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Escola em tempo de Comunicação

Meios e processos comunicacionais são cada vez mais usados como forma de proporcionar ao aluno a expressão de sua subjetividade e de, supostamente, tornar o ensino mais atraente; função crítica da escola em relação à mídia é consensual

Por volta das 20h do dia 30 de outubro de 1938, a Columbia Broadcasting System começou a gerar, em Nova York, um inusitado programa de rádio para suas emissoras associadas. No total, calcula-se que cerca de 6 milhões de pessoas tenham ouvido a emissão, um marco na história do rádio, então um veículo com menos de duas décadas de presença pública. Essa estrondosa repercussão, no entanto, foi resultado do pânico coletivo a que foram induzidos os americanos pelo extremo realismo da adaptação concebida pelo jovem Orson Welles para a Guerra dos Mundos, de H.G.Wells. Como muitos ouvintes pegaram a peça já pela metade, acreditaram piamente que a Terra estava sendo tomada por marcianos.

Desse dia em diante, se havia dúvida acerca do poder de influência do rádio e dos meios de comunicação de massa em geral, foi dissipada. Os regimes de exceção da época, aliás, já tinham percebido isso havia tempos, utilizando-os para insuflar seus adeptos ou para promover suas idéias de educação. No Brasil, o pioneiro Roquette-Pinto defendia, desde os anos 20, o uso educativo do rádio. A partir dos anos 60-70, com a popularização da televisão, os possíveis grandes aliados tornaram-se um temor para a escola: o que fazer com esses concorrentes, especialmente a TV, que seduzem os estudantes com imagens e sons e os desviam da árdua construção do mundo letrado, constitutiva do ideário iluminista?

Entrados no século 21, vivemos outros tempos: praticamente já não se questiona se o mundo da comunicação deve confluir para a educação, mas como estabelecer o diálogo entre um e outro. No ano passado, o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) patrocinou um estudo, o primeiro do gênero já realizado no Brasil, com o intuito de descobrir quais os diferenciais de uma escola pública de qualidade em relação à média das instituições. Para isso, analisou, durante três meses, o trabalho de 33 escolas que se destacaram na Prova Brasil, avaliação realizada em 2005 pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), do Ministério da Educação, com cerca de 3,3 milhões de alunos do ensino fundamental em mais de 40 mil escolas de 5.398 municípios brasileiros. Constatou que, entre outras características em comum, as 33 tinham modelos democráticos de gestão escolar e ofereciam a seus alunos a oportunidade de participar de projetos especiais, fora da grade curricular. O documento de apresentação do trabalho (Aprova Brasil – O Direito de Aprender) cita algumas dessas experiências, como o jornal mural do Colégio Estadual Horácio de Matos, em Mucugê, na Bahia, que "certamente reforça a capacidade de expressão escrita dos adolescentes", e a rádio-escola do Centro de Ensino 03, em Guará, no Distrito Federal.
 
O resultado veio como uma bênção para aqueles que há anos advogam a necessidade de o trabalho em ambiente escolar com mídias diversas tornar-se política pública, consagrando um trabalho que começou na década de 70, no âmbito das comunidades eclesiais de base da Igreja Católica, ganhou espaço no meio acadêmico nos anos 80, gerou inúmeros projetos de ONGs nos 90, e começa a virar política de governo.

A carreira de Ismar de Oliveira Soares, coordenador do Núcleo de Comunicação e Educação (NCE) da Escola de Comunicações e Artes da USP reflete essa trajetória. Vindo dos movimentos sociais da Igreja, tornou-se uma referência entre os estudiosos de comunicação e educação do Brasil e da América Latina. Suas pesquisas levaram ao desenvolvimento de projetos do NCE, como o Educom.Radio, estendido em 2004 à rede municipal de ensino de São Paulo por meio de um projeto de lei. Por sinal, a capital paulista aprovou lei que determina que secretarias, entre elas a de educação, incluam projetos de educo-municação em seu planejamento.

Em função da própria estrutura pública do ensino no país, normalmente são os municípios e Estados que, em parceria com universidades e ONGs, desenvolvem projetos do gênero. Em âmbito federal, pouco há.

