NOTÍCIA

Ensino Fundamental

Escolas de índio

Ameaçada de aculturação pelos moldes da escola tradicional, que proibia o uso da língua, dos rituais e das danças, a população indígena enfrenta o desafio de ter ambientes escolares feitos por ela, e não para ela

Publicado em 07/05/2013

por Daniela Landin







Gustavo Morita
Ainda há uma clara distância entre a legislação e a execução das políticas públicas na educação indígena
Homologadas em junho de 2012, as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica têm agora o desafio de serem implementadas pelos sistemas de ensino. A garantia de que os princípios da especificidade, do bilinguismo e multilinguismo, da organização comunitária e da interculturalidade fundamentem os projetos educativos das comunidades indígenas é uma prática já em andamento em diversas regiões do país, mas ainda há metas a serem perseguidas e instrumentos a serem criados para que se efetivem.


Entre os desafios a serem enfrentados estão ampliar o ensino das línguas nativas, construir um ensino médio que estimule os jovens a querer ir para a escola e que, sobretudo, faça sentido na vida deles, e a formação de quadros preparados nas secretarias estaduais de educação para lidar com a questão.

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“Ainda falta muito para chegarmos a uma situação em que a escola realmente favoreça a realidade dos indígenas”, analisa a antropóloga vinculada à Fundação Nacional do Índio (Funai) Juracilda Veiga, para quem as Diretrizes são uma “carta de intenções”. Ela aponta para o que entende ser um caráter problemático do documento que afirma, por exemplo, a importância das línguas indígenas no processo de educação escolar, mas não cria instrumentos para que isso se efetive.
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Formação  dos gestores

Apesar de a legislação brasileira estar cada vez mais atenta aos direitos indígenas, a execução das políticas públicas, em diferentes regiões do país, vem deixando clara a “distância muito grande entre o que está expresso nas leis e a burocracia do próprio Estado”, pontua Lucia Alberta Andrade, assessora da presidência da Funai.


Um exemplo disso é apresentado por Juracilda. A antropóloga menciona o fato de, em muitas secretarias estaduais – instâncias responsáveis pela execução dessas políticas – não haver uma pessoa preparada para lidar especificamente com aspectos relativos à educação indígena, sendo em geral um profissional encarregado de trabalhar com todas as situações que se referem à “educação especial”.


São muitos os entraves para a realização de ações que se caracterizem por uma educação escolar realmente diferenciada. “São poucos os técnicos capacitados para assessorar esses projetos e os recursos investidos para formar professores, produzir materiais didáticos, publicá-los, implementar calendários”, enumera Grupioni, do Iepé. Daí a separação entre “os preceitos legais e conceituais que devem pautar a educação diferenciada e o que ocorre de fato nas aldeias”.


Segundo Maximiliano Correa Menezes Tukano, diretor da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, o Estado sequer reconhece as formas próprias de funcionamento da escola em uma comunidade, sua metodologia, seus conteúdos. “O problema é que o corpo técnico que o Estado possui não entende a proposta de educação escolar do indígena ou desconhece as próprias leis que asseguram essa forma de educação”, aponta.


A percepção de que determinados direitos vêm sendo ignorados é compartilhada pela relatora do último documento das Diretrizes Nacionais para Educação Escolar Indígena, Rita Gomes do Nascimento. A isso ela atribui, entre outros aspectos, a uniformidade com que os sistemas de ensino operam em contraponto às demandas diversificadas das escolas indígenas, a ausência de uma política efetiva de valorização da língua indígena e problemas burocráticos ligados ao reconhecimento das escolas em suas especificidades.


O desafio da diversidade
“Como toda legislação indigenista, as Diretrizes têm um certo grau de generalidade para poder dar conta da imensa diversidade de situações existentes em todo o país”, diz Grupioni. “O que pode ser bom para uma aldeia no interior do Amazonas, onde só se chega de barco após mais de cinco dias de viagem, não necessariamente é adequado a uma aldeia guarani na cidade de São Paulo, aonde se chega de ônibus urbano”, exemplifica.


Para se ter ideia da complexidade de ofertar uma educação diferenciada para cada povo indígena, de acordo com os dados publicados em agosto de 2012 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o universo indígena no país é composto por 274 línguas e 305 etnias, com percursos históricos diferentes, fazendo com que os sentidos que estimulem o desejo de escolarização sejam múltiplos, assim como os objetivos esperados.


Então, como criar uma escola que melhore a vida desses povos, mostrando que as suas culturas precisam ser valorizadas, fortalecidas e respeitadas por todos, indígenas e não indígenas? Essa era a principal inquietação de Lucia Alberta de Andrade, quando, entre 1996 e 2004, acompanhou o início da discussão sobre a implantação de escolas indígenas na região. “Lembro que alguns povos ficavam muito assustados com a explicação, pois tinham passado por um longo período ouvindo que a cultura indígena não prestava, que todos tinham de deixar de ser índios para ser brasileiros e se questionavam: ‘e agora vamos voltar a ser como antes? Andar pelado? Vamos deixar de falar português?'”, conta.


