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Arte e Cultura

Falta uma vogal na educação

No jogo das letras, a vogal faltante é aquela que pode expressar algo mais do que desejos pouco consistentes: o ideal autêntico

Publicado em 04/04/2016

por Gabriel Perissé

 

© Shutterstock

 

Chegou às minhas mãos, faz algumas semanas, o livro O sumiço (o título original, em francês, é La disparition), de Georges Perec (1936-1982), com tradução de Zéfere (José Roberto Andrade Féres), publicado pela Autêntica Editora no ano passado.

Nesta história, o desaparecimento da letra “e” é o tema principal. O genial Perec elabora sua narrativa sem empregar esta vogal. Diverte-se com a restrição que se impôs, com a regra por ele mesmo criada. Faz malabarismos e piruetas para se manter no caminho escolhido. Como escrever um romance policial sem recorrer à letra mais frequente no idioma francês?

Ocorreu-me, então, que na palavra “educação” também falta uma vogal. Nela, temos o “a”, o “e”, o “o” e o “u”. Mas falta o “i”. O que me pareceu configurar um autêntico caso de polícia! Um atentado ortográfico! Como se faltasse à educação um elemento fundamental: a vogal central. A terceira das cinco vogais.

Em que medida essa ausência, esse sumiço, tem algum sentido oculto? Indicaria alguma falha nos ideais que nós, educadores, cultivamos? Seria um aviso linguístico de que algo nunca dará certo nessa história? Que mistério seria esse?

A falta que ela faz

Vou tentar escrever agora sem usar a letra que falta. Acompanhe com atenção o que estou escrevendo neste momento! Consegue perceber, nesta altura do texto, o desfalque daquela letra? As frases fluem, não é verdade? O parágrafo avança, mas em nenhuma palavra ela aparece. Também terá você, no passado, toda vez que leu ou escreveu o vocábulo “educação”, observado esse estranho fato? Terá se dado conta de que na “educação” há uma lacuna fundamental?

Falamos em educação com a segurança de quem já sabe tudo, de quem entende do que está falando. A educação, porém, não está em sua plena forma. Nunca esteve, sejamos honestos. Consegue ver melhor o notável contraste?

O “e” de “escola”, de “ementa”, de “estudante”, de “exame”, e até de “ENEM”, está presente. O “a” de “aula” e “advertência”, de “aprovação” e “aluno” comparece pontualmente. E quanto ao “u” e ao “o”, sem uma função exata, encostam-se pelas paredes, perdem tempo com fofocas, jogam o tempo pela janela.

Ah, que falta nos faz aquela vogal esbelta, cuja cor era rubra, vermelha, num soneto chamado Voyelles (de um jovem poeta da França do século 19)!

Os pingos nos is

Para Rimbaud, o autor de Voyelles (Vogais), a vogal “i” evocava a força do sangue, e do êxtase sagrado. Lembrava-lhe um sorriso vermelho e vivo. Talvez seja esta intensidade o que ainda falta na educação. Intensidade é uma boa palavra: começa com “i”.

E temos “i” no início de “interdisciplinaridade”, de “integralidade”, da sempre necessária “inclusão”, e de “igualdade”. Instrução também se inicia com “i”. Não tenhamos medo de aprender o básico, o simples, o que todo mundo precisa saber. Contudo, ainda mais importante do que a instrução é investir na interpretação!

Interpretar, como indica a etimologia, é fazer a devida conversão. Era uma palavra associada à troca de moedas, ao câmbio. Temos de colocar os pingos nos is. Dizer com clareza qual é o “preço” a pagar. O conhecimento não vem de graça. Uma boa aula será inesquecível (de novo a letra “i” inicial), se nós e nossos alunos entendermos o que de fato está em jogo.

O que está em jogo na educação é a possibilidade de imaginar e inventar uma forma de viver melhor em sociedade. E, para isso, necessitamos de inteligência e inspiração, de boas ideias e, além disso, de um ideal.

As ideias e o ideal

Sobram ideias na educação, mas sinto falta de ideais. Um ideal é mais do que uma tese. O ideal é uma ideia que ganha relevância e nos dá entusiasmo. O ideal do aprendizado é mais do que um conjunto de ideias sobre o modo como aprendemos. Quando conseguimos criar verdadeiros ambientes de aprendizado, nossos alunos se interessam, interagem mais, se sentem inspirados.

Não me refiro ao idealismo frágil, que emociona por alguns instantes e deixa apenas vagas lembranças de uma luz passageira… Esse idealismo, embora também comece com a vogal “i”, nos afasta do verdadeiro ideal!

O ideal autêntico é fonte de energia. O ideal faz com que procuremos o desenvolvimento pessoal, integrado ao desenvolvimento das pessoas ao nosso redor. Quando alimento em mim o ideal da leitura, por exemplo, e vou à procura de livros que me façam entender melhor o mundo, agir e conviver melhor, então o ideal da leitura me impulsiona para a frente!

O ideal concilia desejo de autorrealização e vontade de colaboração. O ideal da educação humanizadora desencadeia processos de crescimento individual e de solidariedade. Aliás, os dois processos são um só. O ideal da realização pessoal será sempre um fiasco se estiver preso ao egocentrismo e ao narcisismo.

Mas para viver um ideal eu preciso de outra palavra que começa com a vogal “i” – iniciativa.

Autor

Gabriel Perissé


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