NOTÍCIA

Edição 227

Entre variáveis

Diversos aspectos internos e também externos à gramática explicam por que se usam determinadas construções

 

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Todas as línguas seguem regras. Muitas delas são variáveis, ou seja, há opções concorrentes para a “construção” dos enunciados em diversos domínios. O domínio mais óbvio é o da pronúncia. As gramáticas são claramente normativas em casos como “fluido”/”fluído”, “fortuito”, “ibero”, etc., mas não tomam partido entre as pronúncias cahtax e cartas (para “cartas”), titia e tchitchia (para “titia”), ricifi e recife (para “Recife”).

Outro caso que as gramáticas detalham bastante bem, chamando atenção para a grande variedade, é o da concordância verbal. Ao lado da regra básica (verbo concorda com sujeito em número e pessoa), há numerosas alternativas (silepses, concordância ideológica, casos de inversão com sujeito composto, casos especiais do verbo “ser” etc. etc.). Cunha e Cintra dedicam ao tema dezenas de páginas, e não uma, ou meia… É óbvio que não aceitam concordâncias como nós vai, e a razão é que a forma não ocorre nos textos de escritores, a não ser em itálico, como característica popular ou caipira.

O problema – que é bem grave, gravíssimo, mesmo – é que não se ensina gramática estudando gramáticas, mas lendo manuais didáticos e livrinhos de autoajuda linguística (não erre mais, os 300 erros mais comuns, etc.), que simplificam brutalmente a questão e, especialmente, não oferecem explicações. Nos casos de disputas entre alternativas gramaticais, a história mostra quando e como as regras variaram (quando as formas surgiram), quais formas foram mais valorizadas, etc. E mostra a relevância dos contextos, como é o caso da concordância com sujeito posposto e composto. Dou um exemplo claro: um domínio em que o português preservou os “casos” foi o dos pronomes ditos pessoais: “eu”  é a forma do sujeito, “me”, do objeto direto/indireto, “mim” do indireto (sempre precedido de preposição – “de”, “a”, “para”…). “Ele” é a forma do sujeito, “o”/ “a” do objeto direto, “lhe” do indireto, etc.

A cada dia se observa um número maior de empregos de “eu” / “ele” como objeto direto (“vi ele”, “pega eu”, “beija eu”, “leva eu”, “vi ele na rua”). Esta “tendência” para o emprego cada vez maior dos pronomes retos em todas as funções se observa em outros lugares, como no famoso caso “escolar” “entre mim e ti”, cada vez mais substituído por “entre eu e você”. Uma das razões para que esta última forma tenda a se expandir é a “queda” dos oblíquos na posição de objeto, seu lugar de resistência. Outra é que, com a preposição “entre”, a exigência do pronome oblíquo só se aplica a “eu” e “tu” (ninguém diz “entre mim e lhe” e “entre nos”, mas sim “entre mim (eu) e ele/ela”, “entre nós”. Nunca há manual (nem professor de TV) que trate deste caso. É bem comum ler que “entre” exige pronome oblíquo, mas o exemplo é “entre mim e ele”…

Contexto relevante

O contexto é relevante também para outros casos, como o da regência de certos verbos. “Responder”, por exemplo, segundo as gramáticas, pede um objeto indireto (esta regência não se refere ao conteúdo da resposta, que é um objeto direto = respondeu isso e não aquilo), mas ao destinatário: respondeu ao papa, à pergunta.

Mas se o verbo está em uma oração adjetiva, a preposição frequentemente desaparece. Vejamos dois casos: “São perguntas que não sei responder” (Cony, 86, FSP, 26/2/2013) e “Chegaríamos à enorme lição do Concílio, que os pontificados subsequentes não responderam” (Cândido Mendes, 84, ibidem). Alguns manuais (e professores de TV) ensinam simplesmente que, já que o correto é “responder ao papa”, seria necessário dizer “a que/à qual não sei responder”. E, pela mesma razão, deve-se dizer  “… a que/à qual os pontificados … não responderam”. Observe-se um detalhe: não ocorrem construções como “qual não sei responder / qual os pontificados não responderam”. Ou seja, a queda da proposição só ocorre com “que”, evidência de que os contextos são bem definidos.

Adesão às mudanças

Informei propositalmente a idade dos dois autores das frases acima por uma razão simples: os jovens são os primeiros a aderir às mudanças, acompanhados dos falantes menos escolarizados, ou seguindo-os. É por isso que se diz que é a escola que deve ensinar o português correto. Inversamente, os mais idosos e mais escolarizados são os últimos a aderir às mudanças, mesmo às menos marcadas (são tecnicamente mais conservadores).

O fato de que esta regência ocorra no texto de um jornalista e romancista de 86 anos e no de um sociólogo de 84 (cujo texto é quase arcaico, como o leitor poderia verificar lendo o artigo completo) é um sintoma claro de que a mudança praticamente já ocorreu – pelo menos neste contexto.

Alguém poderia dizer que eles quiseram ser informais. Mas por que o seriam apenas em uma passagem de textos formais, publicados em páginas conservadoras do jornal, como são as colunas e os artigos de opinião?

O dado seguinte é outro caso do mesmo tipo. Seu autor também é um octogenário culto que, além disso, quando tem oportunidade, defende as aulas de sua antiga professora, que, para ele, representam o bom ensino do português. Se até ele escreve “se ouvia” em vez de “se ouviam”, é um atestado de que a chamada passiva sintética é de fato uma balela. Vejam o dado: “O resultado é que, naquela época, se ouvia os foliões cantando o samba…” (Ferreira Gullar, 82, FSP). Como se sabe, muitos acham que se deve dizer “se ouviam os foliões”, sob pena de a civilização entrar em colapso.

Em suma: fatores estruturais, como a função sintática e/ou a posição do material concernido (pronome, oração subordinada, etc.) e fatores externos, como a idade e a escolaridade dos falantes ou o tipo de texto (mais ou menos formal) condicionam a escolha de uma ou de outra regra. Inconscientemente, na maioria das vezes. Os dados mostram que diversos aspectos internos e também externos à gramática explicam por que se usam determinadas construções. Enquanto não aceitarmos que não se trata de erros, mas de variantes, a escola não vai sair do lugar. Não estou dizendo que ela deve deixar de ensinar a norma culta (ninguém diz). Ao contrário: estou dizendo que, para ensinar bem e com resultados relevantes a norma culta, deve-se passar pelo bom conhecimento da língua. O que inclui conhecer os fatores que explicam as diversas variantes.

Dizer, como fez a própria tradição, que “eu” é a forma sujeito e “me” a forma objeto é admitir a relevância dos contextos. Por que não admitir, pelo menos para compreender os fatos, que há mais contextos que produzem efeitos na forma da língua? Por que apenas repetir, com base em listas, que se trata de erros?

Autor

Sírio Possenti, da revista Língua Portuguesa


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