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Guerrilha pela paz

Dez anos depois da última tentativa de acordo entre as Farc e o governo colombiano, novas negociações se iniciam em Oslo sob o olhar de descrédito de uma população que vive em estado de guerra já há quase cinco décadas

Publicado em 05/12/2012

por Luciano Velleda





Corbis
O encontro ocorrido em Oslo, na Noruega, no último dia 18 de outubro, entre os representantes do presidente Juan Manuel Santos e os líderes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) marcou o início da quarta tentativa de paz em quase 50 anos de conflito entre a guerrilha mais antiga da América Latina e o governo colombiano. Ao longo de meio século de luta, cerca de 60 mil pessoas já morreram, entre civis, militares e combatentes rebeldes.


Cansados de uma guerra longa e sangrenta, analistas e cientistas políticos da Colômbia acreditam que boa parte da população do país vê com bons olhos essa nova tentativa de diálogo, embora a lembrança de negociações frustradas, em épocas passadas, faça com que não haja um clima de otimismo exagerado. Pelo contrário, cautela parece ser a palavra de ordem, ainda que não se abandone a esperança de paz. Afinal, a opinião majoritária é a de que as Farc, que contam atualmente com cerca de oito ou nove mil guerrilheiros, nunca tiveram moral tão baixo diante da constante perda de seus líderes nos últimos anos, mortos em ações do exército.
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Diálogos de paz
Apesar disso, como seria de se esperar numa questão tão polarizada, nem todos defendem uma saída negociada para pôr fim ao conflito. Liderados pelo ex-presidente Álvaro Uribe, que durante seu mandato pôs em marcha o Plan Patriota, uma implacável política de combate às Farc, setores mais conservadores da sociedade colombiana criticam a iniciativa do atual presidente de tentar um acordo com a guerrilha. Para estes, a paz só virá pelas armas, e não por vias diplomáticas.


A nova rodada de negociações prosseguirá nos próximos meses em Havana, Cuba, com a intermediação dos governos cubano, venezuelano e chileno. A partir do encontro em Oslo, definiu-se que o diálogo de paz entre a Colômbia e as Farc para pôr fim ao conflito terá como premissa cinco eixos de discussão: a reforma agrária, um tema histórico para a guerrilha; a integração dos guerrilheiros das Farc à vida política colombiana e às forças de segurança do país; um cessar-fogo bilateral e definitivo; a substituição do cultivo da coca; e a responsabilização, de guerrilheiros e do governo, por crimes de guerra e contra a humanidade cometidos durante o conflito.    


As origens da luta
Para entender o nascimento e o fortalecimento das Farc é necessário retroceder ao ano de 1948, quando o então chefe do Partido Liberal Jorge Gaitán foi assassinado na cidade de Bogotá. O homicídio foi o estopim de uma convulsão social entre as duas principais forças políticas do país, liberais e conservadores, deflagrando uma sangrenta disputa pelo poder conhecida como Bogotazo.


Parte dos liberais derrotados se refugiou nos campos no interior do país, dando início a um período de conflito batizado na história colombiana do século 20 de La Violencia. Com o apoio de grupos comunistas, os liberais se organizaram para resistir ao governo conservador, levando o país latino-americano às portas de uma guerra civil que dura cerca de dez anos. Em 1953, o militar Gustavo Rojas Pinilla assumiu a presidência da Colômbia e ofereceu anistia aos grupos rebeldes, proposta aceita pelos camponeses liberais e que, cinco anos depois, em 1958, culminou no fim das divergências entre liberais e conservadores e a formação conjunta da Frente Nacional, a partir daí dividindo o poder da Colômbia entre os dois grupos.


Todavia, nem tudo estava finalizado. Sentindo-se traídos pelos liberais, os grupos comunistas permaneceram entocados nas selvas do interior sem abandonar suas convicções ideológicas de lutar contra as desigualdades sociais refletidas num povo pobre, de baixa escolarização, sem direito a programas sociais, a terra e a reforma agrária. Formava-se ali o embrião das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia.      


Espalhados por diversas regiões da Colômbia, os grupos comunistas de resistência à Frente Nacional foram paulatinamente ganhando adeptos entre as comunidades de camponeses. Definidos pelo governo central de “repúblicas independentes” por estarem alheias à  autoridade do país, no dia 27 de maio de 1964 o exército colombiano – com o apoio do governo dos Estados Unidos, à época engajado em frear a expansão das ideias comunistas na América Latina – decidiu atacar uma dessas “repúblicas”, a de Marquetalia, lançando uma pesada ofensiva militar.


