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Entrevistas

O professor ensaísta

Literatura, cinema e filosofia. Para o espanhol Jorge Larrosa Bondía, estes deveriam ser os pilares da formação de professores, que poderiam, também, treinar a escrita de ensaios, como forma de aprender a organizar os pensamentos

Publicado em 03/05/2013

por Camila Ploennes

O professor Jorge Larrosa Bondía reivindica uma língua diferente para falar de educação. Segundo ele, os especialistas se apropriaram da linguagem pedagógica e, com ela, constroem posicionamentos do ponto de vista da desigualdade no que diz respeito aos docentes e à realidade da escola. Diante dessa análise, Larrosa – que é professor titular de teoria e história da educação na Universidade de Barcelona, doutor em pedagogia e fez estudos de pós-doutorado na Universidade de Londres e na Sorbonne (Paris) – propõe em sua obra o ensaio como gênero textual acessível a todos e que permite exercitar mudanças no pensamento, na escrita e na vida.






Para Larrosa, educar é estabelecer a relação entre a criança e o mundo; um espaço para o imprevisível. Segundo ele, ao passo que a possibilidade de subverter regras se afasta, não há educação. “Há Mickey Mouse, corporações, futuro do país”, afirmou durante o seminário “Educação integral: crer e fazer”, que lançou a 10ª edição do Prêmio Itaú-Unicef, em São Paulo, no mês de abril.


Em sua palestra, no auditório da Fecomercio-SP, Larrosa expôs em voz alta o que parece um ensaio. Criticou os “conselhos administrativos de grandes instituições financeiras”, o modismo do uso das palavras “inovação”, “autonomia”, “crítica” e “futuro” quando se fala sobre educação e o personagem mais emblemático da Disney – segundo ele, “um ogro sedutor de crianças que as coloca no consumo”. O tom crítico da apresentação foi mantido durante a entrevista exclusiva, concedida, na sequência, à subeditora Camila Ploennes.


Durante a conversa a seguir, Larrosa diz que a tarefa principal de um educador é tornar o mundo interessante e que a arte não é instrumento para isso, mas um fundamento. Também afirma não concordar com os rankings e com o que chama de “obsessão por avaliações” em educação. “Quero dizer: o Brasil, como qualquer país do mundo, tem o direito de viver sua educação no presente e não como se estivesse atrás de alguma coisa”, reflete.


No Brasil, pesquisas sobre leitura apontam que o professor brasileiro ainda está aprendendo a gostar dos livros e começando a transmitir esse gosto pelos livros para os alunos. O senhor defende o ensaio como um exercício de modificação no pensamento, na escrita e na vida. Um professor que, além de ser leitor, escreve ensaios se torna um professor melhor?
Essa reivindicação do ensaio tem uma lógica muito concreta. É que a linguagem pedagógica está capturada pela língua dos especialistas, que sempre constroem uma posição do ponto de vista da desigualdade no que diz respeito aos professores: “eu sei o que os senhores não sabem e o que eu sei é muito importante que os senhores saibam”. Há essa captura da linguagem pelos especialistas e, em outro extremo, está a literatura. E eu creio que o ensaio é interessante, porque é um híbrido entre uma linguagem que tem certa vontade de expressar conhecimento, certa vontade de dizer algo, ao mesmo tempo em que não se ajusta à linguagem técnica, dos especialistas, dos funcionários, dos políticos. Então a operação tem a ver com isso, com reivindicar um pouco uma língua diferente para falar de educação. A minha mãe foi professora de creche por muitos anos. Hoje ela tem 82 anos. Ela tinha muito talento para contar histórias. Quando ela voltava para casa, tinha uma língua muito bonita para explicar as experiências de cada dia – o que aconteceu com uma criança, com um pai, numa situação escolar. Morávamos numa aldeia muito pequenininha do interior. Quando eu tinha 16 anos, nós migramos para a cidade e, então, minha mãe começou a trabalhar em uma escola que já estava altamente colonizada pela língua dos especialistas. Ela sentiu uma coisa muito particular: que a língua dela não estava autorizada, que não falava a língua dominante e então ela sentiu isso como uma humilhação. Porque ela não dominava a linguagem da psicologia, da psicologia cognitiva, das técnicas de avaliação. E se ela não dominava essa língua, era impossível falar a língua dela. Então eu creio que ao reivindicar um pouco a literatura, o direito de o professor contar histórias, estou reivindicando um pouco a minha mãe. Porque ela tinha uma língua literária, porque era narrativa, mas ao mesmo tempo tinha a vontade de transmitir uma experiência, um conhecimento, uma aprendizagem. E eu creio que essa língua está quase desaparecendo do campo educativo, então todo mundo tem de aprender a falar como os especialistas e isso é um problema, porque essa língua é feia.


Por que é feia?
Porque não diz nada, é muito abstrata e genérica, porque não transmite vida, não está feita para o concreto, para o singular. É uma língua genérica, à qual está ligado o conceito de “geral”. Minha mãe não sabia falar “em geral”. Então o ensaio tem essa característica de ser uma língua de cada um, uma língua singular.


