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A metonímia

A figura dá aceleração ao sentido do que se expressa, criando uma extensão do sentido de um termo a outro

Publicado em 10/09/2011

por José Luiz Fiorin

 Castro Alves traduz assim uma estrofe de um poema de Victor Hugo, intitulado “A Olímpio”:

A nuvem carregada, espanto do marujo,
Que a vela mal abriga,
Para o trabalhador, que vê crestado o campo,
É o saco da espiga.

Temos uma afirmação não pertinente nesta estrofe “a nuvem carregada, espanto do marujo, é o saco da espiga para o trabalhador”. Qual é o mecanismo para estabelecer a propriedade semântica dessa frase? O termo “nuvem carregada” é a causa da “chuva”; o “saco da espiga” é o efeito da “boa colheita”. A compatibilidade sêmica se dá, quando percebemos o significado da frase: a chuva propicia boa colheita para o trabalhador. Os traços do efeito (a chuva) transitam para sua causa (nuvem carregada) e os da causa (colheita) transferem-se para seu efeito (saco da espiga)

 A metonímia é uma difusão semântica. No eixo da extensão, um valor semântico transfere-se a outro, num espalhamento sêmico. Com isso, no eixo da intensidade, dá uma velocidade maior ao sentido, acelerando-o, pois, ao enunciar, por exemplo, um efeito, já se enuncia também a causa, suprimindo etapas enunciativas. Ao dar ao sentido aceleração, a metonímia tem um valor argumentativo muito forte.


Contiguidade



O que estabelece uma compatibilidade entre os dois sentidos é uma contiguidade, ou seja, uma proximidade, uma vizinhança, um contato. Assim, são metonímicas as compatibilidades de causa e efeito (Ganhar a vida com o suor de seu rosto), instrumento e autor (Ele é um bom garfo), continente e conteúdo (Bebeu só um copo), lugar e objeto que o caracteriza (Tomou um cálice de Porto), símbolo e aquilo que ele simboliza (Ele é a âncora da família), coisa e ser que ela caracteriza (Esta festa está cheia de cuecas), autor e obra (Leu os pré-socráticos), marca e produto (Comprou um pacote de gilete), abstrato e concreto (É preciso respeitar a velhice; Ele ficou com os louros), etc. Metonímia, em grego, significa “além do nome, o que sucede o nome”. A metonímia é, pois, o tropo em que se estabelece uma compatibilidade predicativa por contiguidade, aumentando a extensão sêmica com a transferência de valores semânticos de um para outro dos elementos coexistentes e aumentando sua aceleração com a supressão de etapas de sentido.

A sinédoque é um tipo de metonímia em que a relação de contiguidade é do tipo
pars pro toto

(parte pelo todo), o que significa que a transferência sêmica se faz entre dois sentidos que constituem um todo. Sinédoque, em grego, quer dizer “compreensão simultânea”, ou seja, o que apresenta traços que cocorrem necessariamente num significado. Assim, podemos dizer que são sinédoques a coexistência de parte e todo (Os sem-teto ocuparam um prédio abandonado; Tem olhos azuis); matéria e objeto (Na batalha, ouvia-se o ruído do ferro); singular e plural (O brasileiro é, em geral, simpático), gênero e espécie (Os mortais têm sempre uma angústia existencial; Em casa onde falta pão, todos falam e ninguém tem razão), etc.

Uma espécie de sinédoque é a antonomásia, em que se transfere o valor semântico de um nome próprio para um nome comum, que contém uma característica que marca o nome próprio (o Estagirita para designar Aristóteles; o Apóstolo dos gentios para denominar São Paulo; o Mestre do suspense para Alfred Hitchcock) ou se designa, num processo de transferência semântica, com um nome próprio, a totalidade dos indivíduos que têm uma dada característica (Era um Casanova = um conquistador).

Pensa-se que a metonímia tem apenas a dimensão de uma palavra ou quando muito de um sintagma. Por exemplo: Manda equipar batéis, que ir ver queria/Os lenhos em que o Gama navegava (Os Lusíadas, VII, 73). Lenho é a madeira de que são feitos os barcos e, por isso, no texto tem esse significado. No entanto, com metonímias podem-se construir textos, que constituem uma totalidade metonímica. No texto abaixo, fragmento do capítulo VI de O Ateneu, de Raul Pompeia, fala-se do tipo de eloquência que se praticava no Grêmio da escola e aqui Cícero significa “orador”:


Ateneu



“A eloquência representava-se no Grêmio por uma porção de categorias. Cícero tragédia – voz cavernosa, gestos de punhal, que parece clamar de dentro do túmulo, que arrepia os cabelos ao auditório, franzindo com fereza o sobrolho, que, se a retórica fosse suscetível de assinatura, acrescentaria ao fim de cada discurso pesadamente: a mão do finado; Cícero modéstia – formulando excelentes coisas, atrapalhadamente, no embaraço de um perpétuo
début

, desculpando-se muito em todos os exórdios e ainda mais em todas as confirmações, lágrimas na voz, dificuldade no modo, seleto e engasgado; Cícero circunspecção – enunciando-se por frases cortadas como quem encarreira tijolos, homem da regra e da legalidade, calcando os que e os cujo, longo, demorado, caprichoso em mostrar-se mais raso do que o muito que realmente é, amigo dos períodos quadrados e vazios como caixões, atenuando mais em cada conceito a atenuante do conceito anterior, conservador e ultramontano, porque as coisas estabelecidas dispensam de pensar, apologista ferrenho de Quintiliano, retardando com intervalos o discurso impossível para provar que divide bem a sua elocução, com todos os requisitos da oratória, pureza, clareza, correção, precisão, menos uma coisa – a ideia; Cícero tempestade – verborrágico, por paus e por pedras, precipitando-se pela fluência como escadas abaixo, acumulando avalanches como uma liquidação boreal do inverno, anulando o efeito de assombroso destampatório pelo assombro do destampatório seguinte, eloquência suada, ofegante, desgrenhada, ensurdecedora, pontuada a murros como uma cena de pugilato; Cícero franqueza – positivo, indispensável para o encerramento das discussões, dizendo a coisa em duas palavras, em geral grosseiro e malfalante, pronto para oferecer ao adversário o encontro em qualquer terreno, espécie perigosa nas assembleias; Cícero sacerdócio – sacerdotal, solene, orando em trêmulo, alçando a testa como uma mitra, pedindo uma catedral para cada proposição, calçando aos pés dois púlpitos em vez de sapatos, espécie venerada e acatada.

Nearco introduziu o tipo ausente do Cícero penetração – incisivo, fanhoso e implicante, gesticulando com a mãozinha à altura da cara e o indicador em croque, marcando precisamente no ar, no soalho, na palma da outra mão o lugar de cada coisa que diz, mesmo que se não perceba, pasmando de não ser entendido, impacientando-se até ao desejo de vazar os olhos ao público com as pontas da sua clareza, ou derreando-se em frouxos de compaixão pela desgraça de nos não compreendermos, porcos e pérolas”.

Finalmente, cabe lembrar que a metonímia não é um tropo apenas da linguagem verbal; vai aparecer também em outras linguagens, como a visual, por exemplo. As indicações de lugares em placas são, em geral, metonímicas: os talheres significam “restaurante”; uma taça quer dizer “bar”, uma ducha tem o sentido “lugar onde se pode tomar banho”. No quadro La Belle, de René Magritte, as folhas significam as árvores.


José Luiz Fiorin


é professor do Departamento de Linguística da USP e autor de As astúcias da enunciação  

Autor

José Luiz Fiorin


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