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Enem: rumo certo?

Edição 2008 do Exame Nacional do Ensino Médio não encontrou em suas questões o equilíbrio entre o local e o universal, de forma a valorizar a cultura escolar

Publicado em 10/09/2011

por Rodrigo Travitzki

Elaborar a prova do Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, é tarefa nada trivial. Deve-se contemplar não só as muitas realidades de nosso país continental, mas também objetivos não necessariamente harmônicos entre si. O exame tem como função medir o conhecimento significativo dos jovens e, ao mesmo tempo, representar certos valores educacionais. Esses dois objetivos podem criar dilemas familiares para o professor que elabora sua avaliação com calma. Afinal, embora busque representar um conhecimento "universal", este deve estar enraizado em sua realidade local.

"Será que eu pergunto sobre o que eles mais gostaram ou sobre aquela coisa importante que muitos não entenderam bem? Que mensagem essa prova passará para as turmas?"

Cada professor lida com tais dilemas à sua maneira. Mas se pensarmos nessas perguntas para o Brasil, país em que a cultura escolar ainda é restrita a poucos, os dois objetivos são forças que podem levar a caminhos opostos. E, ao que parece, o Enem 2008 não conseguiu encontrar o equilíbrio entre essas forças, pendendo demais para um dos lados. O resultado foi uma prova que, em muitas questões, valorizou mais as culturas midiática e televisiva do que a chamada "cultura escolar".

Bem, se o exame mais importante da Educação Básica avalia conhecimentos que podem ser adquiridos pela televisão, como poderemos tornar nosso país mais escolarizado? É a escola que deve se adaptar ao aluno/professor pouco escolarizado ou é o contrário? Como encontrar equilíbrio entre esses dois extremos?

Numa busca pela internet, vemos os formadores de opinião, em geral, satisfeitos com o Enem 2008. Alguns comentando que estava mais difícil, a maioria concordando que a prova foi cansativa e teve maior número de gráficos e tabelas. Entre as poucas vozes dissonantes, Isabel Capelletti (PUC-SP) disse que a variação das médias ao longo dos anos pode indicar a fragilidade do exame. Enquanto isso, grande parte da mídia se empenha em divulgar estatísticas dos resultados e rankings de estados, cidades, escolas – todos pressupondo utilizar uma boa fonte de informações sobre qualidade de ensino. Fala-se em meritocracia, mas ninguém se dá ao trabalho de conferir os critérios que separam aqueles que (supostamente) têm mérito dos que não têm. Na teoria tudo parece ótimo, mas, e na prática?

Partindo do pressuposto de que o Enem é um importante balizador dos conteúdos escolares e da opinião pública (e, portanto, do mercado), propomos que se faça um contraponto a partir da análise de algumas questões da prova. Sem a dimensão crítica acerca do que se está efetivamente avaliando na prova, corremos o risco de gastar muita energia e obter poucos resultados. Ou de colher frutos indesejados. Porque os resultados da educação demoram a aparecer, não dá para ficar esperando um retorno do tipo "é, de fato toda esta geração está mal-educada: precisamos mudar as políticas educacionais".

Vamos ao ponto. De maneira geral, três tipos de problemas foram identificados: a) enunciados com textos longos, que não caracte­rizam uma situação-problema e estão "descolados" das alternativas – ponto especialmente problemático numa prova longa e cansativa; b) questões exigindo mobilização de conteúdos específicos que não se constituem em conceitos nucleares na organização curricular da Educação Básica; c) questões que estão respondidas no próprio enunciado. Além disso, há o problema mais geral, a valorização excessiva da "cultura televisiva", que corre paralela à desvalorização da cultura escolar. Vejamos alguns exemplos, tomando a prova amarela como base para o número das questões.


Textos longos sem situação-problema

Questão 11: Esta questão lembra frase de um professor, proferida em reunião pós-Enem: "Se um aluno me disser que foi bem no Enem vou dizer: parabéns pra você, porque eu não tenho nada com isso". Afinal, se o exame avalia a Educação Básica, qual seria a finalidade desta questão? Raciocínio lógico? Bem, não deixa de ser, mas uma forma bem superficial de lógica, convenhamos.

Indo um pouco mais além. Imagine que você é um aluno e está fazendo esta questão no meio de 62 outras, mais uma redação, em 5 horas. O que acharia de ler um texto desse tamanho ensinando as regras do jogo da velha? Imagine agora que você é um professor de, digamos, matemática (relacionada à lógica). Montou seu curso escolhendo cada conteúdo com atenção, sentindo a dor daquilo que não pôde ensinar. Lembra daqueles alunos que preferiam matar aula para jogar baralho, e então depara com essa questão. Um desagradável pensamento é quase inevitável: "Se neste ano caiu jogo da velha, será que no próximo cairá truco?". É oportuno destacar: quando uma universidade ou empresa escolher aquele que teve um ponto a mais no Enem, ou quando uma revista publicar o ranking das escolas, ninguém lembrará que uma das questões testava a competência de jogar o jogo da velha.


