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Novos arranjos

Alunos dispersos, caos, bagunça. Esta percepção da sala de aula contemporânea, alicerçada numa visão educacional que propõe que os alunos sejam um todo homogêneo, pode ser contraposta a uma outra, que se valha das interações entre estudantes e destes com o professor

Publicado em 10/09/2011

por Deise Amaral e Ingrid Frank


O professor François, vivido por François Bégaudeau, interage com os alunos no filme Entre os muros da escola, Laurent Cantet: representação das tensões e dos questionarios discentes sobre o valor da linguagem do universo acadêmico

Tente visualizar a cena: sala de aula tranqüila, o professor faz uma pergunta, os alunos respondem, o professor avalia suas respostas. Olhos atentos à figura do mestre, qualquer palavra ou movimento indicativo de desatenção à aula é passível de sanção pelo professor. Você reconhece essa cena em sua sala de aula? Agora pense na seguinte: diversas vozes em sobreposição; em meio ao barulho, o professor dirige uma pergunta aos alunos; um deles responde fazendo uma piada; outro faz menção a uma música funk cujo refrão contém uma palavra usada pelo professor ao fazer a pergunta, enquanto uma menina pede para os colegas se calarem. Essa segunda descrição parece ser mais facilmente reconhecível em nossas aulas, não? E, por muitas vezes, pensamos que perdemos o controle, que não há mais o que fazer, que nossa aula se transformou num caos… Não necessariamente.

Um recente estudo voltado à  análise do discurso interacional, publicado no livro Language in late modernity: Interaction in an urban school (CUP, 2006, ainda não publicado em português, mas que poderia ser traduzido livremente como A linguagem na modernidade tardia: Interação numa escola urbana), de autoria do pesquisador britânico Ben Rampton, aponta para uma nova organização da comunicação em sala de aula. Segundo o autor, professor de sociolingüística aplicada do King´s College, em Londres, e diretor do Centro para Linguagem, Discurso e Comunicação, essa nova organização estaria substituindo a ordem tradicional na qual o professor dispunha de poder para determinar quando, onde e sobre o quê os alunos teriam o direito de falar  – isso quando a eles franqueado esse direito – por uma organização em que os alunos também tomam a iniciativa e estabelecem suas preferências em relação ao que acontece na sala de aula. 


Escuta ampliada


O estudo de Ben Rampton envolveu um trabalho de etnografia lingüística (com dados coletados de interações reais), em que ele acompanhou o dia-a-dia de alunos adolescentes de 13 e 14 anos e professores de uma escola pública secundária em Londres em diversas disciplinas. Além de observar aulas e conversar com os alunos, o pesquisador utilizou microfones, que foram acoplados às roupas dos participantes, o que permitiu o exercício de um olhar para a sala de aula não apenas a partir da interação aluno-professor, mas também para a interação entre alunos.  Disso resulta uma discussão bastante rica e informada sobre a sala de aula contemporânea, que o autor desenvolve ao longo do livro e que pode ser bastante útil por analisar questões que vivenciamos diariamente em nossas salas de aula.

De acordo com os dados de sua pesquisa, a escola moldada para ensinar os jovens a ficar quietos e a fazer o que lhes é mandado está em crise. E, em lugar dela, está sendo construída uma outra, em que os alunos participam e se posicionam em relação aos tópicos pelos quais se interessam, sendo que essa participação é própria de um tempo em que a tecnologia, a internet e a difusão da informação são constantes em todos os ambientes. Assim, os alunos se dividem em diversos focos de atenção, "abrem links" para novos assuntos a partir do tópico proposto pelo professor, relacionam o tema a músicas que ouvem ou a programas que assistem na TV, e corrigem ou ampliam a informação trazida pelo professor. Tudo isso é realizado às vezes no foco central da aula, mas também, e muitas vezes, em focos de atenção periféricos, ou seja, nas conversas paralelas. A partir de uma análise detalhada das interações na sala de aula estudada, o autor propõe que a homogeneização dos alunos, tão almejada pela escola tradicional – visto que ligada ao progresso sistemático e organizado – é hoje incompatível com a pluralidade e a diversidade características da modernidade tardia. Noções de sistema e de organismo, preconizadas no passado, hoje se opõem às idéias de diversidade, de contingência e de multiplicidade das situações e dos indivíduos. Numa época que dá oportunidade para que cada um busque suas múltiplas identidades, trilhando um caminho singular através dos grupos a que se filia – seja nas comunidades de que participa no Orkut, nas dos sites que acessa ou das músicas e vídeos que baixa e coloca na internet -, não é mais possível ao professor ver os alunos como um todo homogêneo e ignorar suas características individuais.


Presença dos meios


Nos dados trazidos por Rampton, a influência da cultura midiática na sala de aula é representativa dessa busca pela individualidade. Em vários momentos, os alunos cantarolam músicas pop enquanto o professor está falando e fazem referência a músicas e propagandas de TV conhecidas quando respondem às suas perguntas. Isso acontece porque, segundo ele, a cultura pop apresenta características que se contrapõem às da sala de aula tradicional. Ela possibilita ao indivíduo escolher as músicas e as influências com as quais se identifica; possibilita interpretá-las livremente e, além disso, elas têm um significado singular para cada pessoa, sendo que cada um pode se identificar com as músicas que quiser e tomá-las como parte de sua história. Tais características contrastam com o discurso de sala de aula tradicional, em que o currículo é posto independentemente da preferência do aluno, e os assuntos tratados em aula acabam por, muitas vezes, não terem relevância alguma para ele, que é considerado parte indistinta de um grupo homogêneo. Assim, para Rampton, a música pop trazida pelos alunos para a sala de aula não é vista apenas como um ato de rebeldia, mas constitui um modo de adaptação e de busca de identidade naquele contexto. Além disso, a manifestação pública do gosto musical pode atrair adesões de colegas que partilham do mesmo gosto e, assim, formar mais uma comunidade, mesmo que efêmera, de identificações musicais.

