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Entrevistas

Os desperdícios da economia

Richard Hartill explica como o modelo econômico da América Latina afeta a educação

Publicado em 10/09/2011

por Cristina Charão


As críticas em relação aos efeitos do neoliberalismo sobre a educação acumulam-se em artigos acadêmicos, debates entre especialistas e manifestações dos movimentos sociais. Torná-las compreensíveis aos que não se dedicam profissionalmente a entender os rumos das políticas educacionais, no entanto, é uma tarefa que poucos conseguem alcançar. É a ela que se dedica Richard Hartill, diretor do Programa para a América Latina da ONG Save The Children-Reino Unido. Nos últimos meses, Hartill, que é galês e vive na América Latina há anos (agora, na Colômbia), dedica-se a traduzir o "economês" das "reformas neoliberais" para ativistas e integrantes de movimentos sociais e populares, em oficinas promovidas pela Campanha Latino-Americana pelo Direito à Educação. No trabalho de preparação do material base, Hartill – que é assistente social e não economista – diz que aprendeu muito sobre economia, mas a principal fonte de informação parece ser a sua sensibilidade para os relatos das pessoas que conhece em suas viagens pelo continente. É o que o faz falar, por exemplo, de política econômica usando cenas como a de uma mãe que tem de sair de casa às 5 horas da manhã, deixando os filhos ainda dormindo, caminhar horas para chegar ao trabalho e, ao voltar, encontra as crianças novamente na cama. E de educação, ao lembrar que estas crianças, privadas do carinho materno e da convivência familiar, terão dificuldades de aprendizagem. Nesta entrevista, Hartill explica a relação direta que a política econômica – seja ela avaliada do ponto de vista da micro ou da macroeconomia – tem com a educação.



Qual o impacto que o modelo econômico adotado pelos países da América Latina nas últimas duas décadas causa sobre a educação?




Como todos sabemos, ainda que a escola funcione, um menino ou uma menina têm de ir à escola alimentado. Têm de vir de uma família que tenha certas condições mínimas de afeto e carinho. E têm de receber uma educação de qualidade. A adoção do modelo neoliberal nos últimos 15 anos teve, como primeiro impacto, a flexibilização trabalhista. Com isso, o tempo de trabalho necessário para se ganhar um salário mínimo – que quase não lhe permite sobreviver – aumentou de 50 horas semanais por pessoa para 75. E, ainda, se vamos às periferias das nossas grandes cidades – São Paulo, Lima, Bogotá -, às quatro ou cinco horas da manhã, vemos muita gente caminhando, porque não podem pagar o ônibus. É comum trabalhar 12, 16 horas por dia, e caminhar de casa para o trabalho mais outras 4 horas. Isso diminui drasticamente o tempo que os pais têm para estar com os seus filhos e não permite laços afetivos. É muito difícil que um professor possa suprir esta deficiência, em especial, se isso tenha ocorrido nos primeiros dois anos de vida, quando os danos são quase irreversíveis. A outra coisa é a questão da informalização.




Quais as conseqüências do trabalho informal na vida das crianças?




Quanto mais trabalho informal, menos imposto de renda recolhe um país. Resultado: para suprir esta deficiência, aumenta-se impostos sobre produtos, como por exemplo, da cesta básica. Isso significa que a dieta das crianças encarece e está sendo mudada. Muitos são desnutridos, mas não na forma tradicional. Você pode ter um menino obeso, porque está comendo muito carboidrato, mas com problemas de raquitismo porque não come nada com cálcio. Calcula-se que o número de crianças com anemia crônica aumenta em quase 1 milhão por ano na América Latina e Caribe. Isso significa que as crianças, quando chegam à escola, caso tenham tomado café da manhã, comeram um pão ou uma água com açúcar. E, claro, não têm os nutrientes que lhes permitem o desenvolvimento normal de seu cérebro, de seus músculos.




