo.

Podem também indicar temas de grande urgência, como a questão da sustentabilidade nos dias atuais, expressa, por exemplo, com a racionalização do uso da água, ou a questão da ocupação urbana e da verticalização. Outro tema que está espelhado no espaço da escola é a violência, traduzida pelo uso – muitas vezes desconectado do projeto original – de aparatos de proteção. No caso das escolas públicas, são as grades e os cadeados contra invasão e furtos. Nas particulares, isso aparece em forma de câmeras, catracas e outros instrumentos de controle.

Mostram, também, a importância que a hoje desgastada idéia de espaço público tem para o desenvolvimento social. "O grande avanço do ponto de vista da arqui­tetura e suas relações se deu na escola pú­blica. Na grande maioria, os prédios das escolas privadas eram construções adaptadas", diz Avany Ferreira, gerente de Planejamento e Ação da Fundação pa­ra o Desenvolvimento da Educação (FDE/SP).


Fachada da "nave longa" do CEU de Jambeiro, periferia de São Paulo;

A constatação é de fácil explicação: as escolas privadas, a não ser quando lastreadas por instituições economicamente estáveis, com um projeto educacional de longo prazo, são empreitadas de poucos, sujeitas a oscilações iguais às de outros negócios, como a variação de demanda e falta de capital de giro, por exemplo.

Já ao Estado cabe estabelecer políticas públicas e oferecer soluções de conjunto às demandas sociais. Mas, como aponta o arquiteto Guilherme Wisnik ao analisar o convênio entre a prefeitura e o governo de São Paulo do final dos anos 40, a construção de escolas normalmente é feita apenas na urgência de oferecer novas vagas, sem se articular a reformas do ensino.


O novo ideal da arquitetura

Ao longo do último século e meio, aliás, a discussão sobre a configuração do espaço escolar parece muito mais presente entre os arquitetos, sobretudo a partir da arte moderna e da gestação da idéia de urbanismo, que passa a tratar a arquitetura como uma arte a ser pensada como função orgânica da cidade.


A visão do conceito do espaço e suas três naves nos CEUs de Três Lagos

Se no século 19 tem início uma expansão da oferta de escolas pelo Estado para satisfazer ao ideal republicano de formar cidadãos, fato que, em menor ou maior escala, acontece tanto na Europa quanto nos Estados Unidos, na Argentina e no Brasil, é depois da 1ª Guerra Mundial que essa tendência se alia aos então novos conceitos de urbanismo.

Desde meados do século 19, predominava o ecletismo, estilo surgido na França para se contrapor ao greco-romano, fazendo uso de elementos variados em combinação, como o gótico e o românico, por exemplo. Nos edifícios, isso se traduzia por meio de fachadas de grande imponência, destinadas a realçar a centralidade do Estado, e ornamentos variados. Um bom exemplo dessa arquitetura é o prédio da Escola Normal de São Paulo – depois Colégio Caetano de Campos, hoje ocupado pela Secretaria de Estado da Educação.


Aricanduva: a Nave-nau, mais longa, com avarandados voltados à cidade; a Nave-Teatro, a "caverna", espaço do contador de histórias e das linguagens; e a Nave Espacial, o baobá, árvore africana que dá sombra a muita gente. Em torno dos edifícios, o manancial hídrico da cidade

Assinado por Ramos de Azevedo, engenheiro responsável por grande número de prédios públicos dessa época na capital paulista, o edifício expressava "severidade, elegância de estilo e robustez", com "bom gosto e proporções dignos das mais nobres cidades da Europa", como observava o viajante francês Gaffré, em relato citado por Marcus Bencostta no ensaio "Arquitetura Escolar na Belle Époque: Jean Omer Marchand e Francisco de Paula Ramos de Azevedo (Montreal e São Paulo, 1894-1926)", no livro Culturas escolares, saberes e práticas educativas. 

Como ressalta Bencostta, Azevedo esteve atento aos princípios higienistas que vigorarão com força até meados do século 20: grandes janelas permitem luminosidade e ventilação controlada.

