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Os mistérios de Clarice

O incompreensível e o enigmático passeiam pelos caminhos de Lóri, personagem cuja sabedoria está em aceitar o que não entende e, com isso, ensinar quem pensa saber tudo

Publicado em 10/09/2011

por Gabriel Perissé

Para conhecer a dimensão educadora da obra de Clarice Lispector (1920-1977), um bom caminho é
Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres

, publicado em 1969. Clarice, naquela ocasião, vivia momentos difíceis. Além dos cuidados que a saúde de um de seus filhos exigia, ainda se recuperava física e emocionalmente do incêndio em seu quarto, que a deixou gravemente ferida três anos antes, e do choque produzido pela morte recente de dois grandes amigos, os escritores Lúcio Cardoso e Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta).


Uma aprendizagem

, segundo a autora, pediu-lhe uma liberdade maior, e ela teve de escrevê-lo com essa liberdade, humildemente: “Humildemente tentei escrevê-lo. Eu sou mais forte do que eu”. Foi, podemos pensar, um livro de superação, um aprendizado literário e existencial, um recomeço. Não à toa, uma das epígrafes é do poeta Augusto dos Anjos, relacionando “a mais alta expressão da dor” à alegria.

Trata-se, à primeira vista, de uma banal história de amor, com um tratamento muito diferente daquele, de inspiração metafísica, do seu romance anterior,
A paixão segundo G. H.

(1964), e sem a densidade de
A maçã no escuro

(1961).

Ulisses e Loreley (Lóri), dois professores, começam a namorar. Ele é professor universitário, de filosofia, e ela leciona na escola primária. O “desnível” sugere que Lóri teria muitas coisas a aprender com Ulisses, esperando dele algum tipo de avaliação, de orientação ou conselho. E, de fato, Ulisses assume o papel do mestre perante a discípula:


É que você só sabe, ou só sabia, estar viva através da dor.


É.


E não sabe como estar viva através do prazer?


Quase que já. Era isso o que eu queria te dizer.

Lóri é ingênua… ou se faz de ingênua, perguntando-lhe como deve agir, se está acertando, se está sendo autodidata. Canto de sereia, talvez, que leva Ulisses a falar além da conta, investir ainda mais no tom professoral, um tanto pernóstico:


(…) Muitas coisas você só tem se for autodidata, se tiver a coragem de ser. Em outras, terá de saber e sentir a dois. Mas eu espero. Espero que você tenha a coragem de ser autodidata apesar dos perigos, e espero também que você queira ser dois em um. Sua boca, como eu já lhe disse, é de paixão. É através da boca que você passará a comer o mundo, e então a escuridão de teus olhos não vai se aclarar mas vai iridescer.


Como professora, Lóri tem um comportamento maternal. Seus alunos são crianças pobres e, no inverno, usa a mesada que recebe do pai (nenhuma menção ao salário…) para comprar-lhes agasalhos, guarda-chuvas e meias de lã. Em suas aulas ideais, torna-se misteriosa: explica que a palavra aritmética “vinha de ‘arithmos’ que é ritmo, que número vinha de ‘nomos’ que era lei e norma, norma do fluxo universal da criança”. Bem sabe a professora que tudo isso é incompreensível, mas faz parte do mistério da vida a lição de, por ora (ou para sempre), não entender.

Aliás, Lóri defende essa estranha didática:


“Não entender” era tão vasto que ultrapassava qualquer entender – entender era sempre limitado. Mas não-entender não tinha fronteiras e levava ao infinito, ao Deus. Não era um não-entender como um simples de espírito. O bom era ter uma inteligência e não entender. Era uma bênção estranha como a de ter loucurasem ser doida. Era um desinteresse manso em relação às coisas ditas do intelecto, uma doçura de estupidez.


O incompreensível e o enigmático passeiam pela obra de Clarice. Lóri, aos poucos, graças a esta sabedoria que aceita não entender nada, vai ensinando a Ulisses que ele também não sabe tudo. Incomoda ao filósofo, por exemplo, que a sua “aluna” prefira falar “o Deus”, e não “Deus”:


(…) Mas eu queria saber por que você, em vez de chamar Deus, como todo o mundo, chama o Deus.



Porque Deus é um substantivo.


É a professora primária que está falando.


