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Formação Docente

Em meio ao fogo

Programa que introduz a figura do professor mediador de conflitos sinaliza para ação além do espaço escolar

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Jareta





Nos corredores e salas de aula da Escola Estadual Doutor Murtinho Nobre, no Ipiranga, zona sul de São Paulo, a professora Cristina Inês Saliba Calasso se esforça para deixar de ser chamada de “tia do bullying “. Na função de professora mediadora desde junho de 2010, cabe a ela identificar e buscar maneiras de diminuir, em conjunto com alunos, professores, funcionários, família e comunidade, os casos de violência, indisciplina, danos ao patrimônio, racismo, uso de álcool e drogas e, claro, bullying no ambiente escolar. Ou seja, as atribuições são muito maiores do que o epíteto da professora leva a crer. “Escuto muito o aluno, medeio os conflitos, procuro trazer as famílias para dentro da escola. Ano passado trabalhamos muito com o bullying , então ficou esse apelido”, conta.

Antes de assumir a função de mediadora, Cristina dava aulas de língua portuguesa, mas já atuava desde 2006 com a justiça restaurativa de maneira voluntária. Surgido nos anos 70 como alternativa à justiça retributiva, esse modelo propõe a resolução de conflitos entre os envolvidos num evento: vítimas, agressores e outros que façam parte do mesmo ambiente.  Agora, a professora acredita que a compreensão dos outros professores a respeito do seu papel e a “carta branca” que recebeu da diretoria estão ajudando a “mudar a cara da escola”. Assim como previsto na criação do sistema de proteção escolar, o primeiro passo foi fazer um diagnóstico sobre a situação da escola e encontrar os pontos de vulnerabilidade. “O índice de conflitos era muito alto. Percebi que o aluno não se identificava com a escola”, lembra. A partir daí, o trabalho começou a se concentrar na tentativa de fortalecer os laços do aluno com a instituição e despertar neles a importância de estar naquele ambiente, assim como de aumentar a participação das famílias. Paralelamente, Cristina está formando uma rede de parcerias no entorno da escola com comerciantes, igrejas e uma unidade do Senac. “De forma alguma é um trabalho isolado”, diz.

Cristina é uma dos cerca de 1,8 mil professores mediadores (ou, segundo a denominação oficial, “Professor Mediador Escolar e Comunitário”) da rede estadual paulista, função instituída como parte do Sistema de Proteção Escolar, criado com o objetivo expresso de combater a violência no ambiente estudantil. Em 2010, 1,2 mil professores mediadores começaram a atuar em mil escolas da rede. Até o final deste ano, a Secretaria de Estado da Educação planeja contar com 2,1 mil professores em 1,9 mil escolas – as escolas de grande porte podem ter dois professores na função.

A inclusão de professores mediadores no dia a dia das escolas paulistas aponta para um entendimento cada vez maior de que o foco na repressão ao aluno indisciplinado não é capaz de resolver de maneira efetiva os problemas de violência em ambiente escolar. “Os programas mais adequados são aqueles que visam a convivência, e não a violência”, aponta Marilena Ristum, pesquisadora do tema na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Para ela, ao abordar a convivência entre alunos, funcionários e professores, a escola passa a trabalhar de maneira preventiva. Isso significa, por exemplo, a participação efetiva de pais e alunos na elaboração do projeto político-pedagógico. “Apenas dar ciência aos pais não é uma gestão democrática. No meu ponto de vista, é preferível haver menos regras, mas construídas em conjunto com os alunos, do que uma lista enorme que vem da cabeça dos professores e não faz sentido para os alunos”, diz.

Marilda da Silva, do departamento de Didática e da pós-graduação da Unesp de Araraquara, concorda que deve haver uma mudança no alvo das políticas de combate à violência. “O mediador também deve levar em conta que o professor precisa melhorar sua conduta.” Ela é responsável por um projeto de pesquisa que procura identificar os casos de violência – física e simbólica – dos professores em relação aos alunos. “É um equívoco dizer que hoje se ‘passa a mão’ na cabeça dos alunos. A violência em sala de aula não ocorre só porque o aluno quis, e é preciso entender esse fenômeno”, declara.

Laços mais fortes
Pouco mais de um ano após o início do programa paulista, a Secretaria de Educação ainda não tem indicadores sobre a efetividade do professor mediador, mas a supervisora do programa, Beatriz Graeff, afirma que a iniciativa encontrou boa receptividade na rede. “O professor mediador atende a uma demanda muito presente. A avaliação que fizemos junto às escolas mostra que 81% delas disseram perceber melhoria no ambiente”, afirma. Embora as primeiras escolas a receber os mediadores sejam aquelas com maior grau de vulnerabilidade, a meta é atingir todas as escolas estaduais em quatro anos.

Esse grau de vulnerabilidade independe de localização ou tamanho da unidade escolar. “Em escolas da área central de São Paulo, por exemplo, os pais estão mais distantes, os vizinhos não são residenciais, ou seja, os laços são mais fracos”, diz Beatriz. No dia a dia da escola, cabe ao mediador uma ação eminentemente preventiva: envolver professores no mesmo propósito de estar aberto a entender os sinais que as crianças e adolescentes emitem. Atitudes violentas de um aluno, por exemplo, podem ser indício de violência doméstica.

