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A gramática dos escritores

Recurso de usar citações literárias, para abonar as regras que propõem, virou uma armadilha para os gramáticos

Publicado em 10/09/2011

por José Luiz Fiorin

Por motivos que valeriam a pena discutir melhor, ou de novo, as gramáticas citam sempre (e só) frases de escritores em abonação às regras, mesmo que se trate de concordância de verbo com sujeito. Em vez de "o pato nada / os patos nadam" ou "o juro cai / os juros não caem", que não precisam de autor, lemos que "A chuva caía" é da lavra de Luandino Vieira. "Sou eu que lhe peço" não é boa porque todo mundo diz, mas porque foi escrita por Castro Soromenho.

(Um comentário: escritores raramente lêem gramáticos; estes, sim, lêem escritores, mas não muitos. E selecionam o que

podem – segundo critérios que se tornaram prévios. Apesar de "Tinha uma pedra no meio do caminho" ser um verso bem antigo, o verbo "ter" ainda não mereceu aval das gramáticas nesse sentido e uso.)

Uma das diferenças entre lingüistas e gramáticos é o tipo de corpus considerado. Perini (Princípios de lingüística descritiva, Parábola), e outros, parte de exemplos caseiros ("Papai chegou a S. Paulo", "Os caixotes estão no porão"), enquanto Celso Cunha e Lindley Cintra (mas não só eles) parecem precisar do abono de um falante superior, que o escritor seria. Se Fernando Pessoa escreveu "Se calhar, tudo é símbolos", então eu também posso. Mas, se quem disser isso for minha vizinha, não vale!

Quem fazia o contrário era o professor Pasquale Cipro Neto. Muitas de suas aulas começavam pelo destaque de um fato lingüístico peculiar em uma letra do Caetano ou do Chico. Seguia mostrando como os efeitos de tal construção eram geniais e, em seguida, quando se esperava que apoiasse a "novidade", vinha "mas, no formal…". O raciocínio dele era: Chico usou, ficou ótimo, mas você não pode.


Mandavam ela


Vistas assim, as coisas parecem simples: os escritores abonam as regras e ponto final. Mas não são simples. Ou deixaram de ser, especialmente depois do surgimento das literaturas realistas ou regionais – o que faz tempo. Qualquer gramático – e leitor – sabe que, se em Inocência um habitante da terra disser "o que me aflege mais é que…", essa não é uma construção que pertence ao discurso do narrador (alter ego do escritor/autor?), e, por isso, o falante aprendiz também não terá o direito de usá-la, nem o gramático de aboná-la. Então, quando é que um "erro" de escritor pode ser tomado como uma exceção aceitável? Eis um bom problema. Supondo, é claro, que caiba aos gramáticos definir regras. Por exemplo, em Ela, livro de Rubem Fonseca,  podemos ler:

"Contei para Celina o que acontecera. Ela não acreditava que Gabriel estivesse lendo um livro, disse que ele odiava livros. Acrescentei que era um livro do Machado de Assis e ela fez careta dizendo que quando mandavam ela ler Machado de Assis no colégio ela não conseguia e pedia a uma amiga para lhe dizer qual era a trama do livro, e acrescentou que Machado de Assis era um chato insuportável".

Não fica claro, pelo menos a mim, se o narrador é o mesmo em todos os contos do livro (um matador), mas pode ser que sim. Adotando o critério dos gramáticos, poderiam achar que, se Rubem escreve "quando mandavam ela ler Machado de Assis" (e não "a mandavam"), então todos podemos usar essa construção.

Para um gramático comum, pode ser que seja assim. Para um leitor mais arguto, mesmo que seja gramático, não seria óbvio. É que o "ela" pode ter o estatuto do "aflege" de Inocência. Ou seja, "mandar ela" pode estar aí como sintaxe da fala do narrador, uma pessoa pouco instruída, e língua de gente pouco instruída não recebe apoio de gramático.
 

Superposição machadiana


Um bom exemplo das dificuldades que um gramático pode enfrentar está em um ensaio de Mattoso Câmara, "Um caso de regência" (Ensaios machadianos, Ao Livro Técnico). É questão gramatical que já rendeu polêmica. No texto, Mattoso exibe seu sofisticado talento de analista, de intérprete sutil, e a capacidade de estabelecer uma linha divisória entre as questões de gramática e a da superposição de vozes, que Bakhtin tornou clássica.