Ao final da 1ª Guerra, várias questões se somam para desaguar numa visão funcionalista da arquitetura: a evolução da tecnologia das edificações, que permite soluções construtivas em larga escala; a classe operária emergente, que requer a ampliação da oferta educacional pelo Estado; e a mudança de perspectiva do arquiteto, que deixa de olhar apenas para o prédio, seu objeto, e passa a enxergá-lo como parte de uma realidade maior, a cidade. Esse conjunto, auxiliado por uma predominância de idéias socialistas, com uma busca maior de propostas coletivistas, desemboca numa nova configuração da arquitetura moderna, da qual foram expoentes nomes como o francês Le Corbusier (1887-1965), Walter Gropius (1883-1969), da Bauhaus alemã, o americano Frank Lloyd Wright (1869-1959) e os integrantes da escola construtivista soviética, entre outros. Todos eles defensores de uma arquitetura racional e integradora.


Escola-parque de Brasília, construída nos anos 60, resgata a idéia implantada por Anísio Teixeira na Bahia: um grande centro de educação integral que atende às escolas-classe que estão no entorno. Ao lado, o prédio modernista, com pilotis, janelões, grandes corredores com elementos vazados para a parte externa, além de área verde e espaço para atividades de artes

Como resume o crítico Giulio Carlo Argan em Arte Moderna, a arquitetura moderna parte de cinco princípios fundadores: o planejamento urbano tem de preceder o projeto arquitetônico; deve-se visar a máxima economia na utilização do solo e na construção; as formas devem expressar uma racionalidade lógica e ser definidas a partir das demandas que as originam; para tornar as construções mais acessíveis, é preciso utilizar a tecnologia industrial, com seriação e padronização; e, por fim, "a concepção da arquitetura e da produção industrial qualificada devem ser fatores condicionantes do progresso social e da educação democrática".


Políticas públicas

Conjugados às novas pedagogias, estes princípios irão perpassar várias das políticas educacionais brasileiras do século 20. Além do que, farão surgir uma safra de notáveis arquitetos modernos, em sua maioria discípulos de Le Corbusier, que farão uma série de intervenções em várias cidades brasileiras. Entre eles, Lúcio Costa, Oscar Niemeyer e Afonso Reidy. E encantarão o baiano Anísio Teixeira (1900-1971), um dos mentores da Escola Nova e responsável maior pela introdução no Brasil do pragmatismo americano, em especial das idéias de John Dewey (1859-1952) sobre educação progressiva.

Teixeira via nos arquitetos modernos brasileiros um exemplo norteador para a construção nacional. Em artigo na revista Habitat, número 4, de 1951, enumera os pontos que considera referenciais na arquitetura brasileira: o fato de estar liberta de "velhas formas mentais"; a adaptação de antigas e novas funções dos prédios aos novos recursos e técnicas de construção; "a confiança lírica na capacidade do homem de resolver seus problemas". E finaliza dizendo que "nenhum outro elemento é tão fundamental, no complexo da situação educacional, depois do professor, quanto o prédio e suas instalações".

Um ano antes, Teixeira, então secretário de Educação da Bahia, havia inaugurado em Salvador o Centro Educacional Carneiro Ribeiro. Num raio de 1,5 km, o Centro congregava quatro escolas-sala (a escola tradicional) a uma escola-parque, central em relação às outras e com sete pavilhões para práticas educativas diversas, de modo a proporcionar formação em tempo integral para as crianças do entorno, vindas de bairros pobres da cidade.

Essa idéia de ampliação do espaço da escola, oferecendo, além do ensino disciplinar, assistência médico-odontológica, alimentar, um setor de trabalho (para aprendizado de artes aplicadas, industriais e plásticas), educação física, recreação e áreas de socialização, artes, extensão cultural e administração, está na origem de grandes projetos de educação integral, como os Cieps idealizados por Darcy Ribeiro nos governos de Leonel Brizola no Rio de Janeiro (1983-87; 1991-94) e os CEUs construídos na prefeitura de Marta Suplicy em São Paulo (2001-04). O próprio Teixeira, ao lado de Darcy Ribeiro, construiria cinco escolas-parque em Brasília, no início dos anos 60.


