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Era dos contêineres

A população planetária vive hoje majoritariamente em cidades. É hora de trazer para o universo da educação a reflexão sobre essa nova condição

Publicado em 10/09/2011

por Ensino Superior



No início de 2008, um marco se consumou sem que houvesse muito alarde sobre ele: ultrapassamos a barreira de 50% da população do globo – 3,5 bilhões de pessoas – vivendo em aglomerados urbanos. A população urbana do século 20 passou de 220 milhões para 2,8 bilhões de habitantes. Esse crescimento não vai parar, mas sua geografia vai evoluir.

Com efeito, o fenômeno é e será cada vez mais marcante na Ásia e na África, onde existem ainda "reservatórios" de populações rurais e agrícolas, e onde os saldos urbanos naturais (diferença positiva entre nascimentos e mortes) são significativos – saldos que se tornaram motor da urbanização. Nesses dois continentes, a população urbana dobrará entre 2000 e 2030. Nessa data, perto de 80% dos 4,9 bilhões de residentes urbanos viverão num país do "sul", enquanto em 1900 dois terços da população urbanizada estava concentrada nas regiões desenvolvidas. Note-se que o crescimento atual é mais rápido nas áreas urbanas médias (500 mil a 1 milhão de habitantes) e pequenas (menos de 500 mil habitantes) do que nas megalópoles (mais de 10 milhões de habitantes). Este não representa senão 9% da população urbana mundial, enquanto os outros acolhem 52%, uma proporção que não cessará de crescer.

O urbano está se generalizando, e pode-se mostrá-lo aos alunos, por meio de cifras e por análises iconográficas. Das imagens via satélite às fotografias, passando pelo cinema, a urbanização é doravante visível em toda parte, através de seus objetos (as roupas baratas usadas até o fundo dos campos africanos, panelas, pias e utensílios de plástico que, em todo lugar, se impõem, como rádios, telefones celulares e televisores), sua arquitetura e sua infra-estrutura, seus modelos ideológicos, seu imaginário, seus modos de morar e existir em sociedade.
Alguns desses ícones maiores do sistema urbano mundial devem chamar a atenção: o escalonamento, a hipermobilidade, a separação, a pobreza, a vulnerabilidade.

O escalonamento se verifica em todo lugar, quaisquer que sejam o tamanho da área urbana considerada e as formas materiais tomadas por essa evolução. O espaço periurbanizado [situado na vizinhança imediata de uma cidade, segundo o Houaiss] reagrupa uma massa incessantemente maior de habitantes, e esse processo constitui um transtorno espacial, social, cultural, econômico e político dos perímetros implicados.

A periurbanização é acompanhada, em geral, de uma baixa da densidade e da diversidade relativas, antes presentes nos setores centrais das cidades, mesmo que existam verdadeiros núcleos de centralidades periféricas. Ela provoca também uma atenuação dos limites urbanos, que se tornam cada vez mais fluidos, até desaparecerem. Entretanto, antes e durante muito tempo, a delimitação entre a cidade e seu entorno (o campo) era evidente e materializada, e torna-se cada vez mais difícil saber onde começa e onde termina um dado conjunto urbano. Em certas sociedades, pode-se até estimar que a urbanização, dilatada, englobe quase a integralidade de um território nacional ou, pelo menos, um conjunto amplo.


Movimentos incessantes


O escalonamento é fruto e ao mesmo tempo condição de um aumento exponencial dos deslocamentos, pois não seria viável tal esparrame sem transportes confiáveis e rápidos. Daí a mobilidade de todos e de qualquer coisa ser constitutiva da urbanidade contemporânea, em todas as escalas. A vida urbana é móvel: todo mundo se desloca, os objetos mudam permanentemente de lugar, os fluxos imateriais circulam incessantemente, difundindo dados em toda parte.

Uma boa maneira, muito pedagógica, de apreender a onipresença da mobilidade é observar os objetos que a assinalam: o contêiner, por exemplo. Em algumas décadas, o contêiner impôs-se como um objeto espacial universal. Essa simples caixa revela-se indispensável ao funcionamento da urbanização globalizada – e globalizante – isto é, que constrói o mundo como espaço social de escala global. Enviado por via marítima, ferrovia, por estrada (e até em formas adaptadas para vias aéreas) e padronizado, ele transporta o que quer que seja, até seres humanos, visto que serve também aos imigrantes clandestinos e, aliás, a todos os comércios informais. Seus preenchimento, carregamento, descarregamento e estocagem impõem arranjos urbanos muito específicos, instrumentos convenientes (barcos, trens, caminhões, materiais de manipulação) e ofícios particulares. Seu acompanhamento em tempo real, graças ao código de barras e ao GPS, passou a ser regra, por via dos autômatos de inteligência artificial das companhias logísticas – e aí se estabelece a conexão entre o transporte material e os fluxos imateriais – que se tornam empresas-chave do funcionamento econômico e social.

A mobilidade, escolhida mais ou menos livremente, é inegável em todos os grupos sociais, incluindo os mais desprovidos. As populações frágeis (trabalhadores pobres, imigrantes, clandestinos) vêem-se incessantemente confrontadas com a instabilidade de suas situações residencial e profissional. Elas são mais freqüentemente submetidas à mobilidade.

O espaço desse mundo móvel não é aberto, liso, nem sem entraves por causa do sucesso planetário do princípio da separação espacial das realidades sociais, que caracteriza a urbanização contemporânea. A existência e a legitimação do princípio separativo aparecem com o nascimento de um urbanismo científico, no fim do século 19. Desde então, a separação se generaliza. Quando funcional, é chamada de zoneamento, mas quando se deve aos problemas de repartição espacial dos grupos sociais e dos indivíduos, passa a ser segregação. Quase não há situação urbana, no mundo, em que o fato separativo e segregacionista não apareça e constitua, às vezes, um modo predominante de organização.

