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Gente que nasce longe de casa

Somos responsáveis por aquilo que fizermos com aquilo que fizeram de nós

Publicado em 10/09/2011

por José Pacheco

Num aeroporto afectado pela "crise" e na ressaca da tragédia de Congonhas, eu deveria efectuar um voo de conexão e tentava explicar o óbvio: Minha senhora, repare que eu já tenho cartão de embarque, não preciso de vir para esta fila.

Se lhe disseram para vir para esta fila, é porque tem de vir – nesse diálogo de surdos, a funcionária voltou-me as costas, sem me dar tempo a replicar.

Meia hora decorrida e muita impaciência acumulada, cheguei ao balcão. Mostrei o cartão de embarque: "O senhor não precisava de vir aqui para esta fila. E, agora, já fechou o check-in do seu voo – disse-me, sem me olhar. Telefonou, teclou, entregou-me um novo cartão de embarque para um voo que partiria três horas depois. Cabisbaixa, disse-me: Foi o máximo que pude fazer. Em silêncio, afastei-me.

Enquanto aguardei o tardio voo, observei os passos em volta: gente cochilando, reclamando, apática, ou resignada, tal como eu. Tive tempo para meditar, "transgredindo a ordem do superficial", e concluir que, nos grandes aglomerados humanos, as pessoas se submetem a uma forçada convivência, toleram o outro sem o aceitar, suportam um "aturai-vos uns aos outros" num incómodo mal disfarçado.

La Rochelle disse que "a cidade não é a solidão porque a cidade aniquila tudo quanto povoa a solidão – a cidade é o vazio". Um vazio com raízes que eu busco esclarecer. Inevitavelmente, a minha cultura profissional isolou as raízes de uma instituição geradora de vazios: chamou a Escola à colação. As escolas onde as funcionárias do aeroporto e os seus clientes se formaram eram arquipélagos de solidões povoados por rituais vazios de significado.

Educar é assumir responsabilidade social, solidarizar-se eticamente. Somos marcados pela incompletude, geneticamente sociais e geneticamente históricos, porque, como diria Walon ou Freire, criamos vínculos. A arte de conviver (viver com) exige uma atitude de abertura, o reconhecimento do outro e o respeito pela pessoa do outro. Mas onde se poderá aprender essa arte? Na Escola? Na Família? Na televisão? Na internet?

A educação do homem percorre caminhos sinuosos. Antes de ser escolarizada, a criança já esteve exposta a milhares de horas de televisão, sem agir criticamente sobre as mensagens, sem discernimento para se proteger de programações imbecis. Forma-se o solitário adulto espectador no vazio da indiferença: "Militares americanos bombardearam uma aldeia afegã. As bombas visavam matar talibans, mas assassinaram crianças. Para os militares o raid aéreo foi um sucesso, fundamentando: "Quem nos garante que esses meninos não viriam a ser perigosos talibans?"

Sartre estava certo de que, se não somos responsáveis pelo que fizeram de nós, somos responsáveis por aquilo que fizermos com aquilo que fizeram de nós. E eu opto por pensar nos professores que conheço, que já vão trocando uma profissão solitária por uma profissão solidária. E não se trata de uma mera troca de uma consoante por outra consoante. Trata-se de uma profunda mudança cultural. O primeiro passo dessa reconversão consiste em os professores se sentarem à volta de uma mesa, ou na relva de um parque, para se transformarem numa equipe. Um projecto faz-se com pessoas conciliadas consigo e com os seus pares, privilegiando laços afectivos.

Com esta reconfortante reflexão, aquieto-me. E o tempo de espera pelo voo fica mais breve, mais suportável. Embora saiba que ainda há muita gente distante de si própria! Como diria a Maria, "às vezes, há gente que nasce longe de casa…"



José Pacheco – Educador e escritor, ex-diretor da Escola da Ponte, em Vila das Aves (Portugal)



josepacheco@editorasegmento.com.br


Autor

José Pacheco


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