Apesar de sofrer com o ataque de helicópteros, aviões e artilharia pesada, o pequeno bastião de menos de 50 guerrilheiros comandados por Manuel Marulanda conseguiu resistir à ofensiva militar, fugir e criar o Bloco Sul. Tempos depois, a data do ataque a Marquetalia seria considerada a pedra fundamental das Farc, chancelada dois anos depois numa conferência com a participação de cerca de 350 guerrilheiros, tornando-se nas décadas seguintes uma organização que chegaria a ter em suas fileiras, ao final da década de 90, cerca de 20 mil homens armados em 27 frentes de combate, em diversas regiões do país. Antes disto, porém, o desenvolvimento da guerrilha deu-se basicamente em ações isoladas no interior do país.


Tentativas de negociação
Em 28 de maio de 1984, com Belisario Betancur na presidência da Colômbia, as Farc e o governo iniciaram o primeiro processo de paz na história do conflito, que culminou com o estabelecimento de um cessar fogo e a criação do partido União Patriótica (UP), braço político do movimento guerrilheiro em conjunto com outras forças da sociedade civil de esquerda do país. Em 1986, a UP chegou a nomear 14 congressistas em eleições livres, entre deputados e senadores, incluindo alguns comandantes da guerrilha.


Forças conservadoras da Colômbia já naquela época se mostravam contrárias à tentativa de acordo e ao cessar-fogo, com grupos paramilitares de ultradireita sendo formados e agindo para minar o processo de paz. No ano seguinte, no dia 11 de outubro de 1987, o candidato à presidência da UP foi assassinado e, a partir daí, se iniciou um extermínio de dirigentes da União Patriótica. As Farc responderam com ações violentas, sequestros e assassinatos de militares e civis, degringolando assim a primeira tentativa de paz.


Em 1991, já no governo do presidente César Gaviria, uma nova tentativa se iniciou primeiramente numa reunião em Caracas, na Venezuela. As conversações continuaram até o ano seguinte em Tlaxcala, no México, quando, por uma série de desentendimentos e recusas tanto por parte das Farc quanto por parte do governo colombiano, o acordo de paz falhou novamente. Cinco anos depois, no dia 30 de agosto de 1996, a guerrilha realizou um contundente ataque a uma base militar prendendo 60 homens e dando início à política de sequestros em massa como forma de barganhar suas exigências políticas perante o governo do país e obter recursos financeiros em troca dos reféns.


A esperança voltou no dia 7 de janeiro de 1999, quando o então presidente Andrés Pastrana – que durante sua campanha à eleição já havia se encontrado com o líder das Farc Manuel Marulanda – deu início a mais uma tentativa de acabar com o conflito. Entre críticas da parcela mais conservadora do país e o apoio de boa parte da sociedade, Pastrana concedeu à guerrilha uma área desmilitarizada de 42 mil quilômetros quadrados no sudeste da Colômbia. 


Acreditando que ao ceder a zona desmilitarizada as Farc dariam contrapartida, o presidente – e parte significativa da população – vislumbrou a oportunidade como a mais concreta até então. Entretanto, a guerrilha continuou praticando atos de violência apesar de o processo de paz estar em andamento e, para piorar, aproveitou a área desmilitarizada para crescer em número de soldados.


Sinais de descrédito
A desilusão novamente veio à tona no dia 20 de fevereiro de 2002, data em que as Farc desviaram um avião para uma estrada e sequestram um senador. A ação da guerrilha fez o presidente Pastrana interromper o processo de paz. Três dias depois, a candidata presidencial Ingrid Betancourt também foi sequestrada, num ato que causou grande comoção nacional e fez recrudescer a antipatia da sociedade colombiana pela guerrilha. Vista ainda hoje como a maior iniciativa já feita por um governo do país de tentar selar a paz com as Farc, o fracasso das negociações durante o mandato de Andrés Pastrana foi o principal ingrediente para que agora, dez anos depois, muitos vejam com ceticismo e desconfiança a nova proposta do atual governo de Juan Manuel Santos. Mesmo assim, cansados da longa guerra que se arrasta há quase 50 anos, o sonho da paz ainda resiste. Nos próximos meses, nas reuniões em Havana, será possível saber se, desta vez, o sonho virará realidade.








Cronologia do conflito


27 de maio de 1964: o exército colombiano ataca Marquetalia. Um grupo comandado por Manuel Marulanda sobrevive e cria o “Bloco Sul”, embrião das Farc.


28 de março de 1984: a guerrilha aceita uma trégua e inicia diálogo com o presidente Belisario Betancur (1982-1986). O partido União Patriótica (UP), ligado ao grupo rebelde, elege congressistas em 1986, e lança Jaime Pardo como candidato presidencial.