Indígena Baré,da margem direita do rio Negro, Lucia nasceu perto da fronteira do Brasil com a Venezuela e a Colômbia, em um período em que os seus pais, por exemplo, já não falavam mais a língua materna nem conheciam aspectos culturais importantes daquela etnia.


Fazendo parte de uma equipe liderada por Gersem Baniwa, ex-coordenador geral de educação escolar indígena do Ministério da Educação, Lucia trabalhou na Secretaria Municipal de Educação (Semec) de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas e percorreu diversas comunidades do rio Negro falando sobre a educação escolar e sua importância. A equipe atuou pela construção de projetos de educação escolar na região. No entanto, “como as políticas não são de Estado, mas de governo, acabam sendo paralisadas com a troca de governante”, diz.


Interesses múltiplos
O interesse em aprender o português e conhecer seus direitos indo até o aprofundamento dos conhecimentos tradicionais e passando pela tentativa de ingressar no ensino superior são alguns dos motivos para o envolvimento dos indígenas em projetos de educação escolar, como menciona Lucia Alberta de Andrade, para quem a instituição de ensino, quando não é imposta, pode ajudar a diminuir o preconceito.


Para a relatora das Diretrizes, Rita Gomes do Nascimento, ou Rita Potyguara, nome que designa à etnia a qual pertence, a escola pode cumprir ainda outra função.”No momento em que, de fato, os direitos indígenas são solapados frente aos interesses políticos de grupos econômicos, os processos de escolarização podem funcionar como espaços de conscientização e instrumentalização da luta dos povos indígenas.”


Nesse trânsito entre culturas indígenas e o modelo convencional de ensino, a educação escolar indígena torna-se uma amálgama que pode enfatizar os aspectos potentes da instituição e fraturar seus elementos nocivos. “Muitos povos vêm ‘amansando’ a cultura escolar no que ela tem de homogênea, de transmissora de verdades absolutas e de conhecimentos universais”, destaca Susana Grillo Guimarães, coordenadora geral de Educação Escolar Indígena do MEC.


Tal diálogo intercultural, ainda em processo e com falhas, é visto pela antropóloga Juracilda Veiga por um ponto de vista crítico. “Houve muitos avanços na legislação, mas na prática estamos muito longe de uma escola de acordo com as necessidades atuais e futuras dos indígenas, que de fato ajude a fixá-los na sua terra, que os ajude a ter orgulho de serem índios, que de maneira digna permita a eles participar dos benefícios do desenvolvimento do país e contribuir para esse desenvolvimento, não atendendo às nossas expectativas, mas as suas próprias noções de bem-estar”, afirma.


Educação antropofágica
Seria possível falar em certo paradoxo ao se discutir o encontro entre as culturas indígenas e as instituições de ensino? “De fato, a educação escolar indígena se constitui dialeticamente na contradição entre saberes tradicionalmente construídos pelos povos indígenas e os sistematizados pedagogicamente pela instituição escolar”, define Rita Potyguara.


A antropóloga Larissa Menendez, que trabalha nos projetos de educação escolar indígena da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, defende que, de qualquer forma, é necessário afastar “purismos” quando o assunto é cultura. “Se o diálogo estiver estabelecido, as pessoas têm plena capacidade de decidir o que é melhor para elas. Quem sou eu para dizer que é uma contradição?”, questiona. Para ela, a escola indígena é mais uma das opções para a resistência cultural diante de uma sociedade preconceituosa e para a busca de autonomia. “Não estou falando, por exemplo, dos processos de escolarização propostos por missionários”, pondera.


Autonomia é também apontada como aspecto fundamental desse debate pelo pesquisador Arthur Iraçu Amaral Fuscaldo, autor da dissertação de mestrado “Rowapari Danho’re: sonhar e pegar cantos no xamanismo a’uwe” sobre os processos de construção de conhecimento vinculados às atividades onírico-musicais de grupos xavantes do Mato Grosso. Ele comenta que, mesmo fugindo do senso comum segundo o qual os índios perdem sua identidade por assistirem televisão ou usarem determinadas roupas, é difícil se desvencilhar de um “purismo”. Em sua opinião, as diferenciações já tão cristalizadas, que determinam o que é ou não cultura indígena, são muito mais construídas pelo não indígena. “O que eu chamo de autonomia? É reconhecer que a resposta mais legítima é a resposta deles”, conclui.


Mais do que “contradições”, a educação escolar indígena vem indicando possibilidades de os indígenas se “apropriarem de novos conhecimentos sem precisar abandonar o que lhes era próprio, como suas línguas e culturas”, de acordo com Grupioni.


Nesse movimento de “devoração” e ressignificação dos modelos escolares, os indígenas vêm demonstrando percepção tática na relação com os não indígenas, no ensejo de inserir certas reivindicações na agenda política e, afinal, na busca pela autonomia. Para Maximiliano Correa Menezes Tukano, da Foirn, com a introdução de conhecimentos e modos específicos de aprendizagem, há um processo de valorização cultural e recuperação do orgulho de ser índio, “ameaçado de aculturação pelos moldes da escola tradicional, que proibia o uso da língua, dos rituais, das danças. Agora as escolas são dos indígenas e não para os indígenas”.

Autor

Daniela Landin


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