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Docentes na Berlinda

De avaliador do processo educativo, o professor passa a ser objeto de avaliação, cujo principal índice é o desempenho de seus alunos; tendência internacional começa a tomar corpo em diversos Estados e é vista com desconfiança por especialistas

Publicado em 10/09/2011

por Rubem Barros

Vem aí uma nova onda na educação brasileira. Com o anúncio feito no ano passado pelas secretarias estaduais de educação de São Paulo e de Pernambuco de que vão aderir ao modelo de remuneração por desempenho, já adotado em outros moldes por outros Estados brasileiros, ganha corpo entre os gestores públicos a idéia de que é preciso criar instrumentos de reconhecimento de mérito como forma de melhorar a qualidade do ensino. A proposta, bastante controversa, embute discussões e matizes técnicos e ideológicos refletidos no âmbito da educação.

Nas escolas da rede estadual paulista, haverá, a partir deste ano, a criação de uma remuneração extra, dada a professores e funcionários que, coletivamente, atingirem as metas estabelecidas pela Secretaria de Educação a partir dos resultados do Saresp de 2007, a avaliação estadual cujos resultados estavam previstos para o final de fevereiro. A meta contemplará um indicador que conjugará o desempenho na avaliação com os indicadores de fluxo (índices de aprovação e evasão, nos moldes do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica, o Ideb do governo federal), freqüência dos professores e critérios de gestão que ainda não estão definidos (os quais devem representar 10% do total da avaliação da escola). Aqueles que trabalham nas escolas que atingirem a meta, que será sempre estabelecida a partir dos resultados da própria unidade, ganharão até três salários extras no final do ano.

Tanto o modelo federal como a proposta paulista de busca de melhoria da educação estão fortemente assentados na idéia de responsabilização, ou accountability, no termo consagrado globalmente. Ela pressupõe a introdução de instrumentos de medição que sejam de conhecimento público, para que a sociedade possa cobrar gestores e professores pelos resultados aferidos.
 
Desde o início dos anos 2000, alguns Estados brasileiros, como Ceará, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Paraná, vêm fazendo tentativas de introduzir a remuneração por desempenho. Mas, além de forte resistência dos professores, as experiências nacionais – que vêm mudando muito desde sua implantação – não atestam de forma definitiva a eficiência da solução, como mostra o estudo "O futuro das políticas de responsabilização educacional no Brasil", de Nigel Brooke, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).


Migração

A idéia de criar prêmios em função do desempenho, distinguindo aqueles que têm melhor performance em relação aos outros membros da corporação, ganhou fôlego no mundo do trabalho a partir dos anos 1980, sobretudo nos Estados Unidos, quando se passou a focar o aumento de produtividade alcançada por meio de instrumentos de gestão. Entre eles, a medição de índices, construídos a partir de critérios objetivos.

No âmbito da educação, a responsabilização associada a premiações apareceu já na década de 1980, na Inglaterra, e tornou-se mais relevante a partir dos anos 1990, quando vários Estados americanos adotaram o sistema de merit pay (pagamento por mérito, à época oferecido individualmente). Na mesma década, países latino-americanos como Bolívia, México e Chile começaram a realizar experiências nessa direção. O fenômeno não está circunscrito ao continente. Vários países asiáticos, africanos e europeus também adotaram o modelo. Outros, como a França do presidente Nicolas Sarkozy, preparam medidas nesse sentido. Em paralelo, foram instituídas as réguas de avaliação de habilidades e competências dos estudantes, com avaliações locais, nacionais e globais, tais como o próprio Saresp, o Saeb, a Prova Brasil e o Pisa, teste internacional feito pelos países-membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).

Nessas quase duas décadas, muitos fatores foram testados e não resistiram à prática, gerando adaptações, que, no geral, têm melhorado os modelos. Mas, se os instrumentos diagnósticos são cada vez mais vistos como necessários, persistem controvérsias acerca de sua utilização casada com a remuneração por desempenho, sobretudo no plano ideológico.

