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Em discussão, a onipotência do “x”

Exames tradicionais vêm sendo substituídos por provas orais, dinâmicas e avaliações que medem competências extracurriculares. O objetivo é selecionar candidatos mais preparados – e não só do ponto de vista técnico

Publicado em 17/02/2017

por Redação Ensino Superior

Destaque

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por Marleine Cohen

Uma estrutura suficientemente engenhosa para proteger um ovo cru ao ser arremessado por uma catapulta. Esse é o desafio que Bruno Vianna Bitelli e seu grupo enfrentaram durante 75 minutos na segunda fase do processo seletivo do curso de engenharia mecatrônica do Insper. Recém-saído de outra importante escola de tecnologia, onde apenas cursou um ano, Bitelli confessa que “estava disputando o vestibular às cegas”. Acostumado a se submeter a testes de múltipla escolha, qual não foi sua surpresa quando se deparou, logo na primeira fase, com o tema proposto para a redação: Explore Marte. “É um assunto que tivemos de desenvolver ali, na hora. Não havia respostas calculadas. Nesse caso, a fórmula do bolo não se aplicava.”

Bem-sucedido tanto na avaliação por escrito, que também incluía 70 questões seletivas, quanto na dinâmica denominada Design Challenge – para a qual ele e os colegas optaram por usar papel-bolha e uma latinha de alumínio de refrigerante para conter o ovo –, Bitelli partiu, então, para a terceira prova: uma dinâmica em grupo. “Sentamos em círculo, mantendo a mesma organização da atividade anterior. A esta altura, já estava me sentindo bastante confortável em relação à minha equipe”, lembra.

Observados pelos avaliadores, os vestibulandos foram orientados a puxar de dentro de um saquinho um tema para debate e mediar a discussão com os seus pares durante cinco minutos, criando regras para o debate. “O tema que caiu para mim foi ‘Olimpíadas’. Expus o assunto durante um minuto; gerei uma polêmica com prós e contras e dei a palavra ao próximo. Consegui envolver todos, contendo quem estava se excedendo e encorajando quem estava retraído, e fechei no prazo. Tudo de improviso”, se orgulha.

Aprovado no processo seletivo que o Insper instituiu para os cursos novos a partir de 2015, Bruno Vianna Bitelli agora faz parte do seleto grupo de futuros engenheiros “que não vão virar calculadoras”. “Nossa formação será mais universal – e o vestibular refletiu isso imediatamente”, argumenta.

Mais que isso, as provas propostas pelo Insper incorporaram, segundo Tadeu da Ponte, coordenador executivo de processos seletivos, as novas demandas do mercado de trabalho: “O mundo de hoje não é o mesmo de 30 anos atrás. Conhecimento não basta; é preciso ser capaz de aplicá-lo para resolver problemas. E isso requer habilidades que são justamente avaliadas durante os nossos testes: comunicação assertiva, pensamento crítico e capacidade de liderança e mediação. O que precisamos medir é esse potencial do aluno.”

Com planos de estender as avaliações em grupo para os demais cursos da escola, o coordenador da instituição reconhece ser esta uma tendência em todo o mundo: “À exceção dos concursos públicos, todas as universidades estão levando em conta mais que o conhecimento formal, instituindo entrevistas e dinâmicas”, analisa.

Tadeu da Ponte também explicou que o Insper se baseou no processo seletivo inovador da universidade norte-americana Franklin W. Olin College of Engineering, de Massachusetts, com a qual tem convênio, para criar o seu. Fundada em 1997 com o objetivo explícito de formar engenheiros de maneira disruptiva, a Franklin W. Olin é reconhecida por focar essencialmente competências individuais voltadas para a inovação, o empreendedorismo e a solução de problemas do mundo contemporâneo.

Experts em “x”
Decorar números – sejam eles leis, datas ou alternativas nas provas de múltipla escolha – também não é relevante no mundo do direito, ao menos para a Fundação Getúlio Vargas (FGV). “Já entramos no mercado universitário, em 2005, com um vestibular totalmente diferenciado. Não temos provas-teste. Aplicamos avaliações orais e em grupo e propomos textos dissertativos sobre questões contemporâneas – todas relacionadas com o que se vai estudar no curso”, informa o professor Roberto Dias, coordenador de graduação da FGV Direito SP. Durante esse processo, o que se checa, segundo ele, é o quanto o aluno consegue interagir com o seu grupo e desenvolver uma boa expressão verbal.

Para Dias, é chegada a hora de as instituições brasileiras abandonarem “exigências irrelevantes, em benefício do que, de fato, faz a diferença”: “Não tem sentido apreciar os conhecimentos em matemática de um aluno que quer ser advogado”, exemplifica. “Até porque, com o tempo e a prática, muitos deles se tornam hábeis em provas de múltipla escolha por exclusão de alternativas, e isso não nos permite apreciar o que realmente importa.”

