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Identidade perdida

Educadores enfrentam o desafio de criar métodos para o ensino da sociologia no ensino médio. Falta de histórico pedagógico e programa curricular mínimo são apontados como principais dificuldades

Publicado em 10/09/2011

por Juliana Holanda


Amaury Cesar Moraes, da Feusp, alerta:"a sociologia não pode ser ensinada sem leitura e escrita"

Há seis anos, o professor de sociologia Luiz Fernandes de Oliveira tentava explicar a seus alunos do ensino médio da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (Faetec) o que é ideologia. A conceituação sociológica do termo parecia muito complexa para os estudantes. Ele teve a idéia, então, de misturar o filme Matrix, então popular entre os alunos, à explicação do conceito. "Pela primeira vez, parte dos estudantes entendeu o que era ideologia", lembra Fernandes, que escreveu, em parceria com Ricardo Cesar Rocha da Costa, o livro Sociologia para jovens do século 21.

O esforço de Fernandes para captar o interesse de adolescentes para conceitos sociológicos deve se tornar mais freqüente nas salas de aula de todo o país. A aprovação da obrigatoriedade da sociologia no ensino médio suscita debates em torno de qual conteúdo pedagógico é o mais adequado para essa etapa de ensino.

A inclusão das disciplinas de sociologia e filosofia no ensino médio resulta da alteração da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) homologada em 2008, após oposição do Conselho Estadual de São Paulo. Em 2006, o Ministério da Educação já havia publicado a orientação curricular para as disciplinas, pois os componentes eram ofertados por muitos estados brasileiros. A partir de consultas dos sistemas educacionais, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou parecer, que aguarda homologação do ministro Fernando Haddad para virar resolução, no qual diz que "as escolas têm autonomia quanto à concepção pedagógica e à formulação de sua correspondente proposta curricular, desde que garantam sua completude e coerência (…)". As secretarias de educação têm se organizado para se adequar ao cronograma de inclusão das disciplinas, que começa em 2009 e vai até 2011, mas nem todas estão com suas propostas curriculares prontas.

A falta de um currículo nacional mínimo ainda gera controvérsias entre educadores e sociólogos. "É lamentável que cada professor lecione o que quiser. Se não fixarmos um currículo mínimo, duas instituições vão fixar: as editoras e os grandes vestibulares. Deveria ser o contrário", defende Lejeune Xavier de Carvalho, presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo.

O professor do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação da Faculdade de Educação da USP Amaury Cesar Moraes, integrante do grupo que elaborou as orientações curriculares para o MEC, diz que seria difícil chegar à unanimidade entre os próprios professores. "Se implantássemos um currículo único, teria gente contra e a favor. Os contra não iriam adotar. E os a favor poderiam não ter condições de ministrá-lo, já que a própria formação das ciências sociais é diversificada", reflete. Quanto à influência das editoras e dos vestibulares, Amaury acredita que a dinâmica atual é outra. "Sempre tivemos livros didáticos e eles nunca se pautaram por conteúdos definidos. Já os vestibulares tiveram como referência, nos anos 30 e 50, o que o ensino médio queria. Com o passar do tempo, os vestibulares estão ficando mais autônomos."

Amaury crê ser natural que o processo de consolidação do ensino da disciplina seja lento. "Pode demorar para termos um currículo com 70% a 80% de homogeneidade. É preciso tempo para o professor observar o que seria um currículo geral", diz.


Criatividade necessária

Além do caráter genérico das orientações curriculares, os professores também enfrentam outros problemas: a falta de tradição pedagógica da disciplina, que durante os últimos 80 anos apareceu de forma intermitente nos currículos; a histórica oposição dos próprios sociólogos entre uma tendência conceitual linear e outra temática fragmentada; e a falta de livros didáticos apropriados para a faixa etária. "É preciso criar uma identidade para o ensino médio para que o aluno perceba a contribuição da sociologia", define Marcos Barbosa Gonçalves, professor da Secretaria de Educação do Distrito Federal.

A formação docente também preocupa. "Mesmo em outras disciplinas, a universidade não forma para o ensino médio em si. Ninguém sabe o que acontece na escola. Quando o professor chega, leva um choque. Na sociologia é mais grave porque não existia a disciplina, era muito acadêmica", diz Marcos. O que acontece, na prática, é que cada professor dá forma própria à dinâmica em sala de aula. "A sociologia está ligada à perspectiva de mundo que o professor tem. Os que saíram há pouco tempo da universidade ainda trazem a sociologia acadêmica. Os mais antigos sabem que não tem espaço para muita teoria", diz Marcos Barbosa.