Para Luiz Carlos de Freitas, professor da Faculdade de Educação da Universidade de Campinas (Unicamp), o maior problema em relação à utilização do Saresp é o tipo de apropriação desse instrumento. "Os liberais acham que se você premiar, as coisas melhoram na escola. É a típica análise univariada, do tipo causa-efeito. Entretanto, o fenômeno educacional é multivariado, com muitas variáveis de entrada e saída. Isso não quer dizer que o estímulo, o prêmio, não funcione. Mas pode trazer problemas adicionais, como fraudes, desmotivação do professor face ao montante do prêmio, seguida de desresponsabilização", analisa.

Segundo o professor, que coordena o grupo de estudos "Qualidade e eqüidade no ensino fundamental brasileiro", as medidas de premiação são de curta duração e têm efeito restrito. "Os professores desenvolvem anticorpos com relação a elas e encontram saídas que não significam, de fato, melhoria para os alunos", diz Freitas. 


Carlos Ramiro, da Apeoesp, rejeita a idéia da premiação: "O que precisamos é de um plano de carreira"

Para a secretária de Educação paulista e ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Educativas Anísio Teixeira (Inep), Maria Helena Guimarães de Castro, sua proposta está assentada em evidências empíricas coletadas em outros países e as críticas de Freitas são "ideológicas". Além disso, ressalta ela, a remuneração por mérito é apenas um instrumento em meio a um conjunto de medidas (veja entrevista na página 38).

Outro experimentado analista, Juan Casassus, principal especialista em educação da Unesco para a América Latina e para o Caribe, defende que o fato de fazer avaliações externas e anuais tende a gerar distorções no processo escolar para alunos e docentes. No dossiê "Avaliação da Qualidade" (Evaluación de la Calidad, Anales de la educación común, Governo da Província de Buenos Aires, 2007), o autor de A Escola e a Desigualdade (2002) escreve: "A avaliação ligada à aprendizagem só pode ser interna e vinculada com o processo de ensino. Por isso, só pode ser realizada pelos professores. (…) Para que isso ocorra, esse deveria ser um aspecto central da formação docente".


Para Mario Ghio, da Avalia, liderança e mérito são as chaves para a melhoria da qualidade

Romualdo Portela, professor da Faculdade de Educação da USP, acrescenta outros dois elementos à discussão da remuneração por mérito, tema que considera controverso e importante. O primeiro deles é que os testes em larga escala têm estreita ligação com o nível socioeconômico dos estudantes que o fazem. "O tipo de alunado influi muito. Se for considerado apenas o desempenho dos alunos, sem levar em conta o nível socioeconômico do conjunto da escola, você reforça a desigualdade já existente. No Chile, eles tiveram de considerar essa variável a partir de 2004", alerta.

O outro ponto são os moldes de implantação da nova política. "Um mecanismo interessante é trabalhar a combinação das avaliações com pactos no interior da escola, dando autonomia ao projeto pedagógico. Depois, a escola será cobrada pelo que ela se propôs a fazer, e isso pode ser comparado à testagem externa", sugere Portela.

Esse olhar contrasta com aquele defendido pela Secretaria de Educação paulista em seu novo projeto, defendido por Mauro de Salles Aguiar, membro do Conselho Estadual de Educação e diretor do Colégio Bandeirantes, privado. "A avaliação só pode funcionar se for o mais objetiva possível, externa, com regras estáveis. A isso deve ser associado um plano de carreira, que promova mais rápido aqueles que trabalham em áreas de maior vulnerabilidade, por exemplo, como acontece na diplomacia", defende. Para Aguiar, há uma grande resistência corporativa entre os docentes, que deve ser vencida com controle e pressão da sociedade. "É indispensável ter um esquema de incentivo à qualidade. Há falta de estímulo ao bom professor, que é confundido com aqueles que não estão nem aí com nada", completa.

