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Erudição acelerada

Preocupação com o futuro dos filhos leva pais a lotar a agenda de atividades das crianças; fenômeno nos EUA ganha o nome de overparenting

Publicado em 10/09/2011

por Fabiano Curi

O menino John cresceu praticamente isolado de outras crianças. Seus companheiros mais próximos eram os irmãos e o pai, que lhe impôs um rigoroso plano de estudos. Tão rígido que aos cinco anos ele já sabia grego; aos nove, álgebra e latim. Viveu mergulhado em ciência natural e letras clássicas. Não teve contato com religião, tampouco com assuntos metafísicos. Artes? Nada além de um pouco de música. Ainda antes dos dez anos, já escrevia densos artigos sobre história e lia Platão e Sófocles em grego. Aos doze, tinha o repertório intelectual de um homem de trinta extremamente erudito, muito mais do que o suficiente para entrar na faculdade.

Essa é uma história bastante conhecida do século 19. Seu protagonista foi o filósofo e político inglês John Stuart Mill, que recebeu um modelo de educação experimental inspirado na devoção ao filósofo utilitarista Jeremy Bentham. Para o pai, assuntos que fugissem dos que foram impostos ao garoto apenas alimentavam a estupidez humana.
Stuart Mill correspondeu aos anseios do pai e se tornou, além de um influente pensador liberal, um defensor da igualdade pública e política das mulheres a partir de seu assento na Casa dos Comuns.

Hoje em dia, ainda que seja difícil imaginar alguém impondo semelhante plano de estudos para o filho, é muito fácil encontrar pais inflados pelos feitos de seus herdeiros. Ainda que as crianças não demonstrem habilidades físicas ou intelectuais acima da normalidade, ninguém segura o orgulho dos pais quando eles ouvem, por exemplo, que sua cria foi a primeira da classe a aprender uma determinada sílaba. Tudo dentro da normalidade da afeição familiar. O problema é quando os pais ultrapassam os limites desse comportamento e obsessivamente traçam metas para que os filhos brilhem quando adultos.

Não é incomum ver pais que se preocupam com a carreira dos filhos antes mesmo de eles começarem o processo de alfabetização. Procuram escolas bilíngues e que prometem um eficiente encaminhamento profissional num futuro distante. As crianças são matriculadas em diversos cursos esportivos, artísticos e de reforço escolar – a agenda dos pequenos é cheia. Nos Estados Unidos já foi cunhado até mesmo um novo termo para o fenômeno: overparenting.
Para a neuropsicóloga Sylvia Ciasca, professora do Departamento de Neurologia Infantil da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp e presidente nacional da Associação Brasileira de Neurologia e Psiquiatria Infantil, esse desejo dos pais de verem os filhos os superarem sempre existiu, mas nunca com tanta ênfase como agora. "Vivemos num mundo mais competitivo que nos força a ter uma posição de competição e a criança se enquadra nisso", explica. Ela aponta para a visão de mundo predominante nos dias de hoje: "é necessário que um adulto bem-sucedido fale três idiomas e tenha determinadas habilidades físicas. Deixou-se de lado o fato de a criança aprender muito brincando e se relacionando".

A neuropsicóloga comenta que a criança tem um ritmo de aprendizado próprio e os níveis de desenvolvimento são imutáveis. "A criança tem um padrão de desenvolvimento e ela vai seguir esse padrão. Não adianta eu querer que ela ande antes de ficar em pé. O que nós estamos fazendo é simplesmente pulando fases", coloca. Essa opinião é compartilhada por Abram Topczewski, neuropediatra do Hospital Albert Einstein. Ele acrescenta que, por pressão dos pais, as escolas estão ávidas por alfabetizar as crianças com quatro ou cinco de anos de idade. "Isso é um absurdo, pois o sistema nervoso não está maturado para esse tipo de atividade", pontua. Ele também faz alerta: a estimulação precoce de crianças na alfabetização as leva a apresentar dificuldades de aprendizagem um pouco mais tarde.


Estresse


Qualquer adulto que obedece a uma agenda de atividades inclemente acaba, invariavelmente, estressado. Com os mais novos não é diferente. "Temos crianças cada vez mais estressadas, com problemas psiquiátricos. Hoje se fala muito em depressão na criança, em estresse infantil e em distúrbios do sono, coisas que, até pouco tempo atrás, eram características do adulto", conta Sylvia Ciasca. Essa assertiva é ratificada pela psicanalista Marise Bastos, da Associação Lugar de Vida e do Instituto Sedes Sapientiae: "não é por acaso que uma das patologias contemporâneas é a hiperatividade. As crianças têm inúmeras coisas para fazer e depois nos queixamos de que elas estão hiperativas".

O quadro se agrava porque essa preocupação dos pais com o futuro dos filhos acaba sendo transmitida em forma de expectativa para as crianças – elas são responsáveis pela superação das conquistas dos pais. "Nós enriquecemos e prosperamos, e as crianças são colocadas como alvo disso, elas devem conquistar ainda mais", afirma. A psicanalista lembra que na infância é normal fantasiar sobre o futuro, imaginando que será um astronauta ou estrela de cinema, porém, para as novas gerações, o sonho é outro. "O importante é saber quantos carros terão na garagem ou quantas viagens vão fazer.Vejo as crianças muito aflitas com a possibilidade de mais adiante não haver recursos materiais para bancarem aquilo que elas já têm", coloca. A preocupação está ligada à riqueza material. "Os adultos estão o tempo todo mostrando a elas que isso é o sinal de sucesso. Assim, o próprio valor da escola é relativizado, já que a importância para os mais jovens não está na profissão, mas no emprego, que deve ser bacana", diz.