Quais habilidades treinamos ao escrever ensaios?
Duas são fundamentais. Uma é a capacidade de escrever, algo que não é nada fácil. Eu sou professor universitário e vivo num país onde a maioria dos jovens tem sido altamente escolarizada e, no entanto, não sabe escrever. Um colega, professor do curso de jornalismo, me disse que, de 50 alunos que ele tem, só quatro sabem escrever. Outra é a organização do pensamento, a sensibilidade para buscar a frase adequada. Escrever é sempre uma prática interessante para expor o pensamento e pensar no que se diz.


Para o professor, escrever ensaios pode ser uma forma de autoavaliação?
Sim, porque a escrita de qualquer tipo produz certa exteriorização do próprio pensamento. Ler o que você mesmo escreve é uma das coisas mais horríveis que existem. Você sempre tem a sensação de que não conseguiu escrever o que queria e vê que poderia melhorar aqui e ali. Pode ser um sofrimento, mas o resultado disso pode ser bom.


Na sua obra, o senhor expõe que os romances de formação são muito importantes para percebermos o que somos e como nos tornamos o que somos. Conhecer essa literatura pode ajudar professores e gestores escolares a repensar como a escola se tornou o que é?
Eu creio que sim. Trabalho sempre com a filosofia, mas sempre fazendo relações com o cinema, a literatura e tentando buscar uma forma de expressão que dê certa ideia do singular e do concreto. Pode ser literatura, cinema, artes plásticas, qualquer coisa. E estou cada vez mais convencido de que se poderia organizar uma graduação completa de formação de professores somente com literatura, cinema e filosofia, sem psicologia, sem didática, deixando de fora a língua dos especialistas. Estou cada vez mais convencido de que tudo está na literatura e na arte.


Por quê?
Estou a caminho de Lisboa e lá vou trabalhar por um dia com professores de arte do ensino secundário. O tema geral é “a arte como ferramenta na sala de aula”. Eu não gosto de “ferramenta”, porque arte não é ferramenta, instrumento, para nada. A arte é um meio puro e não algo que sirva para um fim exterior. Parece que a arte tem a ver com uma representação de que a educação deve estabelecer uma relação entre a infância e o mundo. A tarefa principal de um educador é fazer com que o mundo seja interessante. Nada mais do que isso. A arte é o que nos traz a carga sensível do mundo. A arte é o mundo como cor, como som, como textura, como rugosidade. É como se a arte abrisse a pele do mundo e, portanto, a arte oferece o mundo sensível e não tanto o compreensível. Se a educação tem a ver com relacionar as crianças ao mundo, essa carga sensível do mundo é fundamental. Mas não porque é separada de outras coisas, senão porque é fundamental. O mundo é sensível.


Na sua palestra, o senhor expôs que hoje, quando se fala de autonomia, está se pensando, na verdade, na “construção do sujeito como cliente e como proprietário de si mesmo”. Por quê?
Vivemos numa época de privatização, privatização do conhecimento e privatização da própria existência. Estamos em um mundo onde os sujeitos são levados a se considerarem proprietários de si mesmos. Eu tenho o meu corpo, minhas capacidades, meus talentos e tenho de rentabilizar aquilo de que sou propriedade. É uma lógica muito mercantil, muito estranha, considerar a si mesmo uma mercadoria que se tem de vender, um talento que se deve explorar. E me parece que a palavra autonomia vai um pouco nessa direção, em entender as pessoas como proprietárias de si mesmas. Já eu creio que a educação é por natureza comunista.


Como isso se manifesta?
Sabe o que a educação faz de interessante com a arte? Ela coloca a arte à disposição do público. É verdade que quando a arte se escolariza vira outra coisa, mas há uma coisa muito importante que passa por sua escolarização, que é o fato de a escola tornar a arte pública, comum. Arranca-a de seus proprietários e a converte em algo que não é de ninguém e, portanto, é de todos. Há uma palavra para isso, da qual eu gosto cada vez mais, que é “comunização”, que não tem a ver com comunicação, mas com comunismo. É tornar comum a todos algo que é privado. E eu creio que a escola faz isso com a arte, que a escolariza e que de alguma maneira a perverte, converte a uma ferramenta e ao que quer, mas faz uma coisa muito importante, que é colocá-la à disposição de todos. Por isso me parece que a escola tem um funcionamento comunista. É nesse sentido que o comunismo tem a ver com a desprivatização das coisas, com fazer com que as coisas não sejam de ninguém, mas sejam de todos. Em que lugar está o mundo comum? Em nenhum lugar, só na educação o mundo se dá como comum e cada vez menos.