Quando começou a dar aulas, Marcos percebeu que a "cultura da xerox", vigente na universidade, não dava certo no ensino médio. Os livros didáticos disponíveis, segundo ele, não tinham linguagem adequada aos alunos. Ele começou a redigir textos para usar em sala e acabou por escrever o próprio livro: Fundamentos da Sociologia, que vai para a 3ª edição. "Estamos criando uma linguagem para o aluno do ensino médio."

A dificuldade foi a mesma encontrada pelos professores autores Luiz Fernandes e Ricardo Cesar. A experiência de dez anos na Faetec do Rio mostrou que a criatividade do professor é preponderante e a construção de uma interlocução com os alunos, fundamental. Eles desenvolvem diversas atividades fora de sala de aula, utilizam muita imagem para explicar conceitos e aproveitam sugestões dos alunos para melhorar o livro didático, reeditado em 2007. Entre as intervenções dos estudantes, os principais pedidos foram com relação a mudanças na linguagem, introdução de exemplos e sugestões de exercícios. Os alunos também contribuíram com charges e ilustrações. "Não estamos formando sociólogos, o importante é que os alunos saibam pensar a sociedade", diz Ricardo.

Na realidade do ensino técnico, em que parece ser ainda mais difícil incorporar disciplinas das ciências sociais, os docentes aproveitaram o caráter de interdisciplinaridade da sociologia. Ao propor a discussão do tema violência em sala de aula, pediram que os alunos estruturassem um banco de dados com informações do entorno da escola. A capacidade de desenvolver pesquisa científica, mesmo no ensino médio, é defendida por Amaury. "É possível fazer pesquisa com qualidade, sem precisar ser uma pesquisa grande. Os alunos podem apresentar projetos", diz.

Outro entrave para a adoção de um currículo único é a falta de consenso sobre qual conteúdo ministrar. A tensão entre a priorização de linhas teóricas e a mera exposição de exemplos do cotidiano sempre estiveram presentes no ensino da disciplina. Na opinião de Lejeune Carvalho, o currículo mínimo deveria ter três principais eixos: as origens da ciência, os principais pensadores com as questões clássicas, e a sociologia política, com temas da atualidade. "Se a parte histórica não é dada, fica só o dia-a-dia, sem uma ligação teórica-histórica", defende.

Amaury concorda que é necessário unir teoria e prática, mas desconfia da imposição dos conteúdos. "Não sei se é possível ter um currículo que atenda aos objetivos da disciplina, que é o de promover a cidadania. Não há um currículo que atenda a esses objetivos, nem que seja uma unanimidade do ponto de vista dos professores."

A distinção da disciplina deverá ser construída com a prática em sala de aula, exigindo do professor inventividade para trabalhar os conteúdos, em oposição às aulas meramente expositivas de outras disciplinas. "O trabalho do professor nunca deveria ser fácil. A má formação e a impossibilidade de elaborar o próprio material didático fizeram com que o professor virasse um mero carregador de manual, ou seja, com um trabalho mecânico e pouco inventivo," diz Amaury.


As relações e efeitos do capitalismo e da globalização sobre o mundo do trabalho estão entre os temas sugeridos para reflexão na aulas de socilogia

Eixos pedagógicos

No vídeo Sociologia no ensino médio, que tem roteiro de Amaury Soares e Nelson Dácio Tomazi, da Universidade Federal do Paraná, os educadores também defendem o ensino a partir de três eixos temáticos: teorias, conceitos e temas, trabalhados de forma transversal. As teorias são essenciais por levar em conta a tradição sociológica, e podem ser vistas por meio de um conjunto de autores ou por autores em separado; os conceitos podem ser apresentados a partir de diversas teorias, mas precisam ser abordados em conexão com a realidade, que é facilitada pela utilização de temas, que conduzam os debates em sala. "O trabalho do professor não é só voltar-se para temas imediatos, mas para os temas universais. O entendimento de que problemas contemporâneos são estruturais contribuem para que os alunos desenvolvam possíveis soluções pessoais e coletivas", defende Amaury.

