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A formiga

Quando o ruído se instala na comunicação e os professores disso não se apercebem, os equívocos acontecem

Publicado em 10/09/2011

por José Pacheco

No fim do dia, o automóvel regressaria ao lugar de onde havia partido, mas a formiga não sabia. Inadvertidamente, subira pela borda do pneu e introduzira-se na cabina, para a fatídica viagem. Enquanto percorria as longas estradas de Minas, eu observava o deambular solitário da pobre formiguinha: trémula, subia, descia, voltava a subir, contornava obstáculos no couro escorregadio. Quase 300 quilómetros percorridos, passou pela enésima vez no mesmo lugar: o rebordo do banco dianteiro. Repetiu tentativas sobre tecido e metal, até que, num gesto suicida, embrenhou-se no cabelo do motorista e acabou esmagada sob uma palmada certeira.

A formiga da estória aprendera a caminhar no carreiro em circuito fechado. Não ousava caminhar em sentido contrário, como fazem os professores que mudam as suas práticas, desafiando os imobilistas – aqueles que, profissionalmente, morrem aos vinte, embora sejam enterrados aos sessenta.

Acompanho aqueles que investem no estudo de teorias, exasperando os que crêem que, sem fundamentação teórica, será possível melhorar a prática. Solidarizo-me com os práticos que melhoram as escolas, constituindo-se em alvos preferenciais dos que criticam as "novas pedagogias", sem que façam a mínima ideia do que essa expressão signifique.

A incauta formiga era laboriosa, mas de ingênua. Ingenuidade idêntica à dos professores que crêem que, "dando aula", ensinam. Quando o ruído se instala na comunicação e disso não se apercebem, os equívocos acontecem. Como aconteceu quando uma educadora pôs os seus meninos a "ler":

"Vamos lá, meninos! Vamos lá a ler esta frase! Eu leio: A mãe afia a faca."

"A fia sou eu!", disse uma menina.

"Não, Mariazinha! Não é a filha, é afia! Afia é o mesmo que amola!"

"A mola?", retorquiu a Mariazinha, deveras confundida.

Outro mal-entendido: um aluno levava cartões à escola e entregava-os ao professor. Durante alguns dias, foi ignorado. Até que perguntou:

"Ó professor, por que não lê os papéis que eu lhe trago?"

O professor leu: "ALUGA-SE". E disparou:

"Então, se tu ainda não sabes o la, le, li, lo, lu, já queres ler este cartão, que diz "ALUGA-SE"?"

"Ó professor, o meu prédio está cheio de cartões com essa palavra. E não há lá nenhum cartão com o la, le, li, lo, lu."

Rematemos com um exemplo de incomunicabilidade universitária: "Agora, temos cinco minutos para tirar dúvidas. Alguém tem dúvidas?"

Ninguém se pronunciou. Ninguém tinha dúvidas, porque ninguém tinha entendido o que quer que fosse do que a professora dissera. A catedrática retomou a projecção de slides, até exclamar:

"Ai! Perdão! Este slide está posto ao contrário!"

"Pode deixar assim. Para nós, tanto faz!…"

A douta senhora tinha gasto saliva a falar para ninguém! Nenhum dos alunos possuía rudimentos básicos para encaixar a "matéria dada".

Nestes diálogos de surdos se consume a energia que escasseia para afastar o insucesso. Embora haja professores conscientes dos equívocos, que não arriscam mudar, porque os cínicos atacam nas escolas e na internet…

Escutei os desabafos de um: "Gostaria de trabalhar numa escola diferente da minha, porque só vejo acomodação e infelicidade à minha volta. Gostaria de fazer um trabalho como o que fizeste na Ponte."

"Gostarias, ou queres?", repliquei.



José Pacheco – Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)



josepacheco@editorasegmento.com.br


Autor

José Pacheco


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