Em muitos países, no entanto, a alfabetização para a mídia, mídia-educação ou educomunicação é uma preocupação nacional. Nos Estados Unidos, o Ministério da Educação tem um departamento só para os projetos de media literacy (alfabetização ou letramento para a mídia). "Na Europa e nos Estados Unidos, essa preocupação está incorporada; é política de governo, e não de partido", explica Alexandre Le Voci Sayad, secretário-executivo da Rede de Experiências em Comunicação, Educação e Participação (Rede CEP). "Não tem descontinuidade: os projetos transpassam mandatos e resistem às alternâncias no poder", diz.

A Rede CEP foi criada em 2004 da união de dez organizações com histórico de projetos no setor. Seu objetivo é promover e qualificar políticas públicas que envolvam comunicação, educação e participação dos alunos no ambiente de ensino. Os trabalhos dessas organizações foram analisados pelo sociólogo e jornalista Fernando Rossetti, em 2003 e 2004, para um estudo encomendado pelo Unicef: Mídia e Escola – Perspectivas para Políticas Públicas. Sayad entende que essas iniciativas, de diferentes partes do país, devem realmente servir de modelo para os governos: "O governo tem de se mirar no que já existe. O que a gente não quer é que se reinvente a roda, que se crie um programete, um pacote federal que obrigue o educador do Rio Grande do Sul e o do Pará a fazer o mesmo projeto; o que a gente quer é que se ceda às diferenças regionais e sejam replicadas as boas práticas locais já desenvolvidas", defende.

Na prática, muitas das ONGs que integram a Rede CEP já têm secretarias municipais e estaduais de educação como parceiras. É o caso da Comunicação e Cultura, de Fortaleza, e da Bem TV, de Niterói, por exemplo. A luta da Rede é para que o vínculo entre poder público e terceiro setor resista às mudanças de governo. Em escala federal, o objetivo é colocar a educomunicação na agenda da educação brasileira.


Mídia educadora


Alexandre Le Voci Sayad, da Rede CEP: importância de se valorizar as experiências e multiplicar boas práticas, sem reinventar a roda

É consenso entre os estudiosos da relação entre comunicação e educação que a escola demorou a compreender o impacto da mídia de massa na formação da consciência do indivíduo e dos valores da sociedade. "A escola, talvez desde meados do século 20, desde o advento do rádio e da TV, vem perdendo lugar no ordenamento dos valores e significados; certas funções antes exercidas pela Igreja e pela escola pública hoje são desempenhadas pelos meios de comunicação", analisa Eugênio Bucci, jornalista e doutor em Ciências da Comunicação pela USP. O resultado desse processo é que o professor de hoje não consegue mais competir com a televisão.

O que acontece, segundo Bucci, que presidiu a Radiobrás, agência de notícias do governo federal, de janeiro de 2003 a abril de 2007, é que a mídia sempre é educativa, quer tenha a intenção de sê-lo ou não. Os empresários e profissionais de comunicação deveriam, portanto, ser mais atentos à responsabilidade que pesa sobre eles. O fato, para Bucci, é que a pedagogia televisiva forma pessoas abertas às leis do espetáculo, seja quando educa para o consumo, o sexo ou a religião. A isso a escola deveria reagir. "A escola não pode servir de ressonância para apelos de mercado, não pode abrir mão de ser um espaço autônomo", aponta.

Para José Sérgio Fonseca de Carvalho, professor do departamento de Filosofia da Educação da Faculdade de Educação da USP, é "absolutamente pertinente" que a escola desenvolva uma capacidade de leitura crítica dos meios audiovisuais, pois, especialmente com o advento da TV, passamos a viver um novo fenômeno: o de ter uma emissão centralizada, com informações geradas a partir de centros de poder, com um esvaziamento da esfera pública. Essa leitura, porém, deve ser feita sem prejuízo de sua dimensão original.

"Nossas estruturas de pensamento são solidárias a um tipo de linguagem. É importante ter uma capacidade de leitura da imagem. Agora, o distanciamento crítico em relação à linguagem imagética não vem por meio dela. A cultura escolar é, sobretudo, a cultura letrada. A imagem não é capaz de passar um conceito, pois a linguagem conceitual não é imagética", defende Carvalho.
 
