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Hora de despertar

Pais e educadores são mal informados sobre distúrbios do sono, cada vez mais comuns em crianças e jovens

Publicado em 10/09/2011

por Cassiano José

"Fico das dez da noite até as quatro da manhã olhando pro teto. Aí eu consigo dormir. Às vezes. Mas, como tenho de acordar cinco e meia pra ir pra escola, fica muito complicado… Mato muita aula e, ano passado, bombei por falta. Porque, quando dá quatro da manhã e eu consigo dormir, simplesmente não levanto mais. E, quando levanto e vou pra escola, sou expulsa da sala por dormir na aula. Às vezes, choro de tanta tristeza. É insuportável ficar horas parada olhando pro teto! Quando a insônia vem, vou pro computador, mas a minha avó aparece na porta dizendo que vai desligar a energia, se eu não desligar o computador. Não sei o que fazer. Na semana em que a insônia vem, não há qualidade de vida pra mim."

Essa mensagem, escrita por Vanessa Vieira, de 16 anos, aluna do 2º ano do ensino médio de uma escola privada de Goiânia, foi publicada num fórum de internet e destinada àqueles que, como ela, sofrem para dormir. É o desabafo e o pedido de socorro de quem não vem encontrando, nem na escola nem em casa, apoio para voltar a viver com qualidade.

Vanessa nem sabe, mas sofre de atraso de fase de sono, a DVS (Desordem da Vigília e do Sono) mais comum entre adolescentes. O atraso de fase caracteriza-se por um início tardio do sono, já em alta madrugada. Diferentemente do insone, que dorme pouco e mal, quem tem atraso de fase dorme bastante e bem, mas num horário que impossibilita a pessoa de estar disposta e produtiva na parte da manhã. O fenômeno, que só passou a ser entendido nos últimos trinta anos, é tratado pela medicina como distúrbio, mas pais e professores têm dificuldade de aceitá-lo como tal. Eles tendem a atribuir a inadequação do jovem à indisciplina e à desorganização, um julgamento que o neurocientista Fernando Louzada, professor do Departamento de Fisiologia da UFPR, rejeita com veemência: "Não é uma questão de se esforçar. Há pessoas que não conseguem ajustar o horário". Louzada entende que obrigar adolescentes a entrar na escola às 7h é excluir da boa educação aqueles em que o atraso de fase é mais grave. "A escola precisa compreender que isso faz parte da adolescência e mudar o horário de aula", defende.


Rendimento comprometido


Ajuste do sono: para o adolescente Pedro Gabriel Nuzzi Gil, aluno do Colégio Cristo Rei, o ideal seria estudar à tarde

O estudante com DVS é excluído da boa educação porque suas funções cognitivas são comprometidas. Os distúrbios mais comuns na infância são a apnéia obstrutiva do sono, que se caracteriza pela suspensão temporária da respiração, e o ronco. "Os sintomas perceptíveis na escola são déficit de atenção ou hiperatividade", explica Rosana Souza Cardoso Alves, presidente da Sociedade Paulista de Medicina do Sono e responsável pela área de sono do Laboratório Fleury. O aluno com DVS não se concentra e aproveita menos a aula, mas mesmo quando aproveita isso não adianta muito: a privação de sono afeta a memória, a capacidade de retenção de informações, a consolidação do que foi estudado.

Enquanto dorme, a pessoa passa por vários estágios de sono, entre eles o REM (Rapid Eyes Movement, Movimento Rápido dos Olhos), ciclos durante os quais acontece a síntese protéica neuronal, responsável pela recomposição dos neurotransmissores e remodelagem de sinapses e receptores do sistema nervoso central. Os ciclos REM são mais freqüentes e demorados na segunda metade de uma noite normal, com oito horas de sono. É a falta deles que prejudica o desempenho escolar de quem tem alguma DVS.

No que diz respeito aos adolescentes, como o atraso de fase de sono é próprio da idade, raros são os casos que precisam de tratamento. Em geral, considera-se que o jovem deve ser encaminhado ao médico quando demora mais de trinta minutos para dormir, ao menos três vezes por semana, por um período de seis meses consecutivos. Exatamente como fez a família de Pedro Gabriel Nuzzi Gil, de 16 anos, aluno do Colégio Cristo Rei, de São Paulo.