Responsabilidades


O Departamento de Orientação Educacional do Colégio Bandeirantes, em São Paulo, procura ajudar alunos com problemas na organização de suas rotinas. Evidentemente, muitos dos casos que passam por ali estão ligados ao desempenho escolar. Contudo, os serviços prestados pelos profissionais que lá trabalham não se restringem ao universo da escola. "Se um aluno apresenta dificuldades numa matéria, elaboramos um plano de estudos estabelecendo uma meta que visa recuperar as notas. Procuramos equilibrar a rotina desse aluno", explica a coordenadora do departamento, Vera Lúcia Malatto. Ela ressalva que, apesar de os profissionais definirem o que é prioritário, o intuito não é levar o aluno ao estresse. "Para nós é importante que os alunos tenham tempo para o lazer, para outras atividades, para o esporte", lembra.

Vera Lúcia aponta que os problemas que afligem os alunos da escola variam de acordo com a faixa etária. Entre os mais velhos, que cursam os últimos anos do ensino médio, há a incerteza da carreira. Nos mais novos, a preocupação é com a necessidade de satisfazer as expectativas dos pais e em estar inserido no grupo. "Se nós detectarmos um aluno estressado, fazemos o encaminhamento para profissionais especializados e um trabalho de orientação junto da família", esclarece.

Alguns educadores e psicólogos fazem uma reflexão sobre as mudanças ocorridas nas famílias nos últimos anos em decorrência dos valores instituídos para explicar e criticar esse processo de sobrecarga de atividades na vida das crianças. A emancipação profissional das mulheres e a consequente ausência de mães e pais em boa parte do dia os obrigam a encontrar atividades para que os filhos não passem muito tempo no ócio e sem supervisão. Mas nem todos acreditam que esse seja o único motivo. Para o psicólogo responsável pelo Serviço de Atendimento a Famílias e Casais (Sefam) da USP, Marcelo Lábaki Agostinho, os pais não confiam em suas próprias intuições na hora de educar os filhos. "Vivemos num mundo muito especializado e os pais precisam da certificação de um especialista", coloca.


Os problemas da família


O neuropediatra Abram Topczewski segue na mesma linha e acredita que os pais estão mal orientados e demandam da escola uma educação que contemple soluções para seus temores – o que envolve, inclusive, a existência de um currículo muitas vezes inadequado para o desenvolvimento normal da criança. Para ele, com medo de perder alunos para a concorrência, muitas escolas se submetem às exigências. Para a neuropsicóloga Sylvia Ciasca, uma coisa é ter motivação e estímulo para aprender, outra é sobrecarregar essa motivação e esse estímulo. Voltemos ao relato do começo para esclarecer algumas consequências desse excesso. Que John Stuart Mill se tornou uma figura de muito destaque brilhando como o planejado por seu pai, não há dúvidas. Entretanto, a dedicação incondicional à formação teve seu preço: aos 20 anos mergulhou em profunda depressão. Em suas memórias ele conta que o pessimismo e a melancolia só começaram a dar trégua quando percebeu que havia deixado de lado muitas coisas importantes na infância e, assim, passou a buscar prazer descompromissado nas artes.

"Supereducação"

Nos Estados Unidos, a psicóloga Hara Estroff Marano lançou um livro intitulado A Nation of Wimps: The High Cost of Invasive Parenting. Ela traça um panorama das mudanças ocorridas na educação das crianças nas últimas décadas naquele país. Segundo a autora, estão se formando gerações de pessoas mimadas, incapazes de lidar com a possibilidade de fracasso ou de frustração, devido ao excesso de zelo e de expectativa dos pais.

Marano relata que as famílias um pouco mais abastadas, na sanha de formar indivíduos excepcionais, impõem aos filhos estafantes rotinas de aulas extracurriculares e de atividades físicas para que, desde pequenos, comecem a rechear currículos que garantam o ingresso nas melhores universidades e empregos. O temor do insucesso leva os pais a, por exemplo, mandarem seus filhos para acampamentos de estudos intensivos nas férias escolares e a pagarem até US$ 40 mil por serviços de orientação acadêmica que abram portas nas universidades mais cobiçadas.

A autora também critica o desenvolvimento de uma nova indústria de produtos voltados para uma "supereducação" que explora a insegurança dos pais. Grandes empresas do setor cultural e de entretenimento vêm aumentando seus catálogos com filmes, músicas e histórias que prometem estimular os futuros gênios desde os primeiros meses de vida.

Em reação às pressões de pais e escolas por um desempenho
extenuante das crianças, o Slow Movement já tem uma campanha por escolas e educação mais lentas. O objetivo, segundo a entidade, é evitar currículos extremamente rígidos e padronizados e desenvolver na criança uma relação mais tranquila e prazerosa com a aprendizagem.

Autor

Fabiano Curi


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