O curioso é que a própria Apeoesp se diz, em princípio, não contrária à avaliação docente. Mas qualifica a proposta da secretaria como não exclusivamente objetiva. "O Saresp é subjetivo. Tem questões de compatibilidade do professor com a administração, deixa margem para manipulação. A avaliação tem de ser discutida com a própria rede, tem de ser feita pela própria comunidade escolar", diz Carlos Ramiro, presidente da entidade.

Exposição de motivos parecida faz o sindicalista francês Elie Jouen, membro da Internacional da Educação, com sede em Bruxelas. Ao comentar as propostas de Sarkozy, por ocasião da reunião anual da Campanha Global pela Educação, realizada em São Paulo em fevereiro, Jouen concordou com a realização da avaliação, mas discordou de dois pontos. "Somos contrários à avaliação externa. Ela deve seguir os parâmetros da escola, e não de gente de fora. E deve levar em consideração as diferenças socioeconômicas, pois os resultados são muito diferentes entre famílias mais e menos abastadas." Mas Jouen acredita que uma avaliação séria, feita por educadores, pode ajudar a resgatar a credibilidade do ensino público francês, que, segundo ele, sofre ataques ideológicos do setor privado, hoje responsável por cerca de 18% da oferta geral de vagas no país.

Mas, para Ramiro e para a Apeoesp, a questão central da proposta é outra. "Somos contra qualquer tipo de premiação. Somos a favor do salário. Isso deve ser feito como um plano de carreira, em que o professor evolui à medida que se aperfeiçoa. Ninguém assume um compromisso financeiro em função de uma gratificação", diz o sindicalista, que apresentou uma lista de reivindicações à secretaria. Entre elas, a instituição da figura do professor-adjunto, que funcionaria como uma espécie de coringa qualificado para cobrir as faltas dos professores, um dos pontos mais vulneráveis da categoria em relação à opinião pública hoje. 


Avaliação e direito à educação

Na mesma publicação em que Casassus defende a feitura da avaliação no interior da escola, Pedro Ravela, professor da Universidade Católica do Uruguai e ex-diretor do Projeto Técnico de Melhoria da Qualidade da Educação Primária de seu país, diz que o Estado tem o direito e o dever de exercer um controle sobre o sistema educativo, não sendo este um assunto exclusivo de educadores. Para isso, diz ele, o Estado deve pensar, investir e convocar docentes, especialistas e cidadãos para resolver os problemas e desigualdades que a avaliação expõe. E arremata, posicionando-se de forma contrária ao uso desse instrumento para estimular a competição entre escolas ou para instituir a remuneração diferenciada para os docentes em função dos resultados de seus alunos. Esses caminhos "fortalecem a dinâmica de segmentação do sistema educativo. E constituem uma forma pela qual as autoridades se desligam de sua responsabilidade, transferindo-as a escolas e famílias", escreve Ravela.


Luiz Carlos de Freitas, da Unicamp: premiação toma a educação como fenômeno de fator único, quando ela é multivariada

 Um dos consultores do projeto da secretaria paulista, José Francisco Soares, professor da UFMG e especialista em avaliação, usa a idéia da educação como direito do cidadão para legitimar o processo de avaliação de outro ponto de vista. Para ele, trata-se de uma forma simples de aferir se o direito de aprender está ocorrendo ou não. "Quem pensa a escola como uma estrutura democrática tem de ver o aluno, tem de olhar o direito e se ele está sendo atendido. Eu não posso, aceitando o direito, ‘demonizar’ o resultado. Sem o resultado, o direito não está sendo atendido", diz Soares, para quem há muitos professores dedicados que estão insatisfeitos com o atual status da educação pública.