O formato deve ir além da aula expositiva e incluir seminários, debates, redação de relatórios e o uso de imagens, já que os alunos nessa idade estão muito influenciados por informações imagéticas. Para isso, são propostas questões em sala de aula, que podem utilizar jornais, filmes e programas de televisão para provocar afirmações que partem do senso comum e a partir de então explicar os conceitos da disciplina. Entre os temas mais utilizados pelos professores estão violência, capitalismo e globalização. "A religiosidade é um tema que interessa a todos os jovens hoje e está presente em todo o país. Eles têm dificuldade de tratá-lo, mas é um assunto bem fundamentado na sociedade", diz Luiz Fernandes, da Faetec.

O professor pode elaborar um roteiro para ampliar a capacidade de leitura dos alunos e sempre pedir que as conclusões sejam redigidas. "A sociologia não pode ser ensinada sem leitura e escrita. O aluno tem de saber conceituar, passar do senso comum e do discurso jornalístico da televisão, que é muito imediatista", diz Amaury.

Sair do senso comum e ser capaz de formular conceitos com fundamento científico é um dos principais objetivos e contribuições que a sociologia pode oferecer aos alunos. Para Amaury e Tomazi, dois princípios que podem nortear o trabalho do professor em busca desse objetivo são o princípio do estranhamento, quando o aluno deve chegar à afirmação "eu nunca tinha pensado nisso", e o princípio da desnaturalização, que deve revelar: "o que você está vendo não é".

"A sociologia tem três papéis fundamentais no ensino médio: desenvolver as competências cognitivas, por relacionar lógica aos temas do cotidiano; promover a reflexão sobre a realidade social, o que pode reforçar a relação do estudante com o seu meio; e desenvolver conteúdos científicos próprios, que auxiliam na articulação com questões contemporâneas", define Ruy Braga, professor do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Por essas características, também pode contribuir para melhorar o desempenho dos alunos em outras disciplinas, com a melhora da interpretação de texto e a capacidade de escrita e argumentação.

O trabalho dos professores em sala de aula e os efeitos da disciplina podem demorar algum tempo para ser percebidos. Até lá, está sob responsabilidade dos educadores construir esse caminho. "Em 20 anos a lei estará consolidada. Vão surgir diversas experiências, livros, propostas. Apesar de tudo, existem conceitos iguais a serem trabalhados. O problema está do nosso lado, nós que teremos de construir nossa identidade na sociologia", diz Marcos Barbosa.

Professores formatam currículos

A discussão sobre o currículo a ser adotado no ensino de sociologia gerou polêmica no Estado de São Paulo. Após consulta à Sociedade Brasileira de Sociologia, a Secretaria de Estado da Educação do Estado de São Paulo optou por adotar o estudo da antropologia no 1º ano, sociologia no 2º e ciências políticas no último ano do ensino médio. Segundo Amaury César Barbosa, da Faculdade de Educação da USP e membro do Conselho que definiu a grade curricular, essa é apenas uma orientação. "Pode ser que, com o tempo, saia a sociologia e entre o estudo das ciências sociais, como é do histórico brasileiro", reflete. Os sociólogos não gostaram. "O programa não é de sociologia, e a lei é clara", diz o presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, Lejeune Xavier de Carvalho.

No Rio de Janeiro, os professores da Fundação de Apoio à Escola Técnica do Estado do Rio de Janeiro (Faetec) se uniram para formatar um currículo unificado para a rede. No primeiro Fórum de Sociologia e Filosofia da Faetec, realizado em outubro passado, foi aprovada a proposta de conteúdos básicos para o ensino da disciplina. No 1º ano, os alunos verão "sociologia e trabalho", no segundo ano, "sociedade, cidadania e ideologias" e no último ano, "sociedade, desigualdades e diferenças".   No Distrito Federal, que adota a disciplina desde 2000, os professores também participam da construção do currículo. A Secretaria de Educação do Distrito Federal vai alterar o conteúdo de sociologia neste ano, a partir de sugestões dos professores e suas experiências em sala de aula. A disciplina está baseada em conceitos, teorias e temas e estruturada nos eixos cidadania, trabalho e cultura. "Para chegar a este ponto em que estamos, discutimos desde 2007. Currículo tem de ter a participação do professor", diz Penha Júlia de Castro, diretora de ensino médio da Secretaria.

Autor

Juliana Holanda


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