Os baixos índices de habilidades de leitura e escrita dos estudantes latino-americanos são apontados por outro intelectual, o educador colombiano Bernardo Toro, como um dos grande empecilhos para que as escolas utilizem os processos de leitura crítica e alfabetização para a mídia.

"A compreensão e a análise crítica dos meios de comunicação de massa são dos aprendizados mais necessários para se poder participar produtivamente da sociedade presente e futura. Lograr o domínio dessas novas gramáticas tecnológicas implica primeiro dominar as competências de leitura e escrita", diz Toro. Para o colombiano, não há dilema entre escola e meios de massa. A questão é a definição de um caminho ético de desenvolvimento sustentável compartilhado, que dê sentido ao saber que temos acumulado.

Esperar que os meios de comunicação espontaneamente passem a transmitir outros valores parece não ser suficiente. Cobrar do poder público o papel de proteger a escola do impacto da mídia esbarra na dificuldade que se encontra em classificar e estabelecer limites para os conteúdos, uma vez que medidas desse tipo tendem a ser vistas como mecanismos de censura. A televisão deverá, portanto, continuar sendo o que é, mas há quem entenda que não faria tanta diferença se ela tivesse outro caráter. "Eu não quero uma TV educativa, eu quero educar meus filhos", defende Edilson Cazeloto, mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC e professor do curso de jornalismo do Mackenzie. No fim das contas, qualquer que seja a TV, pais e educadores terão sempre o desafio de não permitir que ela seja a grande formadora dos valores da sociedade. "O problema é deixar a TV grassar solta; a mídia tem um impacto negativo porque não é discutida", adverte Cazeloto. O educador precisaria assumir o papel de mediador entre a mídia e o indivíduo, levando o aluno a estabelecer uma relação crítica com os meios de comunicação, diz, corroborando Fonseca Carvalho.


Ser multimídia

As experiências dos que trabalham com alfabetização para a mídia demonstram que apenas o discurso do professor não basta para despertar o senso crítico do estudante. Por mais analítico e atraente que seja, ele também é impotente diante da sedução dos meios de comunicação. "A escola quer ensinar à criança como se comportar perante a mídia. Visto entre esses padrões – o da escola e o da mídia – o aluno prefere o da mídia e acaba não absorvendo a crítica que a escola quer promover. A educomunicação diz que a única solução possível é trazer a mídia para a escola, tornando-a um articulador do discurso", aponta Ismar de Oliveira Soares.


Para José Sérgio Fonseca de Carvalho, professor de Filosofia da Educação da Feusp, a linguagem conceitual está inserida no universo das letras, não na linguagem audiovisual

Em outras palavras, mais do que discutir mídia e interpretar os procedimentos e intenções dos veículos de comunicação, é preciso colocar o estudante no papel de protagonista, de agente do discurso. Não para que ele aprenda tecnicamente como se faz comunicação, mas para que compreenda o potencial que cada indivíduo tem de se expressar. "O importante é que o aluno aprenda a ser multimídia, e não a operar multimídia", sintetiza Cazeloto.

Isso significa que um bom trabalho de educomunicação pode ser desenvolvido mesmo com escassez de recursos e precariedade técnica. Muitos dos projetos ligados à Rede CEP e outros tantos espalhados pelo país são realmente feitos nessas condições. O governo federal, contudo, ainda tende a confundir incentivo à alfabetização para a mídia com investimento em tecnologia. Acha que é só colocar computador nas escolas, que a educação começa a acontecer.

 Esse pensamento é fruto da crença na capacidade que o surgimento de novas tecnologias tem de democratizar o acesso à informação e aos meios de se fazer comunicação. Crença que Eugênio Bucci e Edilson Cazeloto definem numa só e mesma palavra: fetiche. Segundo Bucci, o fenômeno repete-se toda vez que uma nova tecnologia se impõe à sociedade. A panacéia da vez é a internet, como já foram no passado o rádio e a televisão. Cazeloto vê nesse fascínio pela tecnologia um grande perigo. Como todas as mídias hoje em dia convergem para a plataforma digital, é como se todos os ovos estivessem sendo colocados numa cesta só. "Democracia tem a ver com pluralidade", aponta.