Padrão e aumento da oferta

Os princípios da racionalização construtiva e da seriação e padronização estarão no centro das políticas públicas. No caso das padronizações, para o bem e para o mal. Para o mal porque, como explica João Honório de Mello Filho, responsável pela implantação da sistematização de componentes e pela criação de uma listagem de preços e serviços no Estado de São Paulo nos anos 70 (veja texto na página 36), "o que se tem de padronizar são os componentes construtivos, não o edifício". "A maioria dos estados brasileiros faz um único projeto e "cola" no terreno, sem considerar a topografia, a posição do sol ou a cultura local", explica.

Para o bem porque, após o advento da pré-fabricação de estruturas de concreto, houve uma sensível redução de custos em escolas feitas em série, como explica o engenheiro José Carlos Sussekind, calculista do arquiteto Oscar Niemeyer nos Cieps. "Utilizamos uma solução pré-fabricada radical, fácil de transportar, pois os vãos eram curtos. O custo foi 30% menor que o de uma obra similar feita de forma convencional", afirma.

Outra visão muito presente na arquitetura moderna é a de que o espaço educacional é a cidade como um todo, e não apenas a escola – defendida pelo político francês Edgar Faure e depois, de forma mais ampla, por Paulo Freire. No caso dos CEUs paulistanos, os edifícios foram construídos para dialogar com a cidade e oferecer equipamentos ausentes em muitas das comunidades carentes, localizadas na periferia da metrópole. Assim, não só a educação não ocorre apenas na escola, como esta também passa a ser muito mais que apenas o edifício escolar. Cada CEU tem 13 equipamentos urbanos (2 creches, 3 escolas, biblioteca, teatro, casa de cultura, balneário, ginásio de esportes, parque esportivo, padaria escolar, telecentro, além do conselho gestor), divididos em três áreas ou naves. Para se ter uma idéia, São Paulo tinha apenas sete teatros municipais.

Com os CEUs, passou a ter 28.

Esses equipamentos localizam-se estrategicamente junto à orla fluvial da cidade. "O processo de urbanização é um fenômeno de desertificação. Reconhecer isso é o caminho para começarmos a fazer o caminho de volta. Da sala de aula, o aluno vê a piscina de água limpa e, ao fundo, o rio degradado. Esse contraste o faz pensar", explica o arquiteto Alexandre Delijaicov, membro da equipe do projeto e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP.

O problema da água e do meio ambiente como um todo está entre as novas questões a serem levadas em conta pelos projetistas de escolas, principalmente as públicas. Segundo Avany Ferreira, da FDE, já há um projeto-piloto de escola que faz o reúso da água fluvial e, depen­dendo das intervenções ou do local, as plantas precisam passar pelo crivo da Secretaria do Meio Ambiente. Além dis­so, as escolas devem estar equipadas pa­ra o acesso de pessoas com deficiência e criar soluções que previnam ações de van­dalismo. Muitas vezes, isso se traduz nos componentes contratados. A própria FDE desenvolveu um modelo de torneira que, por ser chumbada à parede, evita o fur­to do material, comum em muitas unidades.

Mas é na questão do planejamento urbano que a visão da cidade educadora, ca­ra aos arquitetos, começa a nos trazer ensinamentos, ainda que na forma da per­cepção do erro. A necessidade sempre maior de oferta de escolas na periferia dos grandes centros esbarra cada vez mais na ocupação desordenada, que tornou rarefeitos os terrenos nessas áreas. Por essa ra­zão, cada vez mais os prédios têm de adotar soluções de verticalização e cada vez menos situam-se em locais de maior cen­tralidade – e importância – em cada comunidade.

Autor

Rubem Barros


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