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Gente, cidades e cinema

A vida é um filme e, como roteirista, protagonista e diretor, sua narrativa deve emocionar e ensinar a todos

Publicado em 04/10/2013

por Gabriel Perissé






A vida fora da internet é bem interessante. Temos gente, cidades, cinema, e muito mais. É bem verdade que na web estamos conectados a milhares de pessoas, podemos visitar todas as cidades do mundo e ver centenas de vídeos. Mesmo assim a vida real continua sendo mais real…

Num dos seus livros, Os amores difíceis, o escritor Italo Calvino fala de um personagem, ainda jovem, que gostava de olhar as pessoas na rua, conhecer novas cidades e ir diariamente ao cinema. Descobria, assim, a beleza, a força e a riqueza da vida. O conto se chama “A aventura de um míope”.
#R#
Míope, sim, porque um dia as coisas perderam a graça. Tudo ficou desbotado, cansativo e entediante. As pessoas se tornaram sombras fora de foco. Era a sua vista necessitando de óculos.  E quando os adquiriu, a vida reabriu-se em flor, encantadora e atraente.

Olhando quem passava ao seu lado, voltou a detectar todos os detalhes, os pequenos sinais nos rostos, as linhas, as rugas, as expressões de alegria ou preocupação, os pontinhos de barba, as espinhas, os gestos, o modo de andar, e as roupas em suas cores, o eventual puído das costuras, via até demais!

A aventura de ver
Todos nós temos nossas miopias. Educar-se é aprender a ver melhor, mais longe, com maior nitidez. Os óculos da educação nos abrem os olhos para a trama da existência. O impalpável ganha contornos. Mesmo à noite é possível enxergar muitas coisas. A cidade noturna revela as janelas acesas de um prédio, as estrelas, letreiros luminosos, os semáforos, os faróis dos carros, os fogos de artifício e outras claridades.

Conhecer novas cidades ou revisitar as que um dia conhecemos é ampliar nossos pontos de vista. As casas pobres, as casas ricas, as casas remediadas, um rio que porventura a atravesse, suas lojas, ruas mais largas, ruelas, praças, o trânsito, os habitantes. Tudo é aprendizado em suas calçadas e construções.

As imagens do cinema merecem nossos olhos arregalados. E lá vêm os efeitos especiais, ainda que sejam efeitos comuns. Os corpos, os olhos, as lágrimas, os cabelos, os movimentos dos artistas são mais intensos quando se tornam personagens de mil histórias. Trens, aviões, navios invadem a visão da plateia. Até as explosões, gritos e sussurros se tornam objeto do olhar.

Esta aventura de ver com os óculos da educação não é algo acessório ou acidental. Torna-se atributo, qualidade, virtude, identifica-se com nossa essência. Nem notamos mais que estamos de óculos. Nossa visão de mundo torna-se esta. Os óculos passam a fazer parte de nossa fisionomia, de nossa personalidade.

Olhar de professor
No conto aparece o professor Cavanna, “famoso como fisionomista porque de todos os seus numerosos alunos recordava caras e nomes e sobrenomes e até as notas trimestrais!”. Nem todos nós dispomos de igual memória, mas que ao menos saibamos olhar com dedicação máxima os alunos que estão conosco no atual ano letivo.

A palavra “admiração” tem a ver com olhar, mirar. O olhar docente admira porque encontra formas de valorizar o que vê. Um olhar que interpreta de modo positivo, descobre e abre possibilidades de encontro antes que se configure qualquer lamentável confronto. E por isso também o respeito de parte a parte. A palavra “respeito” está igualmente ligada à capacidade de ver. A etimologia ensina que, em latim, respectus vem de quem “olha com mais atenção”.

A busca do fundamental
O personagem do conto volta à sua cidade natal, e, andando pelas ruas, não é reconhecido por causa dos óculos. Velhos amigos e antigas namoradas só conseguem saber quem ele é quando retira os óculos.

Ao chegar num local fora da cidade, mergulhado na noite mais escura, o míope compreende então que pôr ou tirar os óculos, naquele momento de solidão, já não era tão fundamental. Fundamental mesmo, muitas vezes, é não se exaltar demasiado com os títulos e diplomas.

Fundamental é ser o que você é e contemplar o mundo a olho nu.
Entendam bem, leitores meus, que diplomas e títulos são importantes, necessários. Nossa sociedade é credencialista, e temos de provar (fazendo todas as provas e exames!) que somos capazes de aprender cada vez mais. Recomendo a todos que frequentem muitos cursos, participem de congressos, simpósios, façam pós-graduação, pesquisem, não parem de estudar.

Porém, de que valem os mais poderosos óculos do mestrado, do doutorado ou até de um ou vários pós-doutorados se perdemos de vista o imprescindível? E o imprescindível está em sermos reconhecidos pelas pessoas como capacitados para escrever e reescrever a nossa própria história.

Cada vida é um filme. Pode ser um curta-metragem, uma longa série, pode ser um documentário, pode ter momentos dramáticos e cômicos, pode flertar com o terror, pode se tornar um musical. Mas não basta produzi-los.

Como roteiristas, protagonistas e diretores de nosso filme existencial, a nossa narrativa deve emocionar e ensinar a todos.

Autor

Gabriel Perissé


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