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A (in)definição do currículo

Resultado de disputas sociais que traduzem diferentes visões e concepções de mundo, a definição dos conteúdos a serem ensinados na escola passa por um momento de grande indefinição e apostas diversas

Publicado em 10/09/2011

por Paulo de Camargo


Programas dos vestibulares podem restringir a matriz curricular das escolas

A mais intensa revolução tecnológica jamais vista está em curso, com invenções brilhantes que transformam a comunicação humana e a produção do conhecimento, mudando costumes sociais e as formas de relacionamento. O mundo se globaliza com novas formas de transporte e as correntes migratórias. Um consenso se forma entre os intelectuais: a educação é o motor da modernização, e a escola precisa mudar. Possivelmente, todo educador já se cansou de ouvir essa toada, repetida à exaustão no século 21. E, de fato, o início dessa matéria não seria surpreendente se não estivéssemos falando dos anos 1870, tempo da segunda Revolução Industrial. Entre as muitas mudanças em curso, estava a da educação, e discutia-se o currículo adequado que as escolas deveriam oferecer aos alunos. Qualquer semelhança não é mera coincidência.

Tratar do tema currículo é tocar em duas das perguntas centrais e inseparáveis da educação, diz a pesquisadora Elba de Sá Barreto, da Fundação Carlos Chagas: o que uma geração precisa aprender e para que servirá esse conhecimento – em outras palavras, que tipo de cidadãos uma sociedade quer formar. Por isso, num movimento pendular, o tema da renovação curricular periodicamente é recolocado, quase sempre como resposta às demandas que a sociedade faz à escola.

Neste exato momento, no mundo contemporâneo, estão em curso diversas iniciativas que focam as diretrizes curriculares. No Brasil, até o final do ano, por exemplo, o Ministério da Educação deverá editar um decreto que trata das novas diretrizes para o ensino médio. Há dois anos, o governo paulista lançou o projeto São Paulo Faz Escola, proposta curricular com materiais dirigidos a professores e alunos. No Congresso Nacional, que definiu a obrigatoriedade de disciplinas como sociologia, filosofia, música, transitam outros 250 projetos de lei com propostas de inserção de conteúdos ou matérias. São movimentos que ecoam discussões que se repetem em vários lugares do planeta. Afinal, o que a escola deve ensinar?

Essa pergunta aparentemente simples camufla um embate de visões de mundo, de ideologias, de poder.  Para autores como o historiador norte-americano Thomas Popkewitz, o currículo é uma construção histórica e por isso reflete movimentos de regulação e poder, bem como as ideologias de seu tempo. Olhando para as origens da escola republicana, base da escola contemporânea, é mais fácil entender o que isso significa. "Na escola brasileira do início do século passado, o currículo refletia preocupações do governo como a formação da nação, o controle social dos trabalhadores e questões sérias do momento, como a higienização", lembra a pesquisadora da Universidade de São Paulo Cecília Hanna Mate, que estuda a história das disciplinas escolares.

Os programas curriculares da época foram estudados a fundo na dissertação de mestrado
O que ensinar nas diferentes escolas primárias paulistas: um estudo sobre os programas de ensino

(1887-1929), apresentada neste ano pela pesquisadora Cynthia Lushiuen Shieh na Faculdade de Educação da USP.

Em seu trabalho, Cynthia mostra a evolução dos programas conforme se consolidava a República recém-instaurada no Brasil, em uma São Paulo dominada por oligarquias que se modernizava num ritmo alucinante. Ao mesmo tempo que se pautava por esse clima de modernidade, a cidade vivia também sucessivas epidemias. Milhares de imigrantes de diferentes países aportavam em um Brasil que ainda se consolidava  como Estado-Nação, num período em que tradições culturais nacionais ainda estavam sendo inventadas, na acepção que o historiador Eric Hobsbawn dá a esse processo. Nesse contexto, as próprias escolas eram subdivididas em tipos para diferentes segmentos sociais. Nas escolas isoladas para a população rural e para as áreas urbanas periféricas, o programa e o tempo de ensino obrigatório chegaram a ser reduzidos em relação às escolas dos centros urbanos. "A opção de criar programas de ensino próprios para cada tipo de escola primária, levando-se em conta o meio em que ela se localizava, teve como intuito a manutenção das desigualdades sociais", escreve Cynthia.