E o que é efetivamente relevante, mais que o conhecimento formal, pontua o coordenador da FGV, é demonstrar competências para interpretar dados e raciocinar com lógica; é articular conteúdos e se conectar com a realidade; é ter boa argumentação e comunicar ideias de forma organizada. Habilidades essas para as quais o Google e outros buscadores de informações on-line não dão acesso, na opinião dele.

Para Daniel Antonucci, mestre em Educação, CEO e co-fundador da CRM Educacional, empresa especializada em CRM (Customer Relationship Management) para instituições de ensino, o que está por trás da reformulação dos processos seletivos no ensino superior, além das exigências do mercado e da sociedade contemporânea, é uma conjunção de fatores: “No final dos anos 90 e início da década passada, faltavam vagas e as escolas competiam entre si pelos melhores alunos. A conduta das IES era, então, de filtrar e selecionar ao máximo o nível dos vestibulandos. Hoje, vivemos uma situação totalmente inversa. Faltam candidatos e sobram vagas”.

Nova realidade
De fato, com a abertura de novas instituições e a consolidação do Ensino a Distância (EAD) – que absorve, segundo Antonucci, cerca de 20% do número de matrículas no ensino superior –, mais o fôlego adquirido pelo Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) a partir de 1998, a aderência do ProUni (Programa Universidade para Todos) e as facilidades oferecidas pelo Fies (Fundo de Financiamento Estudantil) entre 2010 e 2014, o cenário educacional mudou no Brasil.

Mas ainda assim, em 2012, a taxa de ociosidade de vagas no ensino superior privado alcançava um pico de 45%, segundo o Censo da Educação Superior. Em outras palavras, para cada aluno matriculado, havia praticamente uma cadeira vazia ao lado. Além disso, a taxa de evasão chegava a quase 18% nas instituições privadas. Três anos mais tarde, de acordo com o mesmo levantamento, 5,6 milhões de assentos em sala de aula permaneciam ociosos – apenas 42,1% dos 6,1milhões de novas cadeiras oferecidas e 13,5% dos 2,3 milhões de vagas remanescentes foram preenchidas em 2015 – o que caracteriza um cenário pouco favorável à sustentabilidade das IES, ao longo da década.

Hoje, entrar em faculdade é algo relativamente corriqueiro. “Cursar o ensino superior deixou de ser um diferencial e passou a ser uma obrigação para quem quer evoluir na carreira ou até mesmo entrar no mercado de trabalho”, explica Antonucci.

Critérios de excelência
Diante das peculiaridades do mercado, a FIA (Fundação Instituto de Administração) resolveu investir numa parceria de qualidade e aceitar, a partir de março de 2016, dois diplomas internacionais – o Abitur, expedido pelo governo alemão, e o International Baccalaureat, concedido por algumas escolas europeias – para validação do processo seletivo de alunos egressos do ensino médio no Brasil. Com isso, quem estudou em escolas como Saint Paul’s School, Miguel de Cervantes, Pueri Domus, Colégio Visconde de Porto Seguro, Beit Yaacov ou Graded School e apresenta a pontuação necessária, tem diretamente acesso ao curso de graduação da FIA, depois de se submeter a uma bateria de avaliações orais qualitativas.

Outra conduta adotada pela escola é apreciar, caso a caso, o histórico de cada aluno – a exemplo do que fez com Leonardo Sanchez, cujo curso de International Business na University of Missouri-St. Louis (UMSL), EUA, que abandonou depois de dois anos e meio, foi reconhecido no Brasil.

“A FIA tem um jeito diferente de selecionar alunos: eles aproveitaram o meu histórico escolar e eu entrei no primeiro ano com as matérias já feitas abonadas”, explica. Para tanto, Sanchez ainda teve de fazer uma prova de múltipla escolha, passar por entrevista e mostrar carta de apresentação de antigos professores. Na opinião dele, essa flexibilidade é positiva tanto para a instituição de ensino como para os alunos: “Para uma faculdade funcionar bem, não basta que tenha bons professores. Os estudantes também desempenham um papel importante para esse sucesso: eles devem espelhar seu perfil e sua filosofia”, argumenta Sanchez.

De acordo com James Wright, coordenador da FIA, as escolas estrangeiras têm tradição em desenvolver o espírito crítico dos alunos e preocupação com questões sociais contemporâneas, daí a adoção do novo método de triagem. “Assim como nós, eles enfatizam a fluência em outros idiomas, o voluntariado e a participação em projetos sociais”, acrescenta.

