Cursos de medicina enfrentam o desafio de reduzir a tendência à hiperespecialização e introduzir os alunos à prática desde o início da graduação. CFM questiona qualidade dos novos profissionais
Em nome da atenção básica

Unidade do Programa de Saúde da Família de Parada Angélica, no município de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense>/font>
por Flávia Siqueira
Um levantamento da consultoria Bloomberg em 2013 feito em 48 países põe o Brasil em último lugar quanto à eficiência dos sistemas de saúde – ou seja, pagamos caro por um atendimento público de baixa qualidade. Como avançar? O atual governo aposta suas fichas no Programa Mais Médicos. De acordo com o MEC, com a política de editais para abertura de cursos de medicina, todas as regiões do país terão pelo menos 1,34 vaga por 10 mil habitantes até 2017 – taxa próxima à da maioria dos países com sistemas de saúde públicos e universais.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) diz que as ações do governo são pautadas muito mais pela quantidade do que pela qualidade. Em nota, Carlos Vital, presidente do CFM, chamou a expansão de cursos promovida pelo governo de “interferência autoritária nos processos de ensino e formação”, prevendo um “ciclo vicioso”: “alunos mal preparados serão médicos e educadores com pouca formação e limitações inaceitáveis”.
O MEC argumenta que o aumento de vagas não é contraditório com a garantia de qualidade. “A seleção de municípios que receberão os novos cursos é feita com base em critérios que combinam a necessidade social (proporção de vagas e médicos por habitante, tamanho da população atendida e distância de outro curso de medicina) e as condições de oferta do curso (critérios referentes à estrutura da rede de saúde local)”, diz nota da assessoria de imprensa da pasta.
O ministério também afirma estar aperfeiçoando os mecanismos de avaliação. A previsão é que todos os cursos de medicina do país sejam avaliados in loco a partir do 2º semestre de 2016. Além disso, todos os estudantes deverão ser avaliados no 2º, no 4º e no 6º ano do curso.
Outro ponto polêmico é se a abertura de cursos no interior do país vai contribuir para fixar médicos nessas regiões. Para o presidente do CFM, trata-se de uma “falácia populista e demagógica”. Segundo o MEC, a experiência é baseada em estudos internacionais e em iniciativas de países como Canadá e Austrália. “A expectativa é de que o ingresso de estudantes da própria região do curso represente até 30% do total, fator relevante de fixação dos egressos nessas localidades”, afirma a assessoria do ministério.
Para Laura Camargo Feuerwerker, professora do Departamento de Prática de Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, é importante existir uma ação regulatória para a abertura de cursos de medicina, mas não podemos esperar que o edital sozinho traga uma solução para a falta de médicos. “São necessárias várias ações combinadas”, afirma a professora. Uma das possibilidades é oferecer, além de bolsas de estudo, cotas regionais para o acesso aos cursos: reservar parte das vagas para estudantes que sejam da região. É o chamado Argumento de Inclusão Regional, implantado, por exemplo, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Boa parte da discussão atual em torno da formação profissional e do exercício da medicina não é exclusiva do Brasil. Uma das questões mais debatidas é como incentivar mais profissionais a atuarem na atenção básica, num cenário em que a hiperespecialização se tornou tão atrativa – principalmente devido à alta remuneração. As Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, publicadas em 2014, enfatizam a necessidade de a graduação se voltar à formação do médico generalista, com foco no atendimento às famílias e comunidades.
Laura Feuerwerker diz que é preciso evitar a fragmentação do currículo na graduação e propõe uma “mudança de mão” na forma como os estudantes têm contato com conteúdos de especializações: em vez de simplesmente receberem o conteúdo préselecionado por um professor especialista, partir de casos e dificuldades encontrados na atenção básica para, então, verificar como o conhecimento especializado pode ajudar.
Nesse sentido, Julio Cesar Monte, coordenador do curso de medicina recém-criado pela Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, aponta uma vantagem das novas graduações: a possibilidade de estruturar um currículo “do zero”.
Vivências
Todos os entrevistados destacam a importância de os estudantes terem contato com pacientes e casos reais desde o início da graduação. “Na área de saúde, as experiências são muito marcantes para o aprendizado. É preciso que o aluno vivencie e, então, que discuta, elabore e pense a respeito. A vivência deve ser o centro do processo de aprendizagem”, afirma Laura. E, dentro do universo da prática, há formas de tornar uma vivência ainda mais significativa. O estudante poderá trabalhar melhor vínculo e empatia, por exemplo, se acompanhar o pré-natal completo de uma mulher – em vez de ter contato com grupos “genéricos” de pacientes em cada estágio da gestação.
Por fim, Laura aponta que ainda serão necessários ajustes nas políticas e nos editais do MEC e do Ministério da Saúde. “Estamos começando. Esse é ainda um processo em construção”, diz a professora. “Acredito que será possível reduzir o desequilíbrio, mas essa é uma questão de longo prazo. As próximas gerações é que sentirão algum efeito.”