Mattoso apresenta detalhada documentação sobre a regência alternativa a / em, "para os nomes de rua e indicação de morada" (como "residente na rua" ou "à rua"). Após constatar que, na matéria, Machado "se opõe, de um lado, ao classicismo de um Odorico Mendes ou um Rui Barbosa, por exemplo, e, de outro lado, ao arroubo nativista de seu contemporâneo José de Alencar", Mattoso descobre um fato que outros não tinham percebido. Machado, diz Mattoso, usa predominantemente a regência em (e aduz uma série de exemplos de obras), mas "em Quincas Borba, ao lado de um emprego constante de em (…), há um exemplo esporádico com a regência de a…":

"Rubião é sócio do marido de Sofia em uma casa de importação à rua da Alfândega sob a firma Palha & Cia.".


Explicação estilística


Como dar conta desse caso quase isolado? Para Mattoso, a explicação é estilística: "O romancista está assumindo a atitude de intérprete do jargão comercial, numa fórmula nítida de discurso indireto livre" (p. 170). Outro uso da mesma regência em Machado é: "… em casa de Joaquim Soares, à rua da Alfândega".

Esse uso "nada prova", para Mattoso, no que diz respeito ao argumento que se baseia na autoridade de Machado em favor da doutrina gramatical que defende a regência a, pois "é a transcrição de um testamento" e "resulta da observação realista do escritor" (p. 170). Trata-se de  caso não típico de discurso indireto livre (Machado não "cita livremente" a fala de personagem, mas o estilo de instituição). Mattoso interpreta como discurso indireto livre outros exemplos de Machado, deixando evidentes dois fatos: que Machado preferia a construção brasileira e a "regência com a estava se generalizando na linguagem tabelioa" (p. 171). Na linguagem tabelioa!, vale insistir.

Essas análises revelam a sutileza do texto machadiano, que hoje interpretamos em termos de heterogeneidade ou de plurilingüismo – apoiados em Bakhtin. As construções com regência em a são,  em Machado, marcas de outro discurso, do discurso de outro. No caso, da linguagem de uma dada esfera social, burocrática, jurídica, cujos textos têm estilo específico.

O que se pode dizer de Machado se pode dizer de Mattoso: que tenha levado a cabo análises como essa é evidência de sua sagacidade. Alternativamente, poder-se-ia dizer que se trata menos de ser sagaz do que de seguir uma ou outra doutrina – de dispor de teorias melhores ou menos boas. Seguindo uma, a de Souza da Silveira, lê-se Machado com olho de gramático, e, encontradas as duas construções, conclui-se que Machado usava ambas (o que fortalece certa doutrina); seguindo outra, como a de Mattoso, lê-se Machado com olhar do analista dos estilos, o que permite não só perceber que construções surgem ou não em uma obra, mas verificar se ocorrem no discurso do narrador, no de personagem ou, como as aqui destacadas, se são alusões a uma linguagem burocrática, que elas fazem ecoar.


Olho de gramático


Em outros termos, uma coisa é ver em Machado de Assis apenas exemplos de construções aceitáveis, outra é ver nele o escritor realista, posição que o "obrigava" a considerar a heterogeneidade lingüística.

Resumindo: não se escreve simplesmente em português (certo ou errado). Por isso, as soluções que as gramáticas normativas querem dar merecem um olhar mais sofisticado sobre os escritores que tomam como base. Escrevemos em burocratês, em filosofês, em propagandês, em biologês, em internetês etc. e, portanto, a questão "pode / não pode" exige critérios melhores do que os divulgados normalmente, sobretudo nos resumos de gramáticas, que é quase só o que as pessoas consultam.

Os gramáticos quase não erram quando se defrontam com estruturas lingüísticas populares, já que propõem formas cultas. Mas nem sempre se saem bem quando encontram diferenças como as que Mattoso percebeu em Machado. É uma óbvia questão de conhecer (ou não) boas teorias, e de fazê-las render.

Autor

José Luiz Fiorin


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