NOTÍCIA

Educação no Mundo

Por uma revolução chilena

Protestos estudantis que já duram 15 meses no Chile questionam um sistema educacional até então considerado o de maior sucesso na América Latina, pedindo por educação pública gratuita e desmunicipalização do ensino fundamental e médio

Publicado em 08/10/2012

por Victor Farinelli, de Santiago







Latinstock/Marcelo Hernandez/dpa/Corbis
Estudantes chilenos ocupam escola; pichação em muro faz citação ao líder da revolução mexicana Emiliano Zapata

Desde o ano passado, os estudantes chilenos cantam: “We don´t need your education!! We don´t need no thought control!”. Não precisamos da sua educação, nem do seu controle de pensamento, o refrão de Another Brick in The Wall, hino da banda inglesa Pink Floyd, embala as manifestações estudantis contra a crise educacional que aflige o Chile desde junho de 2011.


Porém, apesar de a letra ser adequada para a causa dos estudantes chilenos, os muros que eles pretendem derrubar são diferentes. O atual modelo educacional chileno, implantado durante a ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) e mantido com alterações pelo governo da Concertación socialista (1990-2006), não sofre tanto pela rigidez e violência dos professores, como reclama Roger Waters na letra da canção inglesa, mas é acusado pela Confederação dos Estudantes do Chile (Confech) e por diversos intelectuais chilenos ligados a políticas educacionais de criar um sistema de segregação social e superendividamento das famílias chilenas.
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O país antes considerado o modelo educacional de maior sucesso na América Latina sofre atualmente com uma crise educacional que já completa 15 meses. Em 2011, as gigantescas marchas deram visibilidade a um movimento estudantil que pedia educação pública gratuita (no Chile, as escolas e universidades públicas são terceirizadas e são raros os casos onde existe gratuidade), proibição do lucro nas escolas e universidades e desmunicipalização das escolas de ensino fundamental e médio.


Mudanças à vista
Com cerca de 80% da opinião pública apoiando as demandas, segundo o Centro de Estudos Públicos (CEP), e tendo transformado a educação na prioridade número um da agenda política do país, os estudantes chilenos mudaram de estratégia este ano, passando a fazer uma resistência mais propositiva e apresentando projetos alternativos para contestar as reformas educacionais e tributárias promovidas pelo governo do presidente Sebastián Piñera.


Apesar do apoio da cidadania aos estudantes e da consequente rejeição ao governo, cuja popularidade é de 27% de acordo com pesquisa realizada em agosto pelo CEP, o conflito parece estar longe de ter uma solução favorável ao movimento, ainda que o atual ministro da Educação, o pedagogo Harald Beyer (que assumiu em janeiro e é o terceiro a ocupar o cargo durante o atual governo), seja considerado pelos dirigentes estudantis como uma pessoa mais aberta a dialogar, em comparação aos seus antecessores.


Segundo a cientista política Maria Francisca Quiroga, do Instituto de Assuntos Públicos da Universidade do Chile, “é improvável que a direita chilena, que está no poder hoje, abandone sua crença na educação de mercado e na sociedade de oportunidades, que são conceitos incompatíveis com o que os estudantes estão pedindo”. Em entrevista à Educação, ela cita os relatos da imprensa local de que o segundo ministro da Educação de Piñera, Felipe Bulnes, teria sido demitido do cargo, supostamente, por querer ceder às propostas de desmunicipalização do ensino fundamental e maior controle estatal sobre o lucro nas instituições educacionais. A atual reforma apresentada por Beyer demonstra que o governo aposta em reinventar o atual modelo educacional, mudando as regras do crédito educativo e de acesso às universidades.