Não, Ele é substantivo como substância. Não existe um único adjetivo para o Deus.


Desconcertado, o professor do ensino “superior” descobre que precisa aprender coisas “primárias”, primeiras. E quando os dois finalmente se encontram para o amor, não é mais aluna e mestre que estão ali, embora um continue a aprender com o outro. Pois esta é a essência do aprendizado: quem ensina precisa aprender.


O primeiro aluno e o professor sabe-tudo


Todo escritor tem consciência do quanto influência a visão de mundo dos seus leitores. Em depoimento gravado para o Museu da Imagem e do Som (20/10/76), Clarice referia-se ao
Uma aprendizagem

: “É uma história de amor. E duas pessoas já me disseram que aprenderam a amar através desse livro. Pois é”.

Mais do que as linhas, são as entrelinhas que influenciam. Mesmo esse coloquial “pois é” pode ser interpretado de várias formas. Haverá nele um pouco de ironia, de resignação, de admiração, de gracejo. E este é outro dos ensinamentos de Clarice: existem segredos e desdobramentos onde tudo parece simples e cotidiano.

Como em outro texto seu, intitulado
O primeiro aluno da classe

, com o qual somos apresentados a um menino de nove anos extremamente ajuizado, solícito (empresta livros aos colegas da escola, ajuda-os a entender a matéria), cujo segredo é um caracol. Clarice repete que o segredo dele é um caracol, antes de finalmente contar o porquê…


Seu segredo é um caracol. Do qual não esquece um instante. Seu segredo é um caracol que o sustenta. Ele o cria numa caixa de sapato com gentileza e cuidado. Com gentileza diariamente finca-lhe agulha e cordão. Com cuidado adia-lhe atentamente a morte. Seu segredo é um caracol criado com insônia e precisão. (em: Para não esquecer, 1978)


Difícil evitar um estremecimento diante da contradição do menino, que é tão humana, tão nossa: somos delicadamente sádicos, gentilmente perversos, secretamente maus. Na espiral do caracol, o menino experimenta a impiedade. E esta impiedade meticulosa, infinita, sustenta sua solicitude pelos colegas, sua humanidade, sua pertença à escola e à sociedade dos “bons”, seu prestígio de aluno correto.

É terrível e bela a imagem do menino torturador. Há coragem e beleza nesta revelação – o segredo do menino agora também é nosso. E cada qual tem o seu caracol.

Há uma energia emocional nesse texto, que precisa ser recriada pelo leitor. Vale dizer: para realizar uma leitura educadora precisamos tomar posse dessa energia, como quem recebe uma herança, mesmo sem esperá-la. Contudo, só a receberemos efetivamente se for de modo ativo e comprometido. A leitura educa, sim, com uma condição: que cada um de nós, mesmo não entendendo, traduza para si mesmo o que apreendeu.

Para Clarice, literatura é exercício de vida, sofrido e inexplicável. Cada livro concluído leva a uma morte parcial, até que se abra outro ciclo de criação. Nada de racionalizações ou fórmulas infalíveis. O professor que aparece em A maçã no escuro representa a postura que Clarice jamais adotaria. O professor é idolatrado pelas personagens femininas, Vitória e Ermelinda. Uma delas, Vitória, querendo elogiá-lo, chega a afirmar que deveria escrever um romance. A reação do professor é imediata:


Não poderia! (…), aí é que está! Não poderia, exclamou penoso, não poderia porque tenho todas as soluções! já sei como resolver tudo! não sei como sair desse impasse! para tudo, disse ele abrindo os braços em perplexidade, para tudo eu sei uma resposta!

Não procuremos soluções. Não esperemos respostas prontas. Por que, por exemplo, Clarice tinha fascinação pelo nome “Ulisses”? Ulisses é o professor de Uma aprendizagem, mas é também o nome do cachorro de que a autora cuidava, e que aparece pelo menos em dois momentos ficcionais, como narrador no livro infantil Quase de verdade (1967) e como o cachorro de Ângela, em Um sopro de vida (1978).

Vai entender…


* Gabriel Perissé é doutor em filosofia da educação (USP) e professor do Programa de Mestrado da Universidade Nove de Julho (SP) (



www.perisse.com.br



).

Autor

Gabriel Perissé


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