Há uma discussão sobre o papel do professor quando se fala em tecnologia na educação. Muitos falam que, com os recursos em sala de aula, o professor passa a ser um mediador do conhecimento. O senhor concorda?
Não. O professor não é um mediador. Existe um invento muito prodigioso que é a sala de aula. Uma sala de porta fechada, onde se reúnem várias pessoas e um professor, juntos, de corpo presente. A sala de aula é um espaço tridimensional, onde as pessoas estão reunidas ao redor de algo que é uma matéria de estudo. Na escola, as pessoas não estão interessadas umas pelas outras, se estão ali é porque estão interessadas pela mesma coisa, que é pelo mundo, pela matéria de estudo. Então o que acontece quando a sala de aula tem tecnologia? Ela se converte em um “entorno de aprendizagem”, como se gosta de dizer agora. Esse caráter tridimensional desaparece e esse caráter “comunista” desaparece e cada um está conectado ao conhecimento de uma forma privada e particular. Mas aí a sala de aula desaparece e cada vez mais. Não é mais um espaço tridimensional, é um espaço bidimensional, como é a tela. Minha ideia é a de que cada vez mais nos relacionamos com o mundo por meio da tela, por meio do mundo bidimensional, que não tem profundidade. Quando a sala de aula se converte em um centro de conexões, esse lugar onde cada um se conecta com algo, essa dimensão do que havia de comunitário desaparece. Eu não sou contra as tecnologias, mas me parece que as tecnologias são interessantes e educativas se usadas para construir o que é comum. E se são usadas como maneiras particulares e privadas de relacionar-se com o conhecimento já não são educativas, são outra coisa.


Como elas podem ser educativas?
Quando se usam para o comum. Uma aula é construir uma conversação sobre algo comum. E uma conversação pode ser construída com vários elementos: com textos, com tecnologia, com artes, com o que for. Mas o importante é que tudo isso construa algo comum e não algo particular de cada um. E aí creio que não é uma questão de tecnologia; se é tecnologia ou não. Tem a ver com a individualização. A educação no mundo moderno vai a favor de um individualismo, da separação das pessoas. Então as tecnologias unem as pessoas ou as separam? Unem as pessoas porque as conectam e as separam, porque cada um está com seu computador, com seu Facebook, com sua televisão. Unem e separam ao mesmo tempo. Então as tecnologias são educativas quando unem e não quando separam; quando separam são outra coisa.


Em seu livro Pedagogia profana [Autêntica, 2001], o senhor propõe uma pedagogia emancipadora, libertária. Nesse sentido, qual a importância do humor, do riso, na escola?
Eu escrevi uma vez sobre a dessacralização, como algo que profana o solene, o sagrado. Quando você vai a um evento sobre educação, há vídeos com crianças sorrindo sempre. É uma imagem que virou publicitária demais: o sorriso das crianças, que estão se divertindo, passando bem, felizes. E quando eu escrevi sobre o riso, não foi nesse sentido. Foi sobre a capacidade do riso de dessacralizar saberes. Quando algo se mostra demasiadamente solene, é preciso pôr um nariz de palhaço.


Na imprensa e em eventos sobre educação, muito se fala sobre “países ou sistemas modelos de educação para o resto do mundo”. O senhor já foi convidado a dar aulas em universidades de diversos países da Europa e da América Latina. Como vê esse debate?
Não existe tal coisa como um modelo e não gosto nada dessa ideia de rankings. Isso é muito perigoso, porque o ranking é uma comparação, uma hierarquização, faz com que algumas coisas sejam melhores do que outras, países sejam melhores do que outros. Além dessa dimensão vertical, introduzem uma dimensão horizontal de que há coisas mais adiantadas do que outras, têm a ver com o tempo. E então é muito estranho, porque se há um país modelo, quer dizer que estamos atrasados em relação a ele. E nesse caso só conseguimos pensar sobre nós mesmos como atrasados e isso é um problema, certo? Quero dizer: o Brasil, como qualquer país do mundo, tem o direito de viver sua educação no presente e não como se estivesse atrás de alguma coisa.


Nesse cenário, qual o papel das avaliações externas?
Existe uma obsessão por avaliação que é muito perigosa. Eu creio que se dedica mais energia e dinheiro para avaliar o funcionamento dos procedimentos do que aos próprios procedimentos. Não faz muito tempo que um professor universitário dedica 70% de seu tempo a avaliar e ser avaliado, a fazer relatórios para ser avaliado ou a formar comitês de avaliação. E me parece que isso está começando a ser feito na escola primária e na escola secundária, que passam a dedicar mais tempo a avaliações do que a fazer coisas. E isso não pode acontecer, porque a avaliação não pode se converter em uma finalidade em si mesma. Parece que há uma obsessão perversa por avaliação, que tem a ver sempre com o mercado, que diz ser preciso determinar o valor das coisas, dizer que isso vale mais do que aquilo.


Na sua apresentação, o senhor falou que os “ogros amam as crianças” e exemplificou isso dizendo que o nascimento delas é “capturado pelos estados”, que têm o intuito de “formar o futuro dos estados e seus povos”. Quais são os ogros da educação?
O Mickey Mouse e os bancos, mas deve haver mais. Talvez seja necessário deixar as crianças um pouco em paz. A escola, como quase tudo hoje em dia, está submetida a uma espécie de velocidade vertiginosa. É preciso fazer tantas tarefas e cumprir tantos objetivos, que tudo se torna angustiante.

Autor

Camila Ploennes


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