Apesar do enorme "choque cultural" embutido nessa visão do resultado, a proposta paulista foi cuidadosa em alguns pontos que hoje já parecem consensuais com relação a como implantar a política de remuneração por resultados. O primeiro deles é que as metas e resultados sejam coletivos, e não individuais. Pesquisas apontam que a estimulação individual gera sérios problemas no ambiente de trabalho (escolar ou não). Outro ponto do projeto é que as metas não serão estabelecidas em cima de médias globais de cada escola. Os alunos de cada unidade serão distribuídos em quatro níveis – os níveis da classificação do Saresp: abaixo do básico, básico, proficiente e avançado, correspondentes às habilidades e competências distribuídas numa escala de 0 a 500. As metas corresponderão ao avanço desses grupos em direção ao nível imediatamente superior. Ou seja, a questão não é ter uma boa média global, e sim uma boa média de avanço.

Isso, em tese, minimiza um problema recorrente em sistemas similares de outros países: para conseguir as premiações, professores ou escolas "escondiam" os alunos de pior desempenho na hora das provas, ou provocavam um efeito ainda mais perverso, a sua exclusão. Também por isso, os indicadores de fluxo acompanham as notas da avaliação.

Outra questão, apontada tanto por Freitas como por Casassus, é que o resultado de medições como o Saresp traz sempre a fotografia de um momento do processo de aprendizagem que já passou. Por isso, justificam os estudiosos, a avaliação feita no dia-a-dia da escola tem maior relevância para o acompanhamento do aluno. Nesse ponto, o projeto paulista busca um híbrido entre essas metodologias. Usará os resultados do Saresp para estabelecer metas e objetivos pedagógicos, e avaliações no interior da escola, acompanhadas de reforços e recuperações ao longo do ano, a fim de checar os resultados e a efetividade do processo.


Gestão

Mario Ghio, diretor da Avalia As­­ses­soria Educacional, empresa de avaliação institucional, lembra que é preciso ter um modelo de gestão que acompanhe o plano de metas, pois o trabalho do professor é, em grande parte, reflexo do que faz o gestor.


Romualdo Portela: atenção ao nível socioeconômico das escolas para não perpetuar disparidades

"É preciso ter um modelo multiplicável em nível nacional. Liderança e mérito são as chaves da melhoria da educação. O mais difícil é romper a resistência corporativa em relação à questão do mérito", opina.

Ao analisar, no já citado dossiê publicado pelo Governo da Província de Buenos Aires, a questão dos aspectos-chave da avaliação como instrumento para a melhoria da qualidade da educação, Margarita Poggi, diretora da sede regional do Instituto Internacional de Planejamento Educacional (IIPE/Unesco-Buenos Aires), vai na mesma direção.

"A avaliação por si própria não produz melhorias. Entre avaliação e melhoria da qualidade não há um vínculo simples, linear. A avaliação é uma condição necessária, mas não suficiente para melhorar a educação. Para que isso ocorra é preciso conceber a avaliação como um elemento mais amplo dentro de um conjunto de ações e políticas educacionais, como apoio a escolas, formação docente, condições institucionais e melhora da gestão, entre outras", escreve Poggi.

Luiz Carlos de Freitas lembra um aspecto que talvez soe como incômodo aos professores, mas que não se pode perder de vista quando se associa o debate da qualidade da educação com o pleito de um plano de carreira para a categoria. Para ele, a carreira é fundamental, mas não deve ser tratada como um mecanismo de promoção, e sim como um instrumento de gestão. Ela deve ser elaborada a partir dos objetivos institucionais. Deve levar em conta a remuneração e as promoções, mas não pode ser apenas um mecanismo de elevação de salários. E não deve haver o que chama de "gatilho-qualificação". Ou seja, "qualificou, ganhou".

"A questão relevante é como a qualificação afetou a qualidade da atuação do professor e da escola, medida na sua repercussão na formação do aluno. O aluno é ponto de referência. Temos de lembrar que a escola existe para o aluno, e não para o professor. Portanto, acho que, em vez de ficarmos tentando premiar professores, deveríamos ter um sistema de avaliação do professor – amplo, incluindo condições de trabalho – associado a uma carreira digna", conclui.

Autor

Rubem Barros


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