Evidentemente, na medida em que a democracia se desenvolve, não são imposições de governo, mas as pressões sociais de diferentes orientações que buscam interferir no programa curricular. "Um currículo muda ou porque ele é empurrado pelas transformações, ou para impor certos valores estranhos aos indivíduos", lembra Cecília. "A escola contemporânea também reflete essas influências; temas como a educação ambiental não estavam colocados dessa forma na década de 1970", exemplifica.

Outro fator a ser considerado, segundo Elba de Sá Barreto, é que uma das principais características da escola do século 21 é que se trata de uma escola de massas: todos devem ter acesso a ela, o que é frontalmente diferente da educação de elite que marcou a maior parte do século 20, no Brasil. "O fato de toda população de um país estar – e permanecer – na escola traz problemas que não eram contemplados pelo currículo, como o de definir qual é o conhecimento relevante em um país de dimensões continentais e variações regionais", diz Elba.

Segundo Cecília, uma das principais marcas das tensões do currículo da escola contemporânea é o discurso das diferenças. "O currículo está preocupado com a mulher, o negro, os povos indígenas", diz. O risco, segundo ela, é que a obrigação às vezes velada de incorporar as diferenças acaba também por ser um fator de restrição da plena expressão da escola, que passa a tratar tudo como dever burocrático, sem uma reflexão real sobre seus significados.

Hoje, a crescente pressão para a inclusão de novos temas no currículo – da educação para o trânsito ao esperanto – joga mais lenha em outra das críticas feitas ao sistema educacional, esta mais consensual: o inchaço dos programas de ensino. Sob o prisma mais superficial da compreensão dos dilemas do ensino, muitos ainda veem o currículo sob uma perspectiva quantitativa. Ora se fala em tirar disciplinas, ora em acrescentar. "Não se pode confundir currículo com lista de tópicos ou como índice de livros", alerta o físico Luiz Carlos de Menezes, consultor da Secretaria da Educação paulista e do MEC em questões curriculares.

Menezes e outros pesquisadores da área vêm preferindo relacionar o currículo ao percurso de aprendizagem do aluno. "Falar de currículo é tratar do conjunto de experiências educativas que o aluno tem na escola", reafirma Elba de Sá Barreto. Assim, não está em jogo apenas a seleção das disciplinas ou dos conteúdos a serem trabalhados, mas também as diretrizes que devem presidir o ensino. "O ‘o quê’ trabalhar na escola e o ‘como’ estão muito interligados", lembra a pesquisadora, que é coautora de um estudo recém-lançado sobre os currículos dos cursos brasileiros de pedagogia. Na prática, isso significa que as propostas curriculares precisam ser articuladas com visões mais globais do trabalho pedagógico. "Independentemente do conteúdo, se o aluno é mantido em passividade, perfilado, ouvindo o que o professor fala, o debate já começa equivocado", diz Menezes.


Onipresença do vestibular



A discussão do currículo está longe de ficar circunscrita ao vai e vem das disciplinas. Um número cada vez maior de pesquisadores defende a ideia de um currículo cada vez mais enxuto. Entre os argumentos para os defensores dessa linha está o fato de que os alunos, principalmente no ensino médio, são submetidos a uma carga muito grande de informações especializadas que só serão de fato necessárias se optarem por carreiras dentro da mesma área – e serão rapidamente esquecidas se este não for o caso. "Se um aluno perguntar para um professor de português algo sobre química, certamente ouvirá que ele sabe pouco do assunto. Por que então um adolescente precisa ser o único gênio da escola que tem de saber tudo sobre todas as matérias?", questiona Menezes. Para ele, não se trata de apenas ensinar o que vai ser lembrado pelo aluno, mas de não fingir ensinar conteúdos que de fato não serão aprendidos. Talvez, indica, o caminho seja o da valorização das trajetórias individuais, que se materializariam com a possibilidade de escolher algumas das disciplinas a serem cursadas a partir de certo momento da escolaridade. Para ele, todos precisam saber ciências, mas detalhes do programa da física, provavelmente não. "Essa discussão requer uma maturidade que a escola não tem ainda", considera.

