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O que se passa com a família moderna?

A adoção de crianças por casais homossexuais está na pauta do dia, seja nas escolas, na mídia, nas clínicas, nas famílias, nas igrejas. O Censo do IBGE passará a computar casais gays brasileiros e seus filhos. Decisões judiciais favoráveis – como a do casal Vasco […]

Publicado em 10/09/2011

por Myriam Chinalli

A adoção de crianças por casais homossexuais está na pauta do dia, seja nas escolas, na mídia, nas clínicas, nas famílias, nas igrejas. O Censo do IBGE passará a computar casais gays brasileiros e seus filhos. Decisões judiciais favoráveis – como a do casal Vasco da Gama e Júnior, de Catanduva – forçam o Poder Legislativo a modificar a lei de adoção no Brasil, que não prevê que casais homossexuais adotem crianças. Por outro lado, setores conservadores, especialmente os ligados às religiões, esbravejam contra esse tipo de permissão.

Mas os casais homossexuais não são a única novidade. A metamorfose nas constelações familiares de nossos dias nos coloca diante de uma nova equação um tanto inquietante: matrimônios mistos, divórcios, separações, famílias reconstituídas, monoparentais ou homoparentais, assim como as reproduções assistidas, a barriga de aluguel, as clonagens, a adoção sob múltiplas formas etc.

Desorientada pela liberalização dos costumes, pela perda da autoridade do pai e pela precariedade própria da economia moderna, a família ocidental parece hoje pervertida em sua função de célula de base da sociedade, e cada vez menos apta a transmitir os valores que há tanto tempo encarnava. Em conseqüência, o próprio Ocidente judaico-cristão e, pior ainda, a democracia republicana às vezes se dizem ameaçados de decomposição.

Em A família em desordem (Jorge Zahar, 2003), a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco constatou que, como resposta aparentemente paradoxal a essa angustiante realidade, observamos uma situação que antropólogos, psicanalistas, filósofos, sociólogos e historiadores não haviam imaginado: afinal, por que homossexuais, homens e mulheres, manifestam o desejo de se “normalizar”, e por que reivindicam o direito ao casamento, à adoção e à procriação assistida? O que aconteceu nos últimos 30 anos na sociedade ocidental para que antigas minorias perseguidas desejem ser reconhecidas, não mais negando ou rompendo com a ordem familiar que tanto contribuiu para seu infortúnio, mas, ao contrário, procurando nela integrar-se?

As atuais mudanças nas constelações familiares impõem reflexões sobre a posição ética das instituições e dos profissionais que atendem crianças e jovens e suas famílias. A ética desses profissionais precisa implicar um compromisso com a verdade e com o desenvolvimento do outro.

Vamos a algumas hipóteses levantadas por Roudinesco para o entendimento dessa transformação social.


Desde o século 18, o pai não é mais representante de Deus

Heróico ou guerreiro, o pai dos tempos arcaicos foi a encarnação familiar de Deus, verdadeiro “rei”, senhor das famílias. Herdeiro do monoteísmo, reinou sobre o corpo das famílias e decidiu sobre os castigos infligidos aos filhos.

O feminino, fonte de desordem, visto como representante de feitiçarias e sensualidade desmedida, passou, a partir da idade medieval, a ocupar um lugar de divisão com o lugar do pai – considerado antes disso como o único veículo de transmissão psíquica e carnal.

Em seguida, na época moderna, a família ocidental deixou de ser conceitualizada como o paradigma de vigor divino ou do Estado. Retraída pelas debilidades de sujeitos individualizados, cada vez mais em sofrimento e empobrecidos, foi sendo dessacralizada, embora permaneça, paradoxalmente, até hoje, a instituição humana mais sólida.

À família autoritária de outrora, triunfal ou melancólica, sucedeu a família mutilada de hoje, feita de feridas íntimas, de violências silenciosas, de lembranças recalcadas. Ao perder sua auréola de virtude, o pai, que a dominava, forneceu então uma imagem invertida de si mesmo, deixando transparecer um eu descentrado, autobiográfico, individualizado, cuja grande figura a psicanálise tentará assumir durante todo o século 20.


Século 20: o pai gera o filho que será seu assassino

A condição trágica do mito grego de Édipo, tomado por Freud como paradigma do desenvolvimento psicossexual da criança, marcou profundamente a visão que se terá sobre a família, a partir do século 20.

Desse “Complexo de Édipo”, como denominado por Freud, decorreu para a psicanálise uma concepção de família fundada no assassinato do pai pelo filho, na rivalidade deste em relação ao pai, no questionamento da onipotência patriarcal, e, enfim, na necessidade, para as moças, de se emanciparem sexualmente da opressão paterna: “Quanto maior o poder do pai na família antiga, mais o filho, seu sucessor natural, devia se sentir seu inimigo, e maior devia ser sua impaciência por alcançar por sua vez o poder, com a morte de seu pai. Em nossas famílias burguesas, o pai desenvolve o germe da inimizade natural que há em suas relações com seu filho, não lhe permitindo agir a seu bel-prazer e recusando-lhe o meio de o fazer (…). Os pais se apegam de uma maneira doentia ao que resta da antiga potestas patris famílias em nossa sociedade atual, e um autor está sempre seguro do que afirma quando, como Ibsen, coloca em primeiro plano em seus escritos o antigo conflito entre pai e filho. As ocasiões de conflito entre a mãe e a filha surgem quando a menina cresce e encontra em sua mãe uma guardiã no momento em que reivindica sua liberdade sexual. Quanto à mãe, vê no desabrochar de sua filha um aviso: já é hora de renunciar às suas pretensões sexuais”, nos diz Freud em A Interpretação dos Sonhos (Imago, 1999).


