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A força infinita da ignorância (na leitura)

Grupo de discussão dos "Amigos de Sócrates", composto por professores do Community College, de Paramus, Estados Unidos: a presunção de não saber como base do conhecimento O que significa ler? Quem poderia responder de forma definitiva a esta pergunta? Como fazê-lo? Quais pressupostos e visões […]

Publicado em 10/09/2011

por Walter Omar Kohan


Grupo de discussão dos "Amigos de Sócrates", composto por professores do Community College, de Paramus, Estados Unidos: a presunção de não saber como base do conhecimento

O que significa ler? Quem poderia responder de forma definitiva a esta pergunta? Como fazê-lo? Quais pressupostos e visões do mundo envolve cada pretensão de resposta? A pergunta, que afortunadamente não pertence a ninguém, como todas as questões interessantes, pressupõe outras: o que significa pensar? O que significa estar no mundo? Como nos relacionamos com os outros e com o mundo? E também ajuda a pensar outras questões: por que lemos o que lemos? Para que o fazemos? Quantas formas há de se ler o que lemos? Quais as relações entre elas? Enfim, as perguntas são infinitas. Há também infinitas maneiras de lê-las. A leitura é ela mesma infinita.

O saber e o pensamento também são infinitos. Pode-se fazer o exercício de colocar "saber" no lugar de "ler" nas perguntas do parágrafo anterior. Ou "pensar". Ou outras atividades humanas, como "ignorar". Sim, ignorar. Vamos pensar sobre a ignorância. Vamos abrir a leitura habitual sobre a ignorância. Vamos problematizá-la e tentar encontrar suas forças.

Sócrates, filósofo grego do século V a.C. nos ajudará. Em princípio, a ignorância é um vazio, uma falta, um defeito. A sabedoria, seu contrário. Sócrates inverte seus lugares: para um ser humano, não há pior posição que a postura de sábio e nada mais iniciador do que o gesto da ignorância. A ignorância sabe; a sabedoria ignora. Eis o gesto tremendo de Sócrates. No âmbito do humano, as coisas não são o que parecem. Mais ainda, são o contrário do que parecem! A ignorância também não é o que parece. Tamanha força, formidável inversão das aparências. Vamos ver por quê.

A Apologia de Sócrates, (Platão é o autor; Sócrates, a personagem) inventa um lugar para a ignorância, na filosofia e na educação. O mito diz que um amigo de Sócrates, Querefonte, vai consultar o oráculo para saber se existe alguém mais sábio do que Sócrates em Atenas. A pitonisa, uma camponesa a serviço dos sacerdotes apolíneos, responde que não há ninguém mais sábio do que Sócrates. Querefonte não explica de onde tirou a idéia de visitar um oráculo e perguntar tal aparente tolice, mas esse é outro problema, faz parte do outro mito, o de Sócrates.

Sócrates diz que ele não entendia a resposta do oráculo porque, por um lado, tinha pouca consciência de ser um homem sábio e havia muitos homens que se diziam sábios nessa cidade; por outro, não podia pensar que o oráculo de Delfos não falasse a verdade. De tal modo que, para decifrar o enigma (como é possível que um homem que não tem consciência alguma de sabedoria seja o mais sábio de uma sociedade cheia de homens que se crêem sábios?) Sócrates sai a "ver o que acontece".

Interroga a todos os que parecem ser sábios e descobre que nenhum deles o é de verdade. São três grupos de cidadãos: os políticos, considerados mais sábios por eles próprios e pelos seus concidadãos, mas que não o são realmente. E não só: quando alguém como Sócrates mostra a sua ignorância, reagem violentamente. Depois, o filósofo interroga os poetas, e o resultado não é diferente: eles falam coisas lindas, mas o fazem por inspiração divina; transmitem um saber que não é deles. Não sabem o que dizem, não podem dar conta de suas próprias palavras. Finalmente, Sócrates interroga os trabalhadores manuais. São os mais sábios entre os três grupos examinados. Têm um verdadeiro saber, mas não percebem os limites desse saber, pensam que ele se aplica também "às coisas mais importantes" e isso empobrece o que sabem.

Afinal, Sócrates percebe o sentido da frase oracular: ele é diferente, o único de todos que não presume ou imagina saber. Assim, o oráculo serve-se dele como um modelo ou paradigma para mostrar que entre os homens o mais sábio é aquele que "percebe que ninguém é verdadeiramente valioso em relação ao saber".

Isso explica, para Sócrates, as calúnias que circulam a seu respeito. São as vozes tristes dos que não aceitam ter sido colocada em evidência sua posição de ignorantes. O problema de fato não é ser ignorante. Afinal, todos somos ignorantes. Sócrates evidencia uma espécie particular de ignorância, a ignorância da própria ignorância, que é grave porque impede de se relacionar de uma maneira mais interessante com a própria ignorância. Para Sócrates, é a negação de aceitar a própria ignorância que leva às calúnias contra ele. 

Na perspectiva socrática, o que diferencia os seres humanos não é a sabedoria ou a ignorância. Vou escrevê-lo novamente, por via das dúvidas: todos somos ignorantes. Todos. O que nos diferencia é nossa posição em relação à ignorância: ou a acolhemos, ou a espantamos. Sócrates diz que ele é o único a aceitá-la, ou quem mais a acolhe na sua cidade. E isso o torna o mais sábio de todos.


A ignorância de um mestre

Alguns filósofos, como Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Jacques Rancière (1940-  ), não são tão simpáticos à ignorância de Sócrates. O primeiro o acusa de moralizar e racionalizar a vida. Rancière diz que ele não era ignorante de verdade e "sabia" justamente aquilo que todo professor deve ignorar: considerar-se superior (o mais sábio) e não igual a seus interlocutores.

