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Augusto dos Anjos. E das ciências

Para o poeta paraibano, autor de um único livro, "somos o que lemos e lemos aquilo que somos"

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Perissé

O poeta paraibano Augusto dos Anjos (1884-1914) produziu obra inconfundível, alimentada por uma cosmovisão que se formou em diálogo com significativas influências do século 19: o pensamento de Comte, Schopenhauer. Goethe e Hegel; as intuições de Baudelaire e Cesário Verde; as teorias de Charles Darwin, Ernst Haeckel e Herbert Spencer.

A sua poesia nos ensina, portanto, numa primeira aproximação, que nós somos aquilo que lemos e lemos aquilo que somos. Somos "produzidos" por nossas escolhas intelectuais. Aprendemos a pensar e a escrever com a ajuda de outros pensadores e escritores. Os autores que escolhemos como mentores atuam, de fato, sobre a nossa mente, sobre a nossa própria maneira de ser. Augusto dos Anjos é um caso notório de assimilação criativa das leituras que realizava. Só por essa razão já podemos considerá-lo um mestre. Um mestre que nos mostra, na prática, como nasce um autor. Eu, seu único livro, é a síntese do contato que estabelecia com outros "eus"…

Por outro lado, o poeta era professor em sentido estrito, exercendo a docência profissionalmente. Em 1911, no Rio de Janeiro, lecionou geografia, corografia e cosmografia no Ginásio Nacional (atual Colégio Pedro II). E era atuando como professor que o escritor podia sobreviver e dedicar-se à sua estranha poesia, que foi muito mal acolhida pela intelectualidade da época.

O poeta-professor, cuja obra não é fácil enquadrar em algum movimento literário – chamam-no por isso de neoparnasiano, neo-simbolista, pré-modernista… o que pouco ou nada significa -, soube incorporar aos seus versos o vocabulário filosófico e científico de seu tempo, dando-lhe um sentido mais amplo.

"Psicogenética", por exemplo, estudo da aquisição das formas de pensamento pelo indivíduo, transforma-se em "lugar" de onde vem a idéia, essa luz misteriosa que encontra no corpo humano mais um obstáculo do que um canal, e chega enfraquecida, quase morta à "língua paralítica":


Vem da psicogenética e alta luta
Do feixe de moléculas nervosas,
Que, em desintegrações maravilhosas,
Delibera, e depois, quer e executa!
(A idéia)

Augusto dos Anjos parecia fascinar-se não só pelo significado mas também pela sonoridade das palavras científicas, muitas delas proparoxítonas: "cinocéfalos", "hidrópicos", "plastídulas", "teleológica", "morfogênese", "anatômicos", "genésico" e muitas outras. São palavras solenes, talvez um tanto pernósticas, que exigem diminuirmos o ritmo da leitura para saborearmos a sua importância. São, aliás, convite à pesquisa etimológica, criando um vínculo entre conhecimento científico e escavações lexicais.


Inquietações exclamativas


A incorporação dos termos científico-filosóficos é o modo pelo qual Augusto dos Anjos expressa suas inquietações mais profundas, sua consciência com relação à fragilidade do corpo humano, à brevidade da vida, à sua ameaçada existência de indivíduo. Não é chamativo que, ao lado do gosto pelas proparoxítonas, o título da coletânea seja um monossílabo, um mísero "eu"?

À visão científica, que tende a encarar friamente a realidade como um conjunto de fenômenos naturais – a doença, a morte, o apodrecimento do corpo -, o poeta associa perplexidade e medo. Andando à noite pelas ruas de Recife, assombrado com sua sombra magra (cf. As cismas do destino), o professor percebe que o conhecimento não pode ser frio e distante. Eis uma aula de ciências magistral, em que se misturam sentimento e objetividade. Na poética augustiana, é possível falar numa "ascensão barométrica da calma" (As cismas do destino). E se evidencia que as leis físicas, a que estamos submetidos, não impedem o sofrimento do ser humano. Os doentes não são coisas materiais apenas. Estas…


[…] dos bacalhaus o óleo não bebem,
Estas não cospem sangue, estas não tossem! (Os doentes)

Sinal inequívoco de que o "eu", apesar de minúsculo, não se deixa enganar pela neutralidade do conhecimento, é o uso obsessivo do ponto de exclamação. Nas 131 páginas da primeira edição do Eu contam-se mais de 550 exclamações! O ponto de exclamação (ou "ponto de admiração") relativiza a idéia de que podemos ser absolutamente objetivos.
O conhecimento, mesmo que controlado pelos critérios mais rigorosos, levará à admiração. Compreender fenômenos, testar hipóteses, privilegiar a matemática, a física, a química e a biologia na busca das verdades, nada disso impede o espanto, quando essas verdades se manifestam. Ou melhor: seria muito desumano se as descobertas científicas não nos conduzissem à admiração!

O soneto
Agonia de um filósofo

reúne sete exclamações:


Consulto o Phtah-Hotep. Leio o obsoleto
Rig-Veda. E, ante obras tais, me não consolo…
O Inconsciente me assombra e eu nele tolo
Com a eólica fúria do harmatã inquieto!


Assisto agora à morte de um inseto!…
Ah! todos os fenômenos do solo
Parecem realizar de pólo a pólo!
O ideal de Anaximandro de Mileto!


No hierático areópago heterogêneo
Das idéias, percorro como um gênio
Desde a alma de Haeckel à alma cenobial!…


Rasgo dos mundos o velário espesso;
E em tudo, igual a Goethe, reconheço
O império da substância universal!

O velário, toldo com que se cobriam circos e anfiteatros na Antiguidade, representa a nossa ignorância. Desvelados os mundos, manifesta-se a substância universal, substância na qual se fundem sujeito e objeto, noção tão cara à concepção de mundo do biólogo alemão Ernst Haeckel, orientado pelos mestres Goethe (séculos 18-19) e Spinoza (século 17).


O último verso


Num de seus poemas mais conhecidos, Buda moderno, Augusto dos Anjos estabelece o diálogo final entre ciência e consciência, entre o doutor e o poeta:


Tome, Dr., esta tesoura, e… corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?

A dissolução da vida não deve mais preocupar o poeta. Seu misticismo moderno consiste em reconhecer como incontestável o movimento da natureza: a podridão é regida por uma dinâmica superior aos indivíduos. Tudo o que existe se pulveriza. Mas o poeta, criador ele também de uma realidade, a literária, aprendeu que nela resiste algo de imorredouro. E por isso escreve:


Mas o agregado abstrato das saudades
Fique batendo nas perpértuas grades
Do último verso que eu fizer no mundo!



Gabriel Perissé

é doutor em filosofia da educação (USP) e professor da Universidade Nove de Julho (SP) (



www.perisse.com.br



)

Autor

Gabriel Perissé


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