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O tempo do judiciário

Desembargador paulista constata processo de "judicialização" do mundo e defende que juízes não fiquem presos em camisas de força normatizoras

Publicado em 10/09/2011

por Celso Kinjô


Ilustração: Filipe Rocha

Na tênue relação de forças entre os poderes, o Judiciário brasileiro parece se impor como uma espécie de salvador da pátria. Mais que arbitrar conflitos, seus representantes vêm assumindo papel fiscalizador, sobretudo no campo das políticas públicas. Se os membros do Executivo falham em prover demandas exigidas por lei, juízes e tribunais, frequentemente por solicitação do Ministério Público, determinam que a lei se cumpra de fato. Um variado leque dos chamados direitos constitucionais compõe esse ‘intervencionismo’. Do direito à creche à internação em hospitais, da criação de vagas em escolas ao respeito a normas ambientais.

Para o desembargador paulista Renato Nalini, o novo cenário, desencadeado a partir da Constituição de 1988, resulta do que chama de ‘judicialização do mundo’. Tudo é motivo para processar, abrir queixa, recorrer, impetrar. Titular da 1ª Câmara de Direito Público e da Câmara Especial de Meio Ambiente do Tribunal de Justiça de São Paulo, Nalini revela duas preocupações dominantes: ética e educação. Uma não existe sem a outra, e toda nação depende de ambas para crescer e ocupar seu lugar na história. O Brasil, fora de qualquer dúvida, não tem cumprido seu dever em nenhum dos dois setores. "Ética é a única matéria-prima que falta ao Brasil", lamenta Nalini. "Se o país tivesse ética, estaríamos no ranking de nações em posição extremamente privilegiada."

Palestrante do Seminário sobre Direito à Educação, realizado em março na Faculdade de Direito da USP, Nalini falou sobre "O Papel do Judiciário no Sistema de Educação Brasileiro". Além de discorrer sobre o tema do seminário, Nalini falou também sobre o próprio Judiciário brasileiro, cuja hipertrofia explica a tendência à ‘judicialização’, diz ele. País de tradição cartorial, o Brasil conta com cinco tipos de justiça, alinhadas em quatro degraus, as chamadas instâncias. Além das justiças federal e estadual, funcionam três categorias especiais: trabalhista, eleitoral e militar. Esse aparato se distribui pelos 27 estados.

Cada qual conta com uma estrutura cuja base é o juiz de comarca (são 15 mil pelo país), tendo logo acima os tribunais regionais estaduais, mais acima os órgãos superiores, culminando no topo com o Supremo Tribunal Federal, que se dedica exclusivamente a apreciar questões de Constituição. "Temos um modelo de justiça sofisticada." E pergunta: "O que é melhor: que haja segurança jurídica através de uma camisa de força no juiz, para que ele seja um mero aplicador da letra da lei, ou que substitua essa segurança da lei por seu próprio senso de justiça?"

Na entrevista a seguir, o desembargador, que também preside a Academia Paulista de Letras, analisa a educação no Brasil e defende o protagonismo do Judiciário. 
           

O senhor declarou que o Judi­ciário poderá ‘fazer a diferença’ na busca de um futuro para o Brasil, e não só na educação. O que o faz acreditar nisso?


Na formulação teórica da separação de funções entre os poderes, o Legislativo era o proeminente. Quem faz as regras do jogo tem relevância maior do que os demais. Mas após esse período inicial de prestígio do Parlamento, o Executivo assumiu um papel preponderante e parece que o final do século 20 e este 21 são a fase do Judiciário. Tudo se torna tema para processo judicial. É a "judicialização" do mundo. Se os juízes tiverem consciência de que podem influenciar as políticas públicas, darão um grande passo na consecução da sociedade justa, fraterna e solidária prometida pelo constituinte de 1988.


Num país de desigualdades e carente de ética, a intervenção do Judiciário para fazer cumprir o direito à educação pode tornar-se um ponto de inflexão?


A responsabilidade pela educação é de todos. Educação não é apenas a escolarização formal. É um processo complexo, que deveria começar um século antes de a criança educanda nascer. Mas tem início na família, prossegue na escola, na igreja, no convívio, na sociedade e na profissão. Não termina nunca. O Judiciário pode colaborar fiscalizando a aplicação de recursos, fazendo o Estado cumprir sua missão, assim como os pais exercerem a sua obrigação de educar os filhos. Já é comum processo em que os pais são compelidos a enviar crianças para a escola, o que era inviável antes da Constituição de 1988.