Conteúdos fora do currículo básico


Questão 37: Depois de um confuso parágrafo definindo o conceito de indício (da semiótica de Charles Pierce, 1839-1914), propõe ao aluno utilizá-lo para fazer uma opção visual. Aquele mais esforçado e afeiçoado a questões teóricas perderá algum tempo tentando compreender a definição, e no final isso pouco ajudará. Ou por ser de difícil compreensão, ou porque, pela definição dada, poderíamos escolher a bandeira como indício de nação. Por outro lado, se ele tivesse estudado semiótica, saberia a diferença entre ícone, índice e símbolo, e teria acertado a questão sem problemas. Mas não creio que semiótica seja um conceito nuclear do currículo nacional.

Este é um ponto fundamental. Mas podemos ir além. Imagine o aluno pouco afeiçoado ao estudo aprofundado, à reflexão crítica, que gosta de "pegar os atalhos", as respostas rápidas. Sem muito esforço, poderia focar apenas a frase final, da analogia com a tempestade, esquecendo a definição teórica – como fez tantas vezes na escola. Vai por analogia. Muito bem. Um raciocínio extremamente válido, mas não podemos dizer que essa questão testou a "competência de aplicar conceitos em conflitos cognitivos" ou algo do tipo. E há ainda um outro tipo de aluno: aquele que ficou vendo seriados de detetive nas horas de estudo, leu a palavra "indício" em negrito, lembrou de uma lupa, esqueceu o texto, viu uma pegada, marcou e acertou.

O problema é que tipo de aluno essa questão tende a recompensar? O tipo que queremos, o tal cidadão? Que se esforçou e é capaz de ler além das respostas rápidas? E será que a escola ajudou o aluno a acertar essa questão?


Resposta no enunciado


Questão 40: Esta dispensa grandes comentários. Nada contra o humor, até porque o riso costuma ser sinal de inteligência, mas não há qualquer conflito cognitivo aqui. A questão avalia um aluno ou um leitor de revistas semanais? A qual competência está associada?

As 3 questões acima ilustram bem os problemas encontrados em diversas outras. Na 38, vemos um Debret em preto e branco e, entre alternativas óbvias ou muito específicas, a correta seria "observa-se a composição harmoniosa e destacam-se imagens que representam figuras humanas". Um estudo mais aprofundado de pintura (ou mesmo de Debret) em nada ajudaria o aluno. Quiçá atrapalharia. A completa ausência de conflito cognitivo dá até a impressão de ser uma "pegadinha". De novo: há algum conceito escolar/acadêmico claro para "composição harmoniosa"? Ou a dificuldade seria perceber as "figuras humanas destacadas"?

E, por fim, entre tantas imagens não havia sequer um mapa. Será que nenhum professor de geografia revisou a prova? Ou os mapas perderam a importância?


Teoria e prática


Agora que vimos um pouco do Enem na prática, relembremos o que, em teoria, deveria ser. Segundo documento do MEC de 2002 (grifo nosso), "as situações-problema são estruturadas de tal forma a provocar momentaneamente um "conflito cognitivo" nos participantes que os impulsiona a agir, pois precisam mobilizar conhecimentos anteriormente construídos e reorganizá-los para enfrentar o desafio proposto pela situação". Os elaboradores da prova "consideram todas as possibilidades de interpretação da situação-problema apresentada e organizam as alternativas de resposta para escolha e decisão dos participantes. Essas alternativas pertencem à situação-problema proposta uma vez que, em geral, todas são possíveis, são necessárias, mas apenas uma delas é possível, necessária e condição suficiente para a resolução do problema proposto". E, para terminar, uma bela frase do site: "A base epistemológica do Enem, portanto, tem como principal fundamento o conceito de cidadania, dentro de uma visão pedagógica democrática que preconiza a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico".

Bonito. Mas será que esses princípios estão sendo adequadamente consolidados nas questões da prova? Afinal, que tipo de cidadão queremos? Um leitor de manuais, um telespectador? Alguém que vê apenas a superfície da notícia? O Enem é um símbolo, uma referência. É prudente refletir sobre o tipo de símbolo que estamos enraizando em nossa cultura.

Precisamos cuidar melhor do Enem. Mas, o que isso quer dizer? Para não ficar só na crítica, podemos arriscar alguns caminhos. Em primeiro lugar, investir mais na elaboração das questões para garantir uma coerência mínima entre teoria e prática. Sem tal esforço, o exame não faz sentido. Em segundo, quem sabe não estejamos precisando de algo como um "currículo realmente mínimo" do Brasil? Esse é um assunto controverso. Outro: será que essa desvalorização da cultura escolar não está relacionada à dificuldade da escola em dar significado ao que ensina? Também precisamos pensar em como os resultados devem ser analisados e divulgados – o relatório "pedagógico" do Enem é só um volumoso misto de LDB e PCN com resultados estatísticos anuais.

A discussão sobre o Enem deve ser permanente. O sistema educacional, se não for continuamente repensado pela coletividade, está sujeito a se tornar apenas um amontoado de papéis, prédios e comportamentos estranhos dentro de uma sociedade pouco afeiçoada à escola.



Rodrigo Travitzki é professor do Colégio Equipe, de São Paulo, músico e criador do site sobre educação "Rizomas"


(
http://digao.bio.br/rizomas

)


Agradecimentos aos colegas do Colégio Equipe: Antonio Carlos de Carvalho, Carlos Alberto de Carvalho, Gilberto Mariotti, Lizânias de Souza Lima, Luis Marcio Barbosa e Marlito de Sousa Lima, sem os quais este texto não existiria.

Autor

Rodrigo Travitzki


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