Na passagem do ensino fundamental para o médio, ele começou a ter novos hábitos: mais interesse pela televisão e pelo computador. Em 2006, ia deitar-se às 23h e só conseguia pegar no sono por volta da meia-noite. O despertador, implacável, tirava-o da cama às 6h45, muito antes de se completarem as nove horas de sono de que o organismo de um adolescente precisa normalmente. Resultado inevitável: sonolência em sala de aula e queda no desempenho escolar. Pequena, é verdade, mas suficiente para motivar sua mãe a levá-lo ao Instituto do Sono, ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde vem se tratando apenas com a reeducação dos hábitos de sono. O tratamento já está dando resultado.

Luiz Gustavo Mariano Câmara, também de 16 anos, estudante do 2º ano do ensino médio do Colégio Magno, de São Paulo, é outro caso típico de atraso de fase sem maiores prejuízos. Ele gosta da noite, seu horário preferido para estudar. Em 2006, exagerou na vigília, indo muitas vezes se deitar às 2h30 para acordar às 6h. Nem sempre conseguia se levantar. Faltava freqüentemente à primeira aula do dia. Foi assim durante todo o primeiro semestre. No segundo, preocupado com o número elevado de faltas, conseguiu estabelecer por conta própria uma rotina que, se não é considerada a ideal pelos médicos, permite pelo menos que aproveite melhor as aulas: levantar na hora de ir para a escola e dormir à tarde para compensar.


Adaptar-se ao meio


Para a pediatra Lucila Fernandes do Prado, da Unifesp, desinformação generalizada ajuda a elevar os casos de distúrbio do sono

Quando o atraso de fase tem conseqüências sérias, não resta alternativa ao adolescente a não ser aprender a viver com ele de modo a minimizar os efeitos. "Não vale a pena brigar com o sono", explica Fernando Louzada. "Tem de se ajustar."

A curitibana Alline Flores Brito tem 20 anos, está no 3º ano de biologia e é estagiária do professor Louzada no Departamento de Fisiologia da UFPR. Começou a ter dificuldade para dormir no início do ensino médio e nunca mais soube o que são oito horas seguidas de sono à noite. Tratou-se com um neurologista, tomou remédios, e nada. Como Luiz Gustavo, passou a dormir à tarde para compensar. Mas a necessidade de estagiar roubou-lhe o cochilo vespertino e colocou-a, ironicamente, no departamento da UFPR que estuda questões relativas a distúrbios do sono. Sua máxima é a seguinte: "Já que o meio não se adapta a mim, vou ter de me adaptar ao meio". Depois de anos sofrendo com a dificuldade para fixar os conteúdos estudados, ela acredita ter desenvolvido a capacidade de se concentrar nas tarefas, mesmo caindo de sono. Mas só ela sabe o esforço que tem de fazer para conseguir isso. Esforço raramente compreendido pelos que dormem à noite naturalmente.

Vanessa Vieira, por exemplo, apresenta sintomas de DVS desde os 12 anos, quando estava na 6ª série. Ninguém fez nada, e o quadro foi se agravando até que, em 2006, ela passou a perder um a dois dias de aula por semana. Quando conseguia ir para a escola, dormia sentada, a ponto de os professores às vezes terem dificuldade para acordá-la. Sempre cansada, perdeu a disposição para tudo, mostrando-se irritada, sem paciência, mal-humorada. Com isso, perdeu amigos, claro. "O povo tem medo de conversar comigo", admite. Perdeu, no fim, o ano letivo. Reprovada por excesso de faltas. E perdeu, enfim, a confiança em si mesma.

Filha de pais separados, Vanessa mora com a mãe, o irmão e a avó. O pai paga para ela um plano de saúde. Vanessa já pediu para que ele marcasse uma consulta com um especialista em medicina do sono. O pai acha graça, ri e diz que ela precisa só desligar a televisão e ir dormir. Em casa, no quarto que divide com a mãe, Vanessa passa madrugadas olhando para o teto, longe da TV. Quando, vencida, se levanta e vai para o computador passar o tempo, a avó desperta para repreendê-la. Na escola, escuta dos colegas, em tom de chacota, que "passou a noite na farra". Quando não vai, uma professora aproveita sua ausência e faz piada dela para os alunos.