A segregação é uma separação espacial fatiada dos grupos sociais, que se manifesta na constituição de áreas marcadas por uma fraca diversidade social, dos limites nítidos entre esses espaços e os que os justapõem e os englobam. Um espaço segregado pode ser, no absoluto, rico (um condomínio fechado) e pobre (um gueto). Pode-se deplorar o fato de ser obrigado a morar numa zona marcada pela segregação, ou sentir-se feliz por nela ter acolhida. A segregação não impede que os residentes se integrem nas lógicas desse tipo de rede, via mobilidade: os habitantes vivem então, ao mesmo tempo, a segregação e a mobilidade.

A organização urbana associa espaços sociais e funcionais separados e interagentes via mobilidade. Modelos espaciais constituem atrativos aos quais se pode facilmente fazer referência em sala de aula, apoiando-se primeiramente na vivência dos alunos: citemos o aeroporto, o shopping center, o parque de diversões. Este último é um dos modelos dominantes. Áreas urbanas inteiras constituem por justaposição espaços recreativos separados, todas as atividades (esporte, comércio, cultural, jogo) adaptadas ao fogo do triunfo planetário do entretenimento. É assim que se pode fazer com que os jovens compreendam a organização de Dubai, de Macao, de Las Vegas, onde tudo o que não é recreação é mandado para trás ou para os "subsolos". Em todas as metrópoles, muitos pobres são relegados às margens e ao "debaixo", debaixo da ponte, das estradas suspensas, porões, buracos diversos: a segregação social é também, às vezes, vertical.


A pauperização urbana


A pobreza tem aspectos das favelas, as quais cobrem o planeta e reúnem um bilhão de indivíduos. Às vezes, muito grandes e agrupando vários milhares de pessoas, até vários milhões; às vezes minúsculas, aninhadas nos interstícios do espaço urbano; em alguns casos, apinhadas com materiais de sucata; em outros, "sedimentadas" e mais sólidas, acolhem os pobres, mas também todos aqueles, muito numerosos e nem todos desprovidos, que não conseguem ter acesso a um mercado oficial da habitação. As favelas são sempre informais (mas não sem ordem nem regulamento interno), loteadas em terrenos difíceis e abandonados. Quando se tornam bem situadas por conseqüência do desenvolvimento urbano, o poder público ou os investidores não tardam a desalojar seus habitantes, mais à força do que por vontade. Ao lado dos sinais reluzentes da urbanidade espetacular, a "favelização" é um dos marcadores flagrantes da urbanização.

A pobreza urbana explica-se pelo fato de a urbanização ser acompanhada da criação de menos atividades do que o aumento demográfico demandaria e de as riquezas crescerem de maneira vertiginosa, porém marcadas pela má distribuição.  A urbanização mudou a geografia mundial da miséria: se a indigência existe ainda nos campos, a miséria urbana não tem mais nada a invejar-lhe, enquanto outrora os rurais fugiam da pobreza para encontrar na cidade melhores condições de vida.

As populações vulneráveis, concentradas, fornecem a mão-de-obra barata, os serviços a baixo custo, a que empreendedores – mas também os traficantes e investidores da economia informal – recorrem para recrutar os "profissionais" dos quais precisam. Essa fragilidade social de um número crescente de pessoas não é um resíduo dos funcionamentos urbanos, e sim uma condição para a viabilidade destes. Sem esse inumerável exército de reserva, as bases atuais da urbanização e da globalização são desmoronadas, pois os baixos custos que os produtores e os consumidores exigem não poderiam ser obtidos.

O urbano mundial acumula e reúne a maior potência e a maior fragilidade. É o que exprime a noção de vulnerabilidade, a saber, a probabilidade de conhecer uma disfunção maior. À medida que a urbanização progride, a vulnerabilidade das organizações urbanas cresce. Essa vulnerabilidade muda de forma a todo momento: é econômica, social, ambiental. Manifesta-se em particular nos grandes episódios de crise. Os casos dos ciclones Katrina, em Nova Orleans, e Nargis, em Mianmar, são exemplos de vulnerabilidade. Mas pode-se também analisar segundo a perspectiva dos atentados maiores, os atos de guerra urbana, cujo número é impressionante, os motins de toda espécie, ou os casos de desenvolvimento urbano de patologias infecciosas, as situações de poluição recorrente ou de subnutrição generalizada.

Essa constatação pode parecer muito pessimista, mas a fragilidade do sistema urbano só se iguala à sua potência.  Ainda mais que em muitos dos territórios, incluindo os desenvolvidos, o urbano praticamente não é governado senão pelos interesses privados e pela luta feroz entre todos os que precisam dominar uma fração urbana.

Assim, a organização do sistema urbano é antes uma auto-organização, em que se ajustam mais ou menos convenientemente as ações dos diferentes e múltiplos agentes sociais. Esse urbano generalizado auto-organizado tornou-se o novo "meio" da existência humana. Para que seja habitável, é importante criar uma política ao mesmo tempo muito localizada e mundial. Muito localizada porque é preciso que os indivíduos participem plenamente da gestão coletiva de seu futuro e de seus espaços de vida. Mundial, pois diante de um fenômeno global deve-se construir uma esfera pública e pôr em funcionamento grandes ações nessa escala. Construir um mundo urbano comum, menos vulnerável e mais equilibrado, eis a mais urgente tarefa à qual devemos nos ater.

(Tradução Mônica Cristina Corrêa)


* Michel Lussault é geógrafo e co-autor, com Jacques Levi, do Dictionnaire de la geographie et de l´espace des societés

Autor

Ensino Superior


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