As dificuldades das famílias em garantir emprego e renda faz crescer o trabalho infantil? Há um acompanhamento sobre este problema na América Latina?




As cifras que temos sobre os cinco países andinos mostram que são mais ou menos 11 milhões de crianças que não estão na escola, das quais 7,5 milhões estão trabalhando. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), 85% trabalham nas piores formas de ocupação – em minas, em trabalho agrícola perigoso, prostituição. Obviamente, estas crianças não têm nenhuma possibilidade de acessar a educação. Se há alguma, vão para o ensino noturno, mas o que mais fazem é dormir, porque depois de trabalhar 12, 16 horas, estão esgotados. Ainda pior: o modelo econômico-educacional adotado tem como base a competição, a medição de indicadores de leitura e de matemática.




Por que é pior?




A América Latina tem, agora, desempenho muito baixo nestes itens. Há muita pressão para os professores expulsarem os alunos que eles sabem que irão mal nas provas. Em alguns países, como no Chile, é motivo para demitir um professor se este não chega à cota de crianças que passam nas provas. E quem são as crianças que não têm muita possibilidade de cumprir o desempenho mínimo? As crianças indígenas, as afro-brasileiras, afro-equatorianas, as crianças pobres, sem uma boa alimentação. E agora o Banco Mundial está propondo que seja apenas uma prova, talvez de velocidade de leitura. Dizem que podem introduzir metodologias de educação que aumentam a velocidade de leitura. Ora, se esta é a medida que se usa, todos vão mostrar avanços educacionais, sem que isso represente – em momento algum – uma educação de qualidade.




E o que seria esta educação de qualidade?




Eu creio, de verdade, que é um dever urgente pensarmos muito mais sobre o que é uma educação de qualidade, o que é nosso sonho de educação, o que queremos em nossos países, como olhamos para os nossos futuros como cidadãos, como vamos participar da sociedade. E não pensar só em coisas mecânicas que as crianças não podem cumprir, por conta da má qualidade de educação ou outras questões relacionadas à pobreza. Há muitas empresas que estão interessadas na qualidade da educação, mas se referem a questões como o número de jovens que entram nas suas empresas sem capacidade de fazer as tarefas que a empresa quer. Isso não deve ser um juízo, uma avaliação final sobre a educação. 




Quem deve opinar sobre o que é qualidade na educação?




No Brasil, Colômbia e Peru, as crianças opinaram sobre o que é, para eles, uma educação de qualidade. Foi uma pesquisa realizada em três anos, com ONGs locais, com quase 20 mil meninos e meninas. Eles destacaram que a educação se centre neles – em sua cultura, seus conhecimentos, seus bairros. Que isso seja usado como elemento de ensino. Que a escola o respeite. Que não haja castigo corporal. Isso é um problema sério em muitas escolas. Em São Paulo, por exemplo, o Instituto Paulo Freire fez um trabalho, com crianças de 1ª a 4ª série, pedindo que desenhassem a escola que queriam. Quase todas desenhavam escolas redondas. Quando se perguntava por que, respondiam: "Porque não tem cantos para onde o professor pode me mandar sentar e eu fico me sentindo idiota. Então, eu quero que todas as salas sejam redondas."




O Sr. falou o impacto da microeconomia na educação. E as questões macroeconômicas? Como refletem no setor?




O Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional) nos convenceram de que tudo se trata de uma questão de eficiência de gastos. Mas não se pode esquecer que, de onde eles vêm, a tese é de que o Estado não deve prover ou garantir estes direitos, mas prover serviços somente para os pobres. Para eles, eficiência é ter 60 alunos em uma sala de aula, porque custa menos que ter 30! É certo que há ineficiências nos gastos, quase sempre se gasta mais na manutenção da máquina e menos nas escolas, mas tudo indica que se precisa de pelo menos 30% a mais em gasto por aluno no continente.




Que indicadores seriam úteis para estabelecer o quanto se deve gastar por aluno?