Adotar certificações europeias também espelha, segundo Wright, a visão do papel da FIA no campo educacional: “Acreditamos que o vestibular deveria ser substituído por mecanismos de seleção menos massificantes, que permitissem às escolas moldar turmas compatíveis com os seus anseios”, afirma. “Os nossos são de formar administradores com um background humanista e uma consciência real da sua função na sociedade, engajados com a responsabilidade social e a sustentabilidade, e não só com o lucro.”

E para que não se pense que a FIA compôs com outras escolas de reputação um casulo de educação superior elitista, James Wright ainda esclarece que a escola reverteu o acesso exclusivo de alunos vindos de instituições internacionais caras, aderindo a um programa especialmente destinado a jovens de baixa renda: “De cada dez vagas, duas são para bolsistas que integram salas de aula mescladas, onde se estudam explicitamente os desafios do Brasil, como a seca no Nordeste”, argumenta.

Profissionais humanos
Criada em 2015, a Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein nasceu com o objetivo de praticar valores compatíveis com as necessidades do mundo atual: formar médicos sensíveis e solidários com os seus pacientes, que sabem ouvi-los e conversar com eles e têm uma participação responsável no sistema de saúde.

Sendo assim, nada mais compreensível que seu vestibular pretendesse aferir aspectos socioemocionais dos seus candidatos, bem como a capacidade de trabalhar em equipe, a habilidade de se comunicar e a resposta a dilemas éticos.

Para fazer essa triagem, depois de uma primeira fase de avaliação conteudista, em torno da qual se alternam testes de múltipla escolha, questões discursivas e redação, os candidatos são convidados a participar de uma bateria de múltiplas minientrevistas – oito, ao todo. “Enquanto na primeira fase do vestibular, contavam-se, em 2016, 10.770 candidatos para 50 vagas (ou 125 pretendentes para uma vaga), na segunda etapa – quando aplicamos dinâmicas diferenciadas –, partimos para selecionar 250 futuros médicos, numa proporção de cinco candidatos para uma vaga”, explica o Alexandre Holthansen, diretor acadêmico da graduação em medicina do Albert Einstein.

A empreitada, todavia, não é para corações fracos: cada aluno passa por oito entrevistas consecutivas, com duração de oito minutos – dois para assistir ou ler um vídeo, uma charge, um post ou uma notícia; dois para processar a resposta e quatro para responder às perguntas formuladas por uma “ilha de avaliadores” devidamente treinados, composta por 64 médicos e não médicos.
Todo mundo faz as provas ao mesmo tempo, sendo que o avaliador tem um gabarito de 1 a 7 para aferir três perguntas genéricas e uma específica. Segundo Holthansen, elas permitem colocar em evidência habilidades como a resiliência, a empatia e a maturidade emocional, facilitando a tarefa dos coordenadores e professores do curso: “Identificar pessoas que estejam mais talhadas ao exercício humano da medicina”.

Depois de prestar três vezes o vestibular de medicina na USP e na Unesp, entre outros, e enfrentar longas provas de múltipla escolha, Bárbara Said conseguiu finalmente entrar na Faculdade Albert Einstein e logo entendeu a proposta do curso. “As pessoas pensam que a medicina é só conhecimento. É o que as faculdades tradicionais valorizam. No Einstein, o objetivo é incutir no aluno que ele tem de aprender a lidar com pessoas da forma mais humana possível. Ou seja, não basta oferecer um bom tratamento, temos de saber conversar com o paciente”.

Para alcançar essa meta, desenvolveu-se uma metodologia de ensino baseada em equipes – conhecida como TBL (Team Based Learning) – e optou-se por uma formação interdisciplinar, generalista e crítica, apoiada em cinco eixos temáticos: o eixo técnico-humanístico, o eixo técnico-científico, o eixo saúde pública, o eixo gestão e liderança e o eixo conhecimento médico.
Essa grade curricular ajuda os professores a mostrar aos seus alunos que a atividade médica é ampla e ultrapassa os limites do conhecimento técnico. Assim, ele deve ser capaz de exercer influência em círculos amplos e diversos da sociedade, trabalhar harmonicamente em equipe, aproveitar opiniões de profissionais de diferentes áreas, fazer uso racional de recursos, planejar e fomentar o aprimoramento continuado de seu habitat e contribuir para o desenvolvimento técnico, humano e social, explica Holthansen.

Muito ciente do seu papel profissional com apenas um semestre de formação, embora ainda indecisa em relação à escolha do seu futuro campo de atuação, se pediatria, cardiologia ou oncologia, Bárbara sabe que em qualquer um deles “será preciso desenvolver, ao lado da lógica e do cartesianismo, uma boa dose de intuição para medicar corretamente”.

“O modelo de ensino humanizado ficou muito claro e todos os meus colegas têm essa preocupação: o médico não precisa se portar de maneira arrogante, como se fosse superior. A medicina é feita com amor, não com ganância”, pondera.

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Redação Ensino Superior


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