Cargo maldito
Maria Francisca lembra que todos os governos chilenos desde o retorno da democracia viveram crises estudantis (embora nenhuma tão profunda quanto a atual) e tiveram mais de um ministro de Educação, o que tem transformado a pasta em uma espécie de “cargo maldito”. Ela acredita que, para que a Confech possa consolidar as mudanças estruturais que pretende, será necessário manter o movimento vigente e saber negociar com os próximos governos, pois, além de o atual ignorar os estudantes, a oposição de centro-esquerda reage às demandas sem assimilá-las, e desconhece as organizações estudantis como atores sociais válidos. “A principal vitória do movimento foi a desestabilização do sistema educacional, mas isso ainda não é suficiente para garantir as mudanças, é só um primeiro passo. Eles terão de perseverar, conseguir novos apoios e preservar os atuais, manter a visibilidade das demandas. Eles lutam por uma reforma estrutural, o que requer um processo de longo prazo”, analisou a acadêmica.


Uma das iniciativas mais recentes do movimento parece seguir algumas receitas da professora. Após criar uma comissão que percorreu diversas províncias do país e conquistou o apoio de vários movimentos sociais distintos – como o movimento em prol da federalização, os grupos de defesa da autonomia mapuche e os principais sindicatos do país – a Confech decidiu incorporar o conceito do movimento regional da Patagônia, sob o slogan “o seu problema é meu problema”, e criou uma rede de apoio mútuo dos movimentos sociais chilenos. Dessa comunhão de forças sociais nasceu uma campanha recentemente lançada, em prol de uma nova assembleia constituinte, questionando a legitimidade da carta magna atual – que ainda é a mesma imposta pela ditadura de Pinochet, em 1980.


Cronologia
Em abril de 2011, após um atraso de três meses nas verbas para os programas estatais de crédito educativo, os presidentes das federações estudantis ligadas às principais universidades chilenas organizam uma videoconferência através da internet onde debatem sobre os problemas que o atraso dos créditos estava causando e a melhor forma de visibilizar midiaticamente o problema. Nascia assim a Confederação dos Estudantes do Chile (Confech), cuja única petição inicial era a liberação da verba dos créditos.


Por trás do problema com o crédito educativo estava algo mais profundo: mesmo entre as famílias que recebem o benefício, muitas sofrem com dívidas enormes causadas pelos gastos com educação, e sem ele a situação se tornava insustentável, como acontece com as famílias que jamais receberam incentivos, o que em muitos casos resulta em evasão escolar e bancarrota familiar.


Segundo um estudo do Fundo das Nações Unidas para a Educação (Unesco), realizado em dezenas de países, em todos os continentes, o Chile foi o único país onde mais de três quartos do financiamento da educação superior é responsabilidade das famílias. Segundo a investigação, publicada em 2011, as famílias chilenas arcam com 84,3% dos recursos utilizados no sistema educacional universitário do país, enquanto o Estado banca a porcentagem restante. A média apresentada pelos demais países incluídos no estudo, (entre eles Austrália, Alemanha, Argentina, Uruguai e Finlândia) é de apenas 33,7% de gastos privados na educação pública.


Criada em 2008, com o intuito de discutir e sugerir reformas para a educação chilena, a Fundação Educação 2020 também ganhou notoriedade no país junto com o movimento estudantil. Seu coordenador, o engenheiro Mario Waissbluth, atribui o sucesso inesperado que o movimento teve junto à sociedade à identificação das famílias chilenas com o tema do endividamento. “No Chile, até os estabelecimentos públicos cobram mensalidades, e caras. Quando esses jovens foram às ruas reclamar contra as dívidas, a sociedade rapidamente entendeu aquela inquietude, porque era um problema que quase todos conheciam”, explica Waissbluth à reportagem de Educação.


A identificação social com o endividamento impulsionou o movimento. Em junho de 2011 foram realizadas as primeiras ocupações de universidades e escolas de ensino médio, além de reunir multidões nas marchas. A maior delas aconteceu no dia 16 de junho, quando a Confech assumiu definitivamente as que são até hoje as três principais demandas do movimento (educação pública gratuita, proibição do lucro nas escolas e universidades e desmunicipalização das escolas de ensino fundamental e médio), e reuniu cerca de 200 mil pessoas em Santiago e mais de 400 mil em todo o Chile – pouco menos de 5% da população, considerando que o país possui 17 milhões de habitantes.