Mas, ao contrário de uma conclusão apressada, que poderia indicar ser impossível conciliar as características da contemporaneidade com as da escola, a pesquisa de Rampton mostra professores e alunos negociando maneiras de lidar com manifestações dessa mudança histórica em sua sala de aula. E isso, nos dados de sua pesquisa, aparece de diferentes formas: o professor ainda busca dar conta do currículo, ainda quer transmitir os valores simbólicos consagrados historicamente e, em meio às diversas vozes se sobrepondo na sala de aula, acaba se amparando em qualquer contribuição de algum aluno que possa ser relacionada ao tópico em questão. A resposta do aluno à sua pergunta vem na forma de alguma música pop? OK, o professor ratifica a resposta e ainda a expande. A resposta trata de algum fato amplamente divulgado na mídia e apenas tangencia o tema em questão? OK, o professor trata do novo tópico, mas tenta voltar ao conteúdo da aula. A resposta vem em um fragmento de língua estrangeira de prestígio, presente no currículo? OK, o professor acolhe e ainda faz um breve comentário na língua estrangeira. A opção de aceitar a contribuição dos alunos, do jeito que vier, faz com que o professor não fique falando sozinho na frente do grupo. É isso ou nada. Ou, o que é ainda pior, não aceitar o que os alunos têm a dizer pode resultar em bate-bocas ou em agressões físicas, violências que se têm tornado notícia recorrente das salas de aula.


No documentário Pro dia nascer feliz, de João Jardim, as tensões entre alunos e entre estes professores aparecem com força: fica clara a dificuldade de a instituição escolar lidar com um aluno diferente daquele que idealizou

Exuberância discente

Assim, vemos que a participação dos alunos continua sendo primordial na sala de aula contemporânea, uma vez que os professores organizam suas aulas esperando e contando com ela. A participação dos alunos de hoje, no entanto, tem um caráter bastante distinto daquela que se queria no passado – que se limitava a prover respostas às perguntas do professor para que elas fossem avaliadas como corretas ou não . Trata-se de uma "participação exuberante", de acordo com a denominação proposta por Rampton. Alguns dos alunos observados por ele demonstravam estar "hiper-envolvidos" nas atividades de sala de aula ao interromperem o professor e completarem suas frases mesmo quando não solicitados, ao responderem às suas perguntas com algum tipo de imitação de sotaques e/ou cantando, ou ao darem, eles mesmos, feedback ao que o professor dizia ou ao que os colegas respondiam. Rampton nos leva a perceber que os alunos que se sentem motivados a participar , e que o fazem dessa forma "exuberante", na verdade ajudam o professor no que ele propõe. Suas contribuições são essenciais para que a atividade progrida e, ainda que estranhas ao modelo tradicional de "bom aluno", são elas que legitimam a proposta do professor. Da mesma forma, a referência dos alunos a músicas, a slogans de peças publicitárias, a frases de efeito e a tantas outras influências da mídia e da cultura popular podem estar , na verdade, a serviço do currículo, não se constituindo em apenas manifestações de rebeldia ou enfrentamento à ordem da sala de aula.

Assim, essa participação, que seria considerada em outros tempos (e ainda hoje pode ser) como a instauração do caos pode ser entendida, ao contrário, como uma das maneiras que alunos e professores estão construindo para lidar com as peculiaridades da nova ordem comunicativa própria da modernidade tardia. Se a geração dos celulares, mp3, torpedos e outras tecnologias não aceita participar da aula do mesmo modo como seus pais o faziam – ou quem sabe seus avós – algum tipo de adaptação precisa ser negociada entre os alunos e o professor. Reclamar que os alunos de hoje não se concentram como os de antigamente não parece trazer benefício algum. Se concordamos com o autor que estamos vivendo uma nova ordem comunicativa, ela parece ter vindo pra ficar, e não há como impedir a influência da tecnologia e da mídia  em sala de aula.

Nesse sentido, o estudo de Rampton nos mostra um primeiro passo que podemos dar para tentar lidar com essa nova situação: olhar para a nossa sala de aula buscando compreendê-la também a partir do ponto de vista dos alunos, o que implica considerá-los como indivíduos com todas as suas peculiaridades, fortemente influenciadas pelo mundo tecnológico em que hoje vivemos. Ao invés, então, de nos perguntarmos se os alunos são capazes de se modificar a ponto de conseguir participar da aula "como antigamente", talvez seja necessário nos perguntarmos de que maneira podemos lidar com essa nova ordem comunicativa no curso das aulas. Talvez seja necessário buscarmos também, em nosso contexto, descrições de boas práticas de sala de aula em que professores e alunos demonstram estar engajados na busca de maneiras de lidar com essa nova ordem comunicativa. Olhar para a ecologia de salas de aula de verdade e atentar para micro-momentos de interação entre alunos e professores pode revelar muito do que de fato está acontecendo ali. Quem sabe a nossa própria sala de aula já não esteja repleta de momentos em que lidamos, junto com nossos alunos, com essa nova ordem comunicativa, e ainda não nos demos conta?  Quem sabe já estejamos também conseguindo lidar com isso e ainda achamos que está tudo errado e que não há mais o que fazer? Alunos dispersos, caos, bagunça ? Como vimos, não necessariamente.


Deise Amaral e Ingrid Frank


são professoras de línguas e mestrandas em lingüística aplicada na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Autor

Deise Amaral e Ingrid Frank


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