O que acontecerá, enfim, com a família?

No texto A Família, de 1956, Claude Lévi-Strauss assinala: “a vida familiar apresenta-se em praticamente todas as sociedades humanas, mesmo naquelas cujos hábitos sexuais e educativos são muito distantes dos nossos. Depois de terem afirmado, durante aproximadamente cinqüenta anos, que a família, tal como a conhecem as sociedades modernas, não podia ser senão um desenvolvimento recente, resultado de longa e lenta evolução, os antropólogos inclinam-se agora para a convicção oposta, isto é, que a família, ao repousar sobre a união mais ou menos duradoura e socialmente aprovada de um homem, de uma mulher e de seus filhos, é um fenômeno universal, presente em todos os tipos de sociedades”.

Prossegue Lévi-Strauss: “o que diferencia realmente o homem do animal é que, na humanidade, uma família não seria capaz de existir sem sociedade, isto é, sem uma pluralidade de famílias prontas a reconhecer que existem outros laços afora os da consangüinidade, e que o processo natural da filiação somente pode prosseguir através do processo social da aliança”. Daí decorrem, de um lado, a prática da troca, que define a maneira pela qual se estabelecem os laços matrimoniais entre os grupos sociais – sobretudo a circulação de mulheres – e do outro a necessidade de proibição do incesto, a qual supõe que as famílias podem se aliar unicamente umas às outras, e não cada uma por sua conta, consigo.

Embora o leque das culturas seja bastante amplo para permitir uma variação infinita das modalidades da organização familiar, sabemos claramente, e Lévi-Strauss o diz com todas as letras, que certas soluções são duradouras e outras não. Em outras palavras, é preciso de fato admitir que foi no seio das duas grandes ordens do biológico (diferença sexual) e do simbólico (proibição do incesto e outros interditos) que se desenrolaram durante séculos não apenas as transformações próprias da instituição familiar, como também as modificações do olhar para ela voltado ao longo das gerações.

É fácil perceber que a família tradicional, hierárquica, patriarcal, biológica, em que predominava uma ordem simbólica específica, determinada pelo poder do pai, já não existe mais. Entretanto, as funções dela – de troca de afeto e de alianças sociais, no sentido apontado por Lévi-Strauss – permanecem e se fortalecem ao longo do século 20.

Como profissionais, cabe-nos perguntar: nesta sociedade narcísica dos dias atuais, em que tudo se transforma em mercadoria, que significados os pais (biológicos ou não) atribuem à família e à paternidade – não só à constituída pela doação de sêmen ou por meio do acordo com as mães e suas parceiras – mas também à que ocorre naturalmente? Que significados atribuem à convivência (ou não) com a criança? Como vêem sua participação: como meros “reprodutores” ou como responsáveis pela criação de um bom vínculo? Em relação aos filhos: como vivenciam a realidade de ter pais gays ou mães lésbicas, pais e mães que preferem viver sozinhos, ou pais e mães que constituem novas famílias? Como se dão suas relações sociais e que estratégias criam para lidar com a homossexualidade paterna ou materna? Como a escola e os profissionais da saúde acolhem essas famílias?

A construção da subjetividade vem sofrendo o efeito de uma tendência à fragmentação, além de uma pressão no sentindo de um autocentramento que esvazia o campo dos relacionamentos. Os indivíduos tendem a desinvestir a possibilidade de interesse e de busca pelo outro, dando assim lugar à substituição dos vínculos afetivos por outras formas de relacionamento, caracterizadas em grande parte pelo isolamento e por fantasias de onipotência e grandiosidade. De certa forma, o esvaziamento afetivo, a tendência a um culto exagerado do consumo e da riqueza, vem estimulando a proliferação da violência e da agressividade psíquica descontrolada, e de vínculos cada vez mais afrouxados.

Estaremos assistindo ao nascimento de um novo sentido para a idéia de “materno e paterno”? Há uma nova forma de relacionamento geradora de outro modelo familiar ou uma mera reprodução de modelos arcaicos, travestidos de “normalidade”?



Voltaire, Sade e a maldição paterna

A maldição paterna foi uma das palavras mestras do século 18 francês. Voltaire se gabou de ser um bastardo e contestou a autoridade daquele de quem portava o nome.

O poder paterno viu-se, assim, amesquinhado. Uma vez que o pai amaldiçoava sua descendência, o filho devia amaldiçoar o pai que dele fizera um libertino, escravo da devassidão, ou um desvairado, forçado à impotência. O rastro dessa profecia de decadência será repetido em obras literárias e pinturas de autores como Diderot, Rousseau, Sade – com descrições de filiações perversas e incestuosas.

Sade preconizou como fundamento para a República a obrigação do incesto, da sodomia e do crime (no capítulo: “Franceses, mais um esforço se quereis ser republicanos”, de A Filosofia da Alcova, Iluminuras, 1999). Segundo ele, nenhum homem deve ser excluído da posse das mulheres, mas nenhum pode possuir uma em particular. As mulheres têm obrigação de se prostituírem, os filhos pertencendo à República e não aos pais. Devem também ser separados de suas mães desde o nascimento. A alcova sadiana, que se quer o modelo de uma sociedade futura, repousa, além disso, na abolição radical da instituição do pai em prol da coletividade dos irmãos.



Myriam Chinalli é psicanalista e escritora. É co-autora da Coleção Saber Viver, publicada em São Paulo, pela Editora FTD

Autor

Myriam Chinalli


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