Desde então, os dirigentes estudantis passaram a ter projeção nacional. Entre eles, o principal fenômeno é a bela Camila Vallejo, apontada pelas principais pesquisas de opinião como uma das cinco figuras políticas mais importantes do país, sem nunca ter ocupado um cargo público.


O sucesso meteórico do movimento também tem relação com a criatividade demonstrada pelos estudantes nos primeiros meses da crise. Além das ocupações e das marchas, os protestos estudantis chamavam a atenção pela ousadia presente, por exemplo, em uma megacoreografia de “Thriller” (sucesso de Michael Jackson) interpretada por diversas companhias teatrais universitárias, para simbolizar “o terror do sistema educacional chileno”, ou nos 30 dias de revezamento em volta do Palácio de La Moneda, cujo mastro ostenta uma bandeira chilena com a inscrição “educação pública e gratuita para todos”.


Segregação escolar
Como chegou a essa situação um modelo que outrora foi considerado o mais exitoso da América Latina, e exaltado como “o caminho a seguir” por muitos países, inclusive pelo Brasil? Segundo a cientista política María Francisca Quiroga, coordenadora de projetos internacionais do Instituto de Assuntos Públicos da Universidade do Chile, a explicação desse fenômeno passa pelo chamado Consenso de Washington.


Durante os anos 90, o neoliberalismo se impôs como dogma econômico em evidência no mundo. Todos os países passaram a adotar políticas públicas neoliberais e o Chile possuía o modelo neoliberal mais antigo e avançado do continente. A cientista política acredita que a propagação do modelo educacional chileno se deu devido à sensação de universalidade dos serviços criados no país a partir das reformas neoliberais. “O sistema educacional neoliberal chileno aumentou a oferta e permitiu que um maior número de crianças e adolescentes tivesse acesso à educação. Os efeitos como a segregação e o endividamento das famílias, também gerados por ele, só foram percebidos anos depois.”


Mario Waissbluth reforça a tese de Quiroga e acredita que o as reformas neoliberais chilenas foram muito mais profundas que em qualquer outro país, por terem sido implantadas por uma ditadura, onde não havia uma oposição que buscasse moderar as medidas, como aconteceu nos países onde essas reformas foram feitas durante governos democráticos – o que explicaria, também segundo ele, por que os países que se inspiraram no modelo chileno não passaram por um conflito interno tão forte como o que as ruas de Santiago vivem hoje.


Waissbluth, que é engenheiro, acredita na economia de mercado, mas afirma que seu trabalho junto à Fundação Educação 2020 o fez entender que a lógica da liberdade de mercado é daninha para a educação, porque, segundo ele, seriam tantos os incentivos perversos que geram resultados regressivos que mesmo a nova superintendência de educação, recentemente criada pelo governo de Piñera para regular o setor, não seria capaz de fiscalizar tudo.


Um elemento levantado pelos estudos realizados por Educação 2020 é o da segregação escolar gerada pelo modelo. Waissbluth relata que as escolas privadas, assim como as públicas administradas por terceiros, obedecem às mesmas regras de mercado, “e essas regras criam nichos, como em todo mercado, então você acaba tendo escolas para loirinhos ricos, escolas para moreninhos pobres, escolas para mapuches, escolas para imigrantes, e assim cada escola chilena termina se convertendo em um minigueto de um determinado estrato social”.


Os estudantes chilenos não conseguiram derrubar os muros da segregação escolar e do endividamento familiar. Também encontraram outro muro, o do sistema político. É possível que essa dificuldade reforce a campanha por uma nova assembleia constituinte, mas a luta dos manifestantes parece estar longe de um desfecho. Diante das dificuldades, Waissbluth alerta: “as mesmas pessoas que desenharam o atual sistema durante a ditadura estão hoje no governo e pretendem defendê-lo, inclusive criando armadilhas. É preciso cuidado com o afã de tentar derrubá-lo, para não cometer erros que acabem colocando alguns novos tijolos nesses muros”.

Autor

Victor Farinelli, de Santiago


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