A presença do professor mediador na EE Alberto Torres, no Butantã, zona oeste de São Paulo, é apontada como uma das razões que reverteram o fechamento quase certo da unidade. Com demanda muito baixa e problemas constantes de indisciplina, a escola localizada próxima à Universidade de São Paulo (USP) e vizinha de uma favela não tinha mais do que 200 estudantes há menos de dois anos.
“Os pais começaram a tirar os alunos, só ficaram os mais problemáticos. O clima de enfrentamento e a ameaça era constante, os professores tinham pneu de carro furado”, lembra a mediadora Nailza Veiga, professora de geografia da rede pública há 24 anos. Ao assumir a nova função, passou a ouvir os alunos, procurou se aproximar das famílias e deu início a atividades simples dentro da escola, como decorar as salas e cultivar um jardim. “Eles passaram a se ver como amigos fora da sala de aula, envolvidos em uma mesma atividade”, conta.

Com tempo disponível e habilidade para ouvir, Nailza acredita que o mediador ocupa um espaço vazio na estrutura escolar: se por um lado a direção e os professores não têm tempo para dialogar com os alunos, por outro os inspetores de alunos são vistos como os que “dão bronca”, numa atitude mais repressiva do que preventiva. “O aluno começa a enxergar o mediador como uma referência. Mesmo no início do trabalho, o que mais senti era o professor que achava que eu era mais uma para repreender, suspender, mas não é esse o nosso papel”, diz. Atualmente, o número de matrículas e de salas de aula na Alberto Torres dobrou, e os planos de fechar as portas foram esquecidos por enquanto.

Atenção a distorções
Na prática, para atuar como professor mediador, o docente selecionado precisa passar por um curso, que pode resultar em atividades dentro da escola, e 80 horas de atividades semipresenciais. Segundo Beatriz Graeff, o papel dos professores mediadores assume características diferentes de acordo com o perfil da escola. Em algumas pode estar mais voltado para os conflitos entre alunos e em outras ter atenção maior aos pais ou aos professores. O desejável, de todo modo, é que o mediador não seja identificado com medidas punitivas ou repressivas, mas como uma referência para a solução de conflitos. Ainda segundo Beatriz, o mediador não deve ser um “tapa-buraco” para professores ausentes, embora nada impeça que assuma uma sala em determinadas ocasiões para alguma atividade específica. “Cabe ao supervisor avaliar se não está havendo distorções”, afirma.

Na opinião da socióloga Helena Singer, diretora pedagógica da Cidade Escola Aprendiz, a presença do professor mediador pode ser fundamental para aproximar a escola da comunidade. “Hoje a escola é muito fechada para questões culturais e sociais da comunidade do entorno. Mesmo para uma atividade interdisciplinar no bairro, há muita dificuldade para autorizar a saída dos alunos”, observa. Essa posição fechada se estende à relação da escola com os pais, de acordo com a socióloga. “Quando o pai ou a mãe vai à escola, geralmente é só sob a perspectiva de que o filho é um problema”, diz.

Para Helena, no entanto, é preciso preparar melhor o professor que vai assumir essa função, afinal o mediador precisa ser um profissional qualificado não só em relação à disposição para o diálogo, mas também alguém que seja capaz de articular parcerias e oportunidades para a escola. Hoje, as críticas ao projeto apontam para a capacitação inadequada, ou seja, o sucesso do mediador acaba dependendo mais de suas habilidades pessoais do que da preparação pela qual passou. “Um dos aspectos mais importantes da mediação é saber formar uma rede de atendimento para a criança e o adolescente. Fazer com que o posto de saúde, a assistente social, a psicóloga, o conselho tutelar conversem com a escola”, afirma. Além disso, esse profissional deve ser capaz de desenvolver nos alunos e professores a capacidade de mediar conflitos. “Essa tarefa não deve se concentrar apenas em uma pessoa dentro da escola, de maneira que os outros ‘lavem as mãos’ para os problemas”, diz.

Na opinião de Marilda da Silva, da Unesp, cuidar da formação desses mediadores é fundamental para evitar que se repitam os mesmos erros que originaram o ambiente violento dentro da escola. “Em grande parte, a violência ocorre por falta de preparo. Falta formação adequada aos professores, falta fundamentação cultural e sociológica”, diz. Casos de racismo, preconceito e homofobia no ambiente escolar muitas vezes são perpetrados pelos próprios professores, especialmente em regiões mais pobres. “Quando um docente diz que o aluno é incapaz de aprender porque a mãe usa drogas ou o pai está na cadeia, comete uma violência simbólica. Se o mediador carregar os mesmos preconceitos, não será capaz de mediar nada”, conclui.

Qualificação e interlocução
Para a presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp), Maria Izabel Azevedo Noronha, o mediador não pode ser visto como o único responsável por solucionar os problema da escola. “Ele não pode ser o ‘xerifão’ lá dentro, o trabalho deve ser coletivo e envolver corpo docente e discente”, afirma. Na opinião dela, para assumir o papel de mediação o professor precisa ter legitimidade perante os colegas e um histórico de atuação comunitária. “O ideal seria que ele fosse eleito pela comunidade escolar, porque o bom mediador não é necessariamente o melhor em sala de aula, mas sim um bom articulador”, diz. Quando o programa foi criado, em 2010, Maria Izabel lembra que a função de professor mediador poderia ser encarada até como um “castigo” para docentes em funções administrativas – apenas a última resolução modificou o processo de escolha.

De qualquer maneira, é indubitável que se trata de uma função que exige qualificação específica, interlocução e apoio da secretaria, além da oportunidade de os diversos mediadores trocarem experiências entre si.

Autor

Gabriel Jareta


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