Quais as diferenças e semelhanças entre o nosso Supremo Tribunal e a Suprema Corte dos EUA? O STF tem contribuído com suas decisões para fazer cumprir o direito à educação?


A diferença entre as duas Cortes é que no Brasil o STF ainda não deixou de ser uma quarta instância, enquanto nos Estados Unidos a Suprema Corte sinaliza qual o direito vigente para a comunidade. Lá, os nove juízes julgam poucas causas por ano, mas não deixam de decidir as questões fundamentais. Aqui, com a renovação do STF, os ministros vêm assumindo esse papel. É saudável verificar que acreditam na comunidade aberta de interpretação constitucional, de concepção germânica, e que chamam a sociedade a fornecer parâmetros sobre a aplicação do direito. Pois o direito é instrumento a serviço do povo, não matéria da alçada do jurista. O STF tem dado exemplo, e votos do Ministro Celso de Mello em relação à educação pré-escolar servem de parâmetro para todos os juízes e operadores de direito do Brasil.
 

De que forma a ampla renovação de ministros do STF se mostra positiva para a tarefa de fazer Justiça?


A renovação de quadros foi saudável. O STF era muito conservador, com isso deixava de influenciar a comunidade, atendo-se a uma dicção meramente técnica do direito. Hoje, o STF está na ordem do dia, implementa políticas públicas, quebra a blindagem do mérito administrativo porque no Estado de Direito quem diz o direito é o juiz. A responsabilidade de quem é nomeado ministro do STF transparece e eles se notabilizam pelo "consequencialismo", ou seja: analisam, antes de decidir, qual a repercussão ou consequência de sua decisão na sociedade. Isso é saudável.Torna o direito mais respeitado pelo povo e mais compreensível, em lugar do hermetismo antigo.


A profusão de leis e regulamentos torna mais difícil fazer cumprir o preceito constitucional do direito à educação?


Quanto mais se normatiza, mais dificuldade se oferece para o profissional do direito, às vezes perplexo diante da multiplicidade de normas, nem sempre elaboradas com boa técnica. O operador jurídico deve ser treinado para raciocinar a partir da Constituição, e não o contrário. Há um voto do Ministro Luiz Fux no STJ que é lapidar: a Constituição vale, deve valer e não é norma programática. Não é mera exortação. É comando provido de consistência jurídica e de intensidade.


Como o sr. vê a proposta do governo, já aprovada por Comissão Especial da Câmara e prestes a ir para o plenário, que torna obrigatório também o ensino médio, estendendo a permanência nos bancos escolares até os 17 anos?


Vejo com bons olhos a tentativa de forçar a juventude a estudar mais. Desde que seja aquela educação relevante para a formação integral do caráter, não o mero acúmulo de informações que a nada leva, senão ao pedantismo. Não é suficiente uma "cabeça cheia", como diz o sociólogo francês Edgar Morin. O melhor é uma "cabeça bem feita".

Primeira obra de referência


O primeiro fruto da mais nova cadeira da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), a Cátedra Unesco de Direito à Educação (para Pós-Graduação), criada há três anos, está à disposição de professores e estudiosos de todo o país. Em lançamento da Edusp (Editora da USP), o livro Direito à educação: Aspectos constitucionais reúne trabalhos de pesquisa dos alunos da primeira turma. O livro teve a coordenação da professora Nina Beatriz Ranieri, que, além de comandar o curso e lecionar a disciplina de Direito do Estado, ocupa o cargo de secretária adjunta de Ensino Superior de São Paulo.

"O direito à educação ocupa papel central no âmbito dos direitos humanos. É indispensável ao desenvolvimento e ao exercício dos demais direitos. Por dar acesso a outros direitos, ele se mostra, portanto, um instrumento fundamental, por meio do qual adultos e crianças marginalizados econômica e socialmente podem emancipar-se da pobreza e obter os recursos necessários à sua plena participação no meio social", explica Nina Ranieri.

A publicação congrega 13 pesquisas ao longo de suas 288 páginas, alcançando diversos assuntos. Várias mergulham no tema-título; outras analisam aspectos específicos, como a educação indígena, o ensino religioso, as ações afirmativas. O material mais importante é de referência acerca das disputas que vêm mobilizando a Justiça nos últimos anos: a obra traz a jurisprudência recente do STF e a atuação do Ministério Público ligada ao campo educacional. Pelo visto, as próximas edições devem ser mais caudalosas.

Autor

Celso Kinjô


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