Desinteresse e desinformação


Especialista em terapia comportamental cognitiva, Luciane Carvalho alerta que a profusão de estímulos está afetando a qualidade do sono da população

São casos como o de Vanessa que levam o professor Louzada a defender que as escolas precisam incluir o tema do sono em seus currículos. A rigor, já deveria estar incluído, pois consta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) do ensino médio, em biologia. Mas o fato é que não está. "A escola está lidando muito mal com a questão", afirma Louzada.

Não só as escolas. Lucila Fernandes do Prado, pediatra, especialista em sono, neurofisiologista da Unifesp, diz que seus colegas de profissão, durante as consultas, questionam sobre vacinas e muitas outras coisas, mas raramente se lembram de perguntar sobre o sono da criança. Assim, protegidos pelo desinteresse e pela falta de informação, os casos de DVS aumentam no país, seja em crianças, adolescentes ou adultos. "A oferta de estímulos é cada vez maior para que todos fiquem acordados, e os brasileiros têm dormido cada vez pior", aponta Luciane Carvalho, psicóloga especialista em terapia comportamental cognitiva do Setor de Neuro-Sono da Unifesp.

O maior problema são os estímulos visuais carregados de luminosidade, como computadores, TV e videogames. A exposição à luz artificial faz com que o hipotálamo (parte do cérebro que, entre outras funções, regula o sono) iniba a produção de melatonina pela glândula pineal. A melatonina é o hormônio indutor do sono nos humanos. Durante o dia, a produção de melatonina é pequena. Quando anoitece, o organismo entra numa fase chamada "noite biológica", em que aumenta a secreção de melatonina. Em algumas pessoas, mais sensíveis, o excesso de estímulos luminosos prejudica esse ciclo.

 Segundo o Ministério da Saúde, cerca de 15 mil polissonografias foram feitas pelo Sistema Único de Saúde em nove Estados do país, em 2005 e 2006. A polissonografia é o exame que fornece dados precisos sobre as fases do sono da pessoa e os padrões respiratórios e cardíacos ao longo da noite.

O problema vem crescendo também nos Estados Unidos, onde a Fundação Nacional do Sono constatou que apenas 15% dos jovens de 13 a 18 anos dormem o número de horas necessário para uma vida saudável. Constatou também que mais de 50% dos pais norte-americanos desconhecem as necessidades de sono dos filhos e não conversam sobre isso com os médicos.

As escolas, no entanto, começam a dar atenção ao problema. Em Minnesota, algumas delas atrasaram o horário de início das aulas dos adolescentes, e houve melhora significativa no rendimento escolar. Pedro Gabriel Nuzzi Gil gostaria de ver algo parecido ser feito no Brasil: "Gostaria que o ensino médio fosse à tarde", diz. "Você aproveita menos o dia, mas vale a pena."

Mas o que precisa mudar mesmo, na opinião de Lucila, é a maneira como pais e professores enxergam o jovem que troca o dia pela noite. Segundo ela, é próprio da evolução da espécie humana gerar indivíduos que passam a madrugada em claro, vigiando enquanto os outros dormem. Torna-se um problema a partir do momento em que afeta a vida social da pessoa. Louzada entende que a sociedade precisa fazer sua parte e oferecer condições para que todos tenham vida social normal. Por enquanto, resta a jovens como Alline adaptar-se ao meio.




Para dormir bem


Saiba que atitudes ter e evitar durante o dia para ter um sono tranqüilo.

Ajuda

Estabelecer uma rotina diária;
Estabelecer uma rotina de preparação para dormir;
Tomar uma xícara de leite quente antes de se deitar;
Escutar música, ler um livro ou fazer relaxamento antes de ir para a cama.

Atrapalha

Comer em excesso à noite. A dificuldade para fazer digestão atrasa o sono;
Fazer atividade física à noite;
Ficar na cama sem conseguir dormir. Se está sem sono, é melhor levantar e procurar algo relaxante para fazer;
Beber café, chá mate, guaraná e Coca Cola após as 17h;
Jogar videogame antes de dormir;
Dormir mais de meia hora durante a tarde;
Ficar exposto à luminosidade (mesmo a do computador e da televisão) antes de ir para a cama.

Autor

Cassiano José


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