Em países como Brasil e Peru, desenvolveu-se, com muita investigação, um instrumento que se chama "Custo Aluno-Qualidade", que pode medir quanto é preciso investir para dar uma educação de qualidade a uma menina no meio rural da Amazônia ou a um menino urbano da periferia de São Paulo. É possível ter uma idéia sobre as necessidades de uma criança, quanto vai custar ao Estado prover uma educação de qualidade. Nesses dois países, a luta agora é que este passe a ser um dos indicadores, um dos mecanismos para medir se o país está realmente cumprindo com metas de qualidade.


O Sr. é a favor dos indicadores descentralizados, específicos?






De certa forma, as médias nos enganam. A altitude média da América do Sul é de 483 metros, mas isso não diz nada sobre a América do Sul, que tem cordilheiras maravilhosas e pântanos que estão abaixo do nível do mar. É muito importante que se faça esta decomposição das informações por idade, por faixa etária, por origem étnica, por níveis de pobreza, por gênero, para que realmente possamos entender melhor onde se deve investir e assegurarmos que se faça este investimento. Está muito claro que parte da armadilha do modelo é que há regiões inteiras de nossos países onde não se investiu por décadas. Aí, não basta apenas investir mais, mas também buscar formas de investir com inteligência na infra-estrutura que falta. Para melhorar as escolas, não necessariamente as cadeiras são importantes. Talvez fosse melhor dar a todas as crianças bicicletas. 




Bicicletas?




Na Colômbia, numa cidade rural, o governador decidiu dar bicicletas a todas crianças. Isso melhorou em 30%, 40% a freqüência escolar, porque se diminuiu o tempo que levavam para ir à escola. Agora, se houvessem iniciado um processo de melhorar as rodovias, isso custaria bilhões, levaria anos e se perderia toda uma geração. Quais são as coisas que poderiam render um benefício para a infância já? Amanhã ou depois de amanhã? Há muitas coisas que podem ser feitas. Em muitas escolas rurais, onde havia água, já não há e os banheiros são uma desgraça. Como conseqüência, as meninas ao chegar à idade da menarca [
período em que se inicia a fase menstrual

] não querem mais ir à escola, porque não há esgoto, não há banheiro e elas se sentem incomodadas. Ou seja, a escola não lhes dá condições mínimas para que estejam lá. Então, um investimento em bons banheiros, com água potável, com esgoto, também pode trazer benefícios. 




E o investimento nas pessoas que trabalham na escola?




É urgente que se invista em professores, mas reconhecendo que, se eles se capacitam para serem melhores profissionais, isso tem de ter alguma recompensa monetária. Com a implementação do modelo do Banco Mundial e do FMI, quase todos os gastos educativos que não têm que ver com salário foram cortados. Isso inclui capacitação, materiais, mantimentos. Hoje, o orçamento de educação é 80%, 90% salário. Se os professores pedem 10% de reajuste, é culpa deles que o orçamento suba 10%, porque são 90% do orçamento. 




Não se pode, então, aumentar o salário dos professores?




Sim, temos de melhorar os salários, mas temos que também melhorar a qualidade do ensino e dar a isso um valor econômico. Se alguém dedica três meses a um curso de aperfeiçoamento para ensinar inglês, isso tem um valor. Creio que muitos professores não estão contentes com seu salário, mas um aumento que reconheça um esforço pode fazer a diferença, ainda que este aumento não melhore tanto o salário ruim. Mas ao menos alguém disse que reconhece o esforço. Há uma experiência feita por uma ONG de direitos humanos em Bogotá, na Colômbia. Capacitou-se professores em direitos da infância e, depois, eles receberam do município um aumento de 10% para trabalhar no ensino de direitos e passaram a ser avaliados anualmente pela ONG, para saber se realmente ensinavam. E avaliou-se também as crianças, para ver o que tinham aprendido. Isso significou que, em três anos, quase 3 mil professores estavam capacitados em todos os aspectos dos direitos da infância.

Autor

Cristina Charão


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