Em todo caso, o legado de Sócrates para a filosofia não é menor. O que ele sugere, em outras palavras, é que a filosofia não radica em nenhum saber positivo, em qualquer sistema, teoria ou conhecimento, mas, sobretudo, numa relação com o contrário do saber, a ignorância. O que Sócrates lega à filosofia é uma maneira de pensá-la e praticá-la que consiste em tomar conta da ignorância. Mais do que um saber ou uma certa relação com o saber, a filosofia é uma certa relação com a ignorância, no pensamento e na vida. Eis o aspecto que interessa destacar do legado de Sócrates.

Ao mesmo tempo, é um legado para a educação. Depois de contar o mito da ignorância, Sócrates identifica a si próprio com um inseto que cutuca o cavalo – grande e de bela raça, mas adormecido por causa de sua gordura – o qual compara a Atenas. Sócrates apresenta a si próprio como o único acordado numa cidade onde todos dormem; é o único que não presume saber, que cuida da ignorância e do que é mais importante: de si próprio, do pensamento, da verdade e do aprimoramento da alma, ao contrário dos outros atenienses, que cuidam das riquezas, das honras e da reputação, em suma, do que é menos importante.

De maneira que cuidar da ignorância é também uma forma de cuidar do que se considera o mais valioso em si próprio. E, por alguma razão misteriosa, que ele chama de missão divina, Sócrates decide não fazer isso apenas consigo, mas também com os outros, sem importar sua idade ou sua riqueza, apenas se tinham interesse em se colocar a si mesmos em questão.

Embora diga, na mesma Apologia: "jamais tenho sido mestre de ninguém", essa forma de apresentar sua "missão" mostra o evidente impacto educativo de sua prática. Mais ainda, ele diz aos juízes que o condenaram que, em decorrência de sua morte, muitos jovens continuarão fazendo o que ele fazia. Ou seja, diz ao mesmo tempo que não foi mestre de ninguém, mas que muitos aprenderam com ele.

Talvez o que queira fazer, negando a si próprio como mestre, é diferenciar-se dos instrutores profissionais de seu tempo com os quais tinha pelo menos duas diferenças significativas: não cobrava pelos seus ensinamentos; e não oferecia conhecimento algum.

Contudo, como resposta a uma acusação que diz que ele ensina outros a fazer o que faz, seu argumento é bastante fraco e sua condenação parece lógica: de fato, ainda que aceitemos suas razões, sua defesa reforça a acusação na medida em que não é acusado de ser um instrutor, de transmitir conhecimentos ou de cobrar pelos seus ensinamentos. Estas práticas eram bem vistas na Atenas de seu tempo. Ao contrário, Sócrates é acusado de "corromper os jovens". E os instrutores não corrompem os jovens porque cobrem ou transmitam conhecimentos. Não em Atenas. Ao contrário. Justamente por isso Sócrates era corruptor: não transmitia os conhecimentos que deviam ser transmitidos. De modo que, embora sua diferenciação dos instrutores profissionais seja pertinente e legítima, com ela não consegue refutar a acusação. Ao contrário, a reforça. Mais uma vez, com Sócrates as coisas são ao contrário do que parecem.
  

A ignorância como início

Mesmo inconveniente como defesa, a intervenção de Sócrates nos ajuda a pensar. O que questiona com a negativa em considerar-se mestre é que seja necessário, desejável ou possível formar alguém a partir das técnicas e dos conhecimentos que o mestre domina. Talvez Sócrates queira dizer que nunca se ocupou de formar ninguém, embora não tenha impedido ninguém de aprender com ele. Quem sabe, Sócrates assim aluda a uma questão mais radical e significativa: que educar talvez tenha que ver com transmitir uma relação de cuidado, em primeiro lugar, com a própria ignorância e, de maneira mais geral, consigo mesmo. Sócrates literalmente nunca transmitiu nenhum saber ("ninguém jamais aprendeu qualquer coisa de mim…", diz no Teeteto), a não ser uma certa relação com a ignorância, com o próprio pensamento, com o mais valioso de cada um.

Dessa maneira, o mito de Sócrates é também o mito da educação. Sócrates não dá palestras, não cria nenhuma escola, não monta qualquer instituição, não tem nenhum conhecimento a transmitir. Seu ensinamento primeiro, fundador, é que não há o que ensinar, a não ser que cada um deve cuidar de si próprio. A única coisa que lhe interessa transmitir não é um saber, mas a inquietude sobre si.

Eis o valor do gesto socrático: o filósofo não ensinaria a outro um conteúdo que não soubesse, e sim que aprendesse a perceber seu não saber. E para que no lugar desse arrogante saber sobre si mesmo e sobre os outros ganhe força uma certa relação de cuidar e se ocupar de si mesmo, nascida e nutrida da própria ignorância.

Quem sabe essas idéias possam ter algum valor relacionadas com a leitura e o letramento. Talvez sugiram uma potência ética – e também política? – da ignorância. Quiçá elas mostrem uma força paradoxal do pensamento dos ditos iletrados e ignorantes. A ignorância é um saber. Ignorar a ignorância é não saber. Voltamos a perguntar: o que significa ler? Não o sabemos. Esperamos que isso signifique agora, ao leitor, um início para o pensamento.






Walter Omar Kohan é professor titular de Filosofia da Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).



walterk@uerj.br

Autor

Walter Omar Kohan


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