Olhar ao redor

Um dos princípios que norteiam o trabalho dos que promovem a educomunicação no Brasil é baseado na premissa de que toda comunicação é uma relação: fazer a escola olhar para fora de si e levar em consideração a realidade que existe ao seu redor. Não a grande realidade, distante e abstrata, mas a vizinha, concreta, do cotidiano, da comunidade local. É nesse sentido que pouco importa com que recursos a comunicação é feita, e sim que benefícios ela gera. Alexandre Le Voci Sayad entende que, se o colégio não tem recursos para produzir nada, pode desenvolver grandes projetos educativos a partir de idéias simples. "Uma escola firmar parceria com o jornal do seu bairro para produzir uma página de conteúdo, por exemplo, é algo que não envolve custo nenhum para ninguém", sugere.


Ismar de Oliveira, da ECA/USP: "a única solução possível é trazer a mídia para a escola, tornando-a um articulador do discurso"

Além da simplicidade, da capacidade de integrar-se com a comunidade em que está inserida em vez de aventurar-se em projetos megalomaníacos nos quais muitas vezes a tecnologia é usada à-toa, a experiência das ONGs aponta outros pontos que devem ser levados em consideração na hora de estruturar um projeto com mídia na escola. 

O mais importante deles é o interesse dos alunos. Sayad aponta que projetos impostos pela direção ou pelos professores sem consulta às vontades dos estudantes tendem a não durar mais de dois meses. Os jovens os abandonam no meio. Um caminho freqüentemente adotado e que costuma obter um bom índice de resposta é o de formar comitês conjuntos, com participação de alunos e docentes e acordos estabelecidos.

Outra boa iniciativa é permitir que nas oficinas de comunicação os alunos convivam com diferentes profissionais do setor: jornalistas, publicitários, fotógrafos, artistas gráficos. Com isso, fora o ganho cultural que a diversidade naturalmente proporciona, o jovem sente-se mais motivado, pois se percebe envolvido numa atividade profissional de verdade e não num mero trabalho escolar.

Por outro lado, é preciso que diretores e professores não tenham ilusões em relação à educomunicação. Ela mexe com aquilo que o espanhol Jesús Martín-Barbero, um dos mais conceituados teóricos da comunicação, chama de "ecossistema comunicativo", de modo que as relações dentro do ambiente escolar sofrem modificações. O interesse pelo trabalho com mídia pode, por exemplo, vir acompanhado de um crescente desinteresse pelas disciplinas da grade curricular ou pela maneira como são ensinadas. Ao expressar-se pela mídia, o jovem torna-se mais crítico e percebe que tem o poder de se fazer ouvir no colégio. Os professores precisam estar preparados para responder com diálogo e um ensino mais envolvente.

Também não adianta exigir desse tipo de trabalho aquilo que ele sozinho não pode fazer. "Os projetos em educomunicação não salvam a educação brasileira. A escola tem de mudar em vários aspectos simultaneamente", diz Sayad. A participação dos alunos em produção de mídia é somente uma parte disso.



Para saber mais




Educomunicação, Reflexões e Princípios, de Angela Schaun (Mauad, 2002);
Palavras, Meios de Comunicação e Educação, de Adilson Citelli (Cortez, 2007)
Gestão de Projetos Comunicacionais, organização de Maria Aparecida Baccega (Atlas, 2002)
Dos Meios às Mediações – Comunicação, Cultura e Hegemonia,
de Jesús Martín-Barbero (UFRJ Editora, 2001)
Comunicação e Educação – A Linguagem em Movimento, de Adilson Citelli (Senac, 2000)
Brasil em Tempo de TV, de Eugênio Bucci (Boitempo Editorial, 2005)
A Televisão Levada a Sério (Senac, 2000)
A Melhor TV do Mundo,
de Laurindo Lalo Leal Filho (Summus, 1997)

Autor

Cassiano José, colaborou: Rubem Barros


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