A essa dificuldade de rever o programa escolar está associada uma outra: a atualização de currículos cuja base se assenta nos conhecimentos anteriores às descobertas do século 21. No campo da física, por exemplo, Arquimedes é um nome mais familiar aos alunos do que o de Max Planck, considerado o pai da física quântica.

Para Menezes, no entanto, a solução não está em incluir aulas ou mais referências aos avanços da física no século 20. "A aula mata a ciência", diz o pesquisador, que dedicou boa parte de sua carreira à educação. "Do ponto de vista dos Parâmetros Nacionais Curriculares, não há grandes defasagens no conteúdo relacionado às novas fronteiras de ciência", diz. O grande problema, no seu entender, é que a ciência precisa ser vista no currículo como uma linguagem a ser apropriada para que o indivíduo compreenda melhor o mundo que o cerca. "A ciência precisa ajudar o aluno a entender melhor o noticiário das 8 e o rótulo dos alimentos", defende.

Para ele, se a escola fizesse isso, estaria também tratando da mecânica quântica. "O mundo quântico está em toda parte, no leitor dos CDs ou no micro-ondas, que utiliza uma frequência particular, que é frequência quantizada que provoca a rotação da molécula de água", explica o físico. Há muitos exemplos, lembra Menezes, como o estudo da escala Richter, que mede a intensidade dos terremotos e permitiria aos alunos compreender a finalidade do logaritmo, conceito matemático no qual se baseia.

Tudo, acrescenta, deve ser feito com muita participação dos alunos. "O estudante não é um paciente do trabalho do professor. Não está lá para ser trabalhado, mas para trabalhar, e isso também é uma questão ligada ao currículo", finaliza.

Para Mauro Aguiar, membro do Conselho Estadual de Educação e diretor do Colégio Bandeirantes, será difícil mudar enquanto os vestibulares conti­nuarem orientando o currículo das escolas. Hoje, em vestibulares de referência, como a Fuvest, ainda são os representantes de cada instituto universitário que definem quais são os conhecimentos mínimos que um aluno precisa ter para ser admitido em cada curso. Assim, os programas dos vestibulares acabam por restringir a matriz das escolas, sobretudo a das particulares, cujos alunos irão disputar palmo a palmo as vagas nas melhores universidades.

"Os velhos vestibulares são verdadeiramente pré-medievais, mas os principais exames de avaliação, inclusive o Pisa, já apontam para um ambiente diferente, onde a hiperespecialização não é exigida", pondera Menezes. Consciente desse poder dos vestibulares sobre o currículo, o Ministério da Educação aponta como uma das razões explícitas da ampliação do Enem a pressão que poderá exercer para um currículo menos focado em conteúdo e mais na capacidade de interpretação e utilização do conhecimento. "O ensino médio precisa ser compreendido cada vez mais em seu caráter terminal, que fecha o ciclo da Educação Básica, e não como preparatório do ensino superior", acredita o Secretário Nacional do Ensino Médio, Carlos Simões Artexes.

A visão, no entanto, está longe de ser consensual. Como lembrou Fábio Aidar, diretor do Colégio Santa Cruz, de São Paulo, em recente debate promovido pela revista
Época

sobre as escolas de excelência no Enem, pensar num ensino sem os conteúdos que são inerentes ao aprendizado, como se se pudesse aprender apenas uma mecânica de pensamento, sem que esteja acompanhada de algo que a preencha, é uma falácia.