11 de outubro de 1987: paramilitares de ultradireita matam Jaime Pardo.


10 de agosto de 1990: Jacobo Arenas, considerado o principal mentor ideológico do grupo, morre de causas naturais.


1º de junho de 1991:inicia-se em Caracas, na Venezuela, uma nova negociação entre as Farc e o governo, até ser interrompido em junho de 1992, em Tlaxcala, no México.


30 de agosto de 1996: a guerrilha ataca uma base militar e faz 60 soldados reféns.


7 de janeiro de 1999: o presidente Andrés Pastrana faz novo gesto pela paz e concede às Farc um território desmilitarizado no sudeste do país.


20 de fevereiro de 2002: Pastrana cancela o processo de paz após a guerrilha sequestrar um congressista. Três dias depois, o mesmo acontece com a candidata presidencial Ingrid Betancourt.


7 de agosto de 2002: um ataque à sede presidencial deixa 21 mortos e o presidente Álvaro Uribe declara guerra total às Farc.


7 de fevereiro de 2003: ação das Farc explode um carro-bomba e mata 36 pessoas em Bogotá.


13 de fevereiro de 2003: três americanos são sequestrados pela guerrilha.


5 de fevereiro de 2008: cerca de cinco milhões de pessoas, na Colômbia e no exterior, fazem protestos contra as Farc e exigem a libertação dos reféns.


1º de março de 2008: Raúl Reyes, número dois das Farc, é morto num ataque realizado pelo exército da Colômbia em território equatoriano, causando um incidente diplomático entre os dois países.


24 de maio de 2008: Manuel Marulanda morre aos 80 anos vítima de um infarto, sendo substituído por Alfonso Cano.


2 de julho de 2008: Ingrid Betancourt e outros 14 reféns são resgatados pelo exército colombiano.


1º a 5 de fevereiro de 2009: a guerrilha solta os reféns Sigifredo López (ex-deputado), e Alan Jara (ex-governador), além de quatro militares.


21 de dezembro de 2009: o governador de Caquetá, Luis Cuéllar, é sequestrado e morto pelas Farc.


28 a 30 de março de 2010: dois militares colombianos são libertados com apoio logístico brasileiro.


13 de junho de 2010: três reféns presos há mais de dez anos são resgatados numa operação militar.


23 de setembro de 2010: o chefe militar das Farc, Jorge Briceño, morre num bombardeio do exército.


9 a 16 de fevereiro de 2011: as Farc libertam seis reféns.


4 de novembro de 2011: o líder Alfonso Cano morre numa ação do exército colombiano.


26 de novembro de 2011: quatro reféns são mortos durante combate com as forças armadas, enquanto um quinto consegue fugir.


26 de fevereiro de 2012: as Farc anunciam a suspensão do sequestro de civis e a libertação de dez reféns, entre militares e policiais.


2 de abril de 2012: a guerrilha liberta aqueles que diz serem os últimos dez militares e policiais sequestrados.


30 de maio de 2012: o jornalista francês Roméo Langlois, preso um mês antes, é solto pelas Farc.


27 de agosto de 2012: o presidente Juan Manuel Santos anuncia nova tratativa de paz com a guerrilha.










O financiamento da guerrilha


Durante muito tempo o principal modo de financiamento das Farc foi a extorsão de comerciantes e empresários nas regiões onde a guerrilha atua. Ao final dos anos 80 e a partir dos anos 90, os resgates pelos sequestros de civis, policiais, militares e políticos tornaram-se outra fonte de receita da guerrilha. Mas nada é tão lucrativo para as Farc quanto o narcotráfico.


A relação não é nova. Já nos anos 80, auge dos cartéis de drogas colombianos e do chefão Pablo Escobar, produtores e traficantes pagavam taxas às Farc para vigiar sua produção e assim manterem seus negócios. Mas foi ao longo da década de 90, coincidindo com a morte de Escobar e o desmantelamento de alguns cartéis e, sobretudo, no período em que negociava a paz com o presidente Andrés Pastrana, que a guerrilha assumiu de vez o controle da produção e a venda da cocaína para o exterior, inclusive usando rotas pelo Brasil.


Segundo informações do governo da Colômbia, atualmente cerca de 60% da receita da guerrilha provém do narcotráfico. Além de financiar as ações das Farc, a aproximação com os traficantes possibilitou também o acesso a novos armamentos de combate. Neste cenário, além de acabar com um longo e sangrento conflito, um acordo de paz terá ainda implicações no atual mercado de produção e venda de cocaína no mundo.

Autor

Luciano Velleda


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