Novos paradigmas



Para além das questões do vestibular, outros desdobramentos se anunciam no horizonte. A avassaladora disseminação das novas tecnologias vem provocando previsões ainda mais radicais sobre o futuro dos programas curriculares. "As TICs não afetam só o currículo, mas as próprias bases do nosso sistema educativo", defende, por exemplo, o pesquisador espanhol César Coll, um dos articuladores da reforma educacional espanhola que influenciou profundamente os parâmetros curriculares brasileiros. Para ele, a lógica que vem presidindo todas as últimas reformas curriculares é a mesma – a da acumulação e a organização disciplinar. "Contudo, as tecnologias vão implodir os currículos enciclopédicos da forma como o conhecemos, pois os programas não podem fechar os olhos para as mudanças das práticas culturais da sociedade", vaticina. "Como podemos definir hoje tudo o que os alunos precisam saber, se tudo muda em impressionante velocidade?", pergunta.

Coll assenta suas reflexões no que chama de "nova ecologia da aprendizagem". Para ele, os alunos já vivem num mundo em que a escola representará apenas uma das inúmeras possibilidades de acesso à informação, no que chama de "nichos", que são o trabalho, os cibercafés, celulares, bibliotecas, centros comunitários, casa, computadores pessoais plugados pelas tecnologias móveis. Por isso, diz, a educação deverá estar menos centrada na oferta de informações do que no desenvolvimento das competências necessárias para buscar, compreender, organizar criticamente e reconstruir as informações dentro de contextos que mudam continuamente.

Ele não está só nessa reflexão. A pesquisadora Frída Diaz, da Universidade Autônoma do México, estudou diferentes propostas de revisão curriculares e identificou tendências comuns, como a flexibilidade, a formação prática, a opção por temas transversais, o foco na aprendizagem do aluno e o uso de novas tecnologias. Outra das constantes encontradas também vem provocando bastante polêmica: o foco no desenvolvimento de competências, que se tornou um mantra para os que questionam os currículos baseados em conteúdos.

Para Elba, da Fundação Carlos Chagas, trata-se de uma discussão repleta de mal-entendidos. "As competências não existem, nem se criam no vazio. É preciso haver conteúdo para  desenvolver competências", defende a pesquisadora, indo ao encontro da visão de Fabio Aidar. Para ela, embora de fato seja preciso haver mudanças no currículo, não se pode esquecer que muitas coisas permanecem. "A sociedade muda, o conhecimento muda, a escola tem de estar atualizada, por exemplo, no que se refere à mídia e às tecnologias, que trazem novas formas de acesso ao conhecimento", diz. "Mas tudo o que vem por esses caminhos ainda precisa passar pelo crivo reflexivo, definidor de relevâncias, que é o trabalho da escola", argumenta. Para a pesquisadora, o conceito de competências vem sendo utilizado muitas vezes de forma restritiva e utilitarista, no sentido de saber fazer algo. "Mas a escola é o espaço que ensina a ser, cultiva gosto, afetividades, preferências, oportunidades para o desempenho da cidadania, tem um escopo maior, portanto, na formação integral dos indivíduos", diz.

No centro de todas as discussões, está o professor, que se apega aos documentos oficiais, como as diretrizes curriculares, aos livros didáticos e aos programas dos vestibulares como bússolas num mar tempestuoso, onde ainda parece melhor pecar pelo excesso do que pela falta. Por contraditório que possa parecer, o caminho possível entre tantas referências obrigatórias é o da autonomia – da escola e de seu projeto pedagógico. "A profusão do conhecimento não é uma vantagem em si. O que cabe a nós, principalmente, é ajudar nossas crianças e jovens a compreender os fenômenos, a duvidar, a fazer perguntas, a experimentar. Se olharmos apenas para as teorias, acabamos por ignorar o que temos a nossa frente, os alunos reais